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Camões — Pode um desejo imenso

18 Domingo Jan 2015

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Poesia Antiga

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Camões

Matisse - Rosto de mulher 1935 invertAfastamento e dor de ausência, amor, distância, beleza lembrada, mais que idealizada: Tais asas dá o desejo ao pensamento!

De tudo a que o amor aspira, contado no superlativo da singularidade da amada, se faz a mais bela das odes de Camões, [Pode um desejo imenso].

 

Ode VI da edição de 1598 das Rimas

 

Pode um desejo imenso

arder no peito tanto

que à branda e à viva alma o fogo intenso

lhe gaste as nódoas do terreno manto,

e purifique em tanta alteza o esprito

com olhos imortais

que faz que leia mais do que vê escrito.

 

Que a flama que se acende

alto tanto alumia

que, se o nobre desejo ao bem se estende

que nunca viu, a sente claro dia;

e lá vê do que busca o natural,

a graça, a viva cor,

noutra espécie milhor que a corporal.

 

Pois vós, ó claro exemplo

de viva fermosura,

que de tão longe cá noto e contemplo

n’alma, que este desejo sobe e apura;

não creais que não vejo aquela imagem

que as gentes nunca vêem,

se de humanos não têm muita ventagem.

 

Que, se os olhos ausentes

não vêem a compassada

proporção, que das cores excelentes

de pureza e vergonha é variada;

da qual a Poesia, que cantou

até ‘qui só pinturas,

com mortais fermosuras igualou;

 

se não vêem os cabelos

que o vulgo chama de ouro,

e se não vêem os claros olhos belos,

de quem cantam que são do Sol tesouro,

e se não vêem do rosto as excelências,

a quem dirão que deve

rosa, cristal e neve as aparências;

 

vêem logo a graça pura,

a luz alta e severa,

que é raio da divina fermosura

que n’alma imprime e fora reverbera,

assi como cristal do Sol ferido,

que por fora derrama

a recebida flama, esclarecido.

 

E vêem a gravidade

com a viva alegria,

que misturada tem, de qualidade

que ūa da outra nunca se desvia;

nem deixa ūa de ser arreceada,

por leda e por suave,

nem outra, por ser grave, muito amada.

 

E vêem do honesto siso

os altos resplandores,

temperados co doce e ledo riso,

a cujo abrir abrem no campo as flores;

as palavras discretas e suaves,

das quais o movimento

fará deter o vento e as altas aves;

 

dos olhos o virar,

que torna tudo raso,

do qual não sabe o engenho divisar

se foi por artifício, ou feito acaso;

da presença os meneios e a postura,

o andar e o mover-se,

donde pode aprender-se fermosura.

 

Aquele não sei quê,

que aspira não sei como,

que, invisível saindo, a vista o vê,

mas para o compreender não acha tomo;

o qual toda a Toscana poesia,

que mais Febo restaura,

em Beatriz nem em Laura nunca via;

 

em vos a nossa idade,

Senhora, o pode ver,

se engenho e ciência e habilidade

igual à fermosura vossa der,

como eu vi no meu longo apartamento,

qual em ausência a vejo.

Tais asas dá o desejo ao pensamento!

 

Pois se o desejo afina

ūa alma acesa tanto

que por vós use as partes da divina,

por vós levantarei não visto canto,

que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante;

que o nosso claro Tejo

envolto um pouco vejo e dissonante.

 

O campo não o esmaltam

flores, mas só abrolhos

o fazem feio; e cuido que lhe faltam

ouvidos para mim, para vós olhos.

Mas faça o que quiser o vil costume;

que o sol, que em vós está,

na escuridão dará mais claro lume.

 

Transcrito de Lírica Completa III, edição de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, Lisboa, 1981.

Nota ortográfica

Substituí na transcrição vêm por vêem.

A 3ªpessoa do plural do presente indicativo do verbo Ver vem escrito vêm na edição referida acima, por razões que desconheço.

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Herberto Helder – (a carta da paixão)

18 Terça-feira Fev 2014

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Poetas e Poemas

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Herberto Helder, Louis Jean François Lagrené

Louis Jean François Lagrenée  -  Allegory of Peace 1779 (pormenor) 650pxHá versos que iluminam uma vida. Esta mão que escreve a ardente melancolia / da idade com que abre (a carta da paixão) de Herberto Helder (1930) encontra-se entre os muitos versos do poeta que ao lerem-nos, nos ensinam. Logo, a música das palavras, depois a magia que no mundo eles podem desvendar, e, sobretudo, o mistério da vida onde mergulhamos tantas vezes de olhos fechados ou abertos, mas sem ver, e na insondável alquimia da língua descobrimos como

…

A paixão é voraz, o silêncio

alimenta-se

fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te

toda no cometa que te envolve as ancas como um beijo.

…

É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a

entre os braços. …

Deixo-vos com a totalidade desta carta da paixão.

Herberto Helder – (a carta da paixão)

Esta mão que escreve a ardente melancolia

da idade

é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,

que à imagem do mundo aberta de têmpora

a têmpora

ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra

a sua queimadura desde os seus recessos negros

onde se formam

as estações até ao cimo,

nas sedas que se escoam com a largura

fluvial

da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas

e o silêncio todo branco.

Os dedos.

A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua

alumia-se: O mel escurece dentro da veia

jugular talhando

a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se

a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas

obscuras, essa lua

tece as ramas de um sangue mais salgado

e profundo. E o marfim amadurece na terra

como uma constelação. O dia leva-o, a noite

traz para junto da cabeça: essa raiz de osso

vivo. A idade que escrevo

escreve-se

num braço fincado em ti, uma veia

dentro

da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta

da figura cavada

no espelho. Ou ainda a fenda

na fronte por onde começa a estrela animal.

Queima-te a espaçosa

desarrumação das imagens. E trabalha em ti

o suspiro do sangue curvo, um alimento

violento cheio

da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força

desde a raiz

dos braços a força

manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda

fechada, a límpida

ferida que me atravessa desde essa tua leveza

sombria como uma dança até

ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma

estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum

astro

é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros

do teu vestido.

As palavras que escrevo correndo

entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,

arterial.

E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.

A paixão é voraz, o silêncio

alimenta-se

fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te

toda

no cometa que te envolve as ancas como um beijo.

Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem

nos quartos.

É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a

entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel

relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta

pelo meio

o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras

um pouco loucas

engolfadas, entre as mãos sumptuosas.

A doçura mata.

A luz salta às golfadas.

A terra é alta.

Tu és o nó de sangue que me sufoca.

Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões

da madeira fria. És uma faca cravada na minha

vida secreta. E como estrelas

duplas

consanguíneas, luzimos de um para o outro

nas trevas.

Transcrito de PHOTOMATON & VOX, 4ª edição, Assírio & Alvim, Lisboa 2006

A imagem é um fragmento da pintura de Louis Jean François Lagrenée (1724-1805)  – Alegoria da Paz (1770), da colecção do Museu Jean Paul Getty de Los Angeles, EUA.

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Ó gloria de mandar! Ó vã cobiça – a fala do Velho do Restelo em Os Lusíadas

04 Quarta-feira Dez 2013

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Convite à arte, Poesia Antiga

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Camões, Os Lusíadas, Turner

Turner slave-ship

Contrariamente à voz corrente, guardei do estudo de Os Lusíadas no Liceu, a memória de longos trechos e um gosto pelo poema, sempre renovado de cada vez que nele me perco.

Em Os Lusíadas, poema épico à maneira dos clássicos Ilíada, Odisseia e Eneida, conta Camões (1524(?)-1580) a história de Portugal até à sua época e o detalhe da aventura da descoberta do caminho por mar até à Índia.

Como dispositivo narrativo para descrever a história passada de Portugal ao rei de Calecute nos Cantos III e IV, coloca o poeta o relato na boca de Vasco da Gama, o chefe da armada que descobriu o caminho maritImo para a Índia:

Canto III

III

Prontos estavam todos escutando

O que o sublime Gama contaria,

Quando depois de um pouco estar cuidando,

Alevantado o rosto, assim dizia:

– “Mandas-me, ó Rei, que conte declarando

Da minha gente a grã genealogia;

Nao me mandas contar estranha história,

Mas mandas-me louvar dos meus a glória.

 

Ao longo do Canto III assistimos ao relato dos acontecimentos respeitando à formação de Portugal e consolidação geográfica do território até final da primeira dinastia. É nesse canto que encontramos o episódio de Inês de Castro

 

Estava linda Inês …

 

No Canto IV são relatadas as peripécias das conquistas e derrotas no norte de África até à preparação e partida das naus que viriam a descobrir o caminho para a Índia através do oceano Atlântico.

Turner grand-canal

Como é sabido, as matérias primas e artigos de luxo produzidos no Oriente e sumamente apreciados pelos poderosos ocidentais, o equivalente da alta costura francesa, perfumes e champanhe, etc, de hoje, chegavam às cortes e sociedades europeias por terra, vendidas através da Republica de Veneza, à qual aportavam por demoradas e perigosas viagens através de territórios em grandes parte desérticos. A descoberta de uma via marítima para a realização deste comércio, controlada por Portugal, deu ao país a riqueza e o esplendor de que ainda não se refez no século XXI.

Mas voltando a Camões e ao seu poema, no final do canto IV encontra-se a mais intemporal e por isso mesmo eterna, formulação poética da ambivalência entre ambição humana e gosto pela aventura e risco, conhecida como a fala do Velho do Restelo. Por tal modo famosa que passou para o imaginário popular o epíteto de Velho do Restelo para todo aquele que perante desafios repletos de riscos, aconselham prudência e tento na ambição.

Antes de se ouvir o velho, é ainda Vasco da Gama quem fala, relatando como a população de Lisboa acorreu à praia do Restelo, onde hoje se encontra a famosa Torre de Belém, precisamente a assinalar esta partida, despedindo-se de quem partia.

São versos de uma pungência e actualidade tais que voltaram a ser sentidos e chorados quando do cais da Rocha em Lisboa partiam os navios carregados de soldados para combater nas guerras de África nos anos 60 do século XX.

Feita a descrição nas estrofes LXXXVIII a XCIII, segue-se a entrada na narrativa do velho do Restelo e a sua intemporal reflexão sobre a gloria de mandar, a vã cobiça, por tal forma que

 

 

Nenhum cometimento alto e nefando, / Por fogo, ferro, água, calma e frio,

Deixa intentado a humana geração! / Mísera sorte! Estranha condição!”

 

 

Canto IV
XCIV
Mas um velho de aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
XCV
— “Ó gloria de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
 Cūa aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
XCVI
“Dura inquietação de alma e da vida,
Fonte de desemparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Gloria soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
XCVII
“A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaxo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
 De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que historias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
XCVIII
“Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano,
Da quieta e da simples inocência,
Idade de ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e de armas te deitou:
XCIX
“Já que nesta gostosa vaidade
 Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
 Temeu tanto perdê-la quem a dá,
C
“Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riquezas mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
CI
“Deixas criar às portas o inimigo
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo,
Porque a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!
CII
“Ó! Maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Dino da eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!
CIII
“Trouxe o filho de Jápeto do céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras. Grande engano!
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto pera o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos que a movera!
CIV
“Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem ora vazio
O grande arquitector co filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração!
Mísera sorte! Estranha condição!”

 

 

As imagens que acompanham o artigo são de pinturas de Turner (1755-1851): Naufrágio de navio de escravos e O grande canal de Veneza.

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De vez em quando Pessoa — hoje Os Jogadores de Xadrez de Ricardo Reis

04 Quarta-feira Set 2013

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Convite à fotografia, Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa, Ricardo Reis

Dominic Nahr - Gaza City, Palestinian TerritoriesOuvi dizer que outrora, quando a Pérsia / Tinha não sei qual guerra.

…

Serve-nos a televisão com o jantar, notícias das catástrofes do mundo e do andamento que os políticos lhes dão.

Ardiam casas, saqueadas eram

As arcas e as paredes,

Violadas, as mulheres eram postas

Contra os muros caídos,

Trespassadas de lanças, as crianças

Eram sangue nas ruas…

Mas onde estavam, perto da cidade,

E longe do seu ruído,

…

Inda que nas mensagens do ermo vento

Lhes viessem os gritos,

E, ao refletir, soubessem desde a alma

Que por certo as mulheres

E as tenras filhas violadas eram

Nessa vitória próxima,

…

Fabio Bucciarelli  - Aleppo, SyriaSaber isto o espectador, acrescenta-lhe a ilusão de, ao saber o que acontece, participar na sua resolução: inclui-se na chamada opinião pública.

…

Inda que, no momento que o pensavam,

Uma sombra ligeira

Lhes passasse na fronte alheada e vaga,

Breve seus olhos calmos

Volviam sua atenta confiança

Ao tabuleiro velho.

…

Os jogadores de xadrez jogavam

O jogo de xadrez.

E, na verdade, esta ilusão de assim interferir nos destinos do mundo, permite ganhar a tranquilidade de consciência e dormir em sossego.

Dominic Nahr  - Heglig, SudanQuão longe estamos da indiferença levada aos limites por Fernando Pessoa no poema do heterónimo Ricardo Reis, Os Jogadores de Xadrez, que tenho vindo a citar?

Desde muito novo me debato com a pontual evidência experiencial deste poema e a liminar recusa da indiferença pelo destino do mundo que me rodeia e em que vivo.

Ah! sob as sombras que sem qu’rer nos amam,

Com um púcaro de vinho

Ao lado, e atentos só à inútil faina

Do jogo do xadrez,

Mesmo que o jogo seja apenas sonho

E não haja parceiro,

Imitemos os persas desta história,

E, enquanto lá por fora,

Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida

Chamam por nós, deixemos

Que em vão nos chamem, cada um de nós

Sob as sombras amigas

Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez

A sua indiferença.

Micah Albert - Nairobi, KenyaSoberba interrogação sobre nós e o mundo nos faz este poema! Aí fica na totalidade.

 

Os Jogadores de Xadrez

 

Ouvi dizer que outrora, quando a Pérsia

Tinha não sei qual guerra,

Quando a invasão ardia na Cidade

E as mulheres gritavam,

Dois jogadores de xadrez jogavam

O seu jogo contínuo.

 

À sombra de ampla árvore fitavam

O tabuleiro antigo,

E, ao lado de cada um, esperando os seus

Momentos mais folgados,

Quando havia movido a pedra, e agora

Esperava o adversário,

Um púcaro com vinho refrescava

Sobriamente a sua sede.

 

Ardiam casas, saqueadas eram

As arcas e as paredes,

Violadas, as mulheres eram postas

Contra os muros caídos,

Trespassadas de lanças, as crianças

Eram sangue nas ruas…

Mas onde estavam, perto da cidade,

E longe do seu ruído,

Os jogadores de xadrez jogavam

O jogo de xadrez.

 

Inda que nas mensagens do ermo vento

Lhes viessem os gritos,

E, ao refletir, soubessem desde a alma

Que por certo as mulheres

E as tenras filhas violadas eram

Nessa vitória próxima,

Inda que, no momento que o pensavam,

Uma sombra ligeira

Lhes passasse na fronte alheada e vaga,

Breve seus olhos calmos

Volviam sua atenta confiança

Ao tabuleiro velho.

 

Quando o rei de marfim está em perigo,

Que importa a carne e o osso

Das irmãs e das mães e das crianças?

Quando a torre não cobre

A retirada da rainha alta,

Pouco importa a vitória.

E quando a mão confiada leva o xeque

Ao rei do adversário,

Pouco pesa na alma que lá longe

Estejam morrendo filhos.

 

Mesmo que, de repente, sobre o muro

Surja a sanhuda face

Dum guerreiro invasor, e breve deva

Em sangue ali cair

O jogador solene de xadrez,

O momento antes desse

É ainda entregue ao jogo predileto

Dos grandes indif’rentes.

 

Caiam cidades, sofram povos, cesse

A liberdade e a vida.

Os haveres tranquilos e avitos

Ardem e que se arranquem,

Mas quando a guerra os jogos interrompa,

Esteja o rei sem xeque,

E o de marfim peão mais avançado

Pronto a comprar a torre.

 

Meus irmãos em amarmos Epicuro

E o entendermos mais

De acordo com nós-próprios que com ele,

Aprendamos na história

Dos calmos jogadores de xadrez

Como passar a vida.

 

Tudo o que é sério pouco nos importe,

O grave pouco pese,

O natural impulso dos instintos

Que ceda ao inútil gozo

(Sob a sombra tranqüila do arvoredo)

De jogar um bom jogo.

 

O que levamos desta vida inútil

Tanto vale se é

A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,

Como se fosse apenas

A memória de um jogo bem jogado

E uma partida ganha

A um jogador melhor.

 

A glória pesa como um fardo rico,

A fama como a febre,

O amor cansa, porque é a sério e busca,

A ciência nunca encontra,

E a vida passa e dói porque o conhece…

O jogo do xadrez

Prende a alma toda, mas, perdido, pouco

Pesa, pois não é nada.

 

Ah! sob as sombras que sem qu’rer nos amam,

Com um púcaro de vinho

Ao lado, e atentos só à inútil faina

Do jogo do xadrez,

Mesmo que o jogo seja apenas sonho

E não haja parceiro,

Imitemos os persas desta história,

E, enquanto lá por fora,

Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida

Chamam por nós, deixemos

Que em vão nos chamem, cada um de nós

Sob as sombras amigas

Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez

A sua indiferença.

 

1-6-1916

 

Transcrevi a versão proposta por Manuela Parreira da Silva em Ricardo Reis, Poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

 

As fotos que acompanham o artigo pertencem à selecção 2013 de WorldPress Photo, e podem ser encontradas com informação sobre os seus autores seguindo este link AQUI.

 

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Alberto Caeiro – Poema VIII de O Guardador de Rebanhos no Dia do Pai

19 Terça-feira Mar 2013

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Convite à arte, Poetas e Poemas

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Alberto Caeiro, Fernando Pessoa, Louis Gallait

louis Gallait 1848

Somos filhos antes de sermos pais. Em cada idade sentimos o Dia do Pai de forma adaptada ao percurso por onde a vida nos levou.

Depois que somos pais, somos também filhos de maneira diferente. Mas por mais adultos e suficientes que sejamos, só a perda do Pai nos faz sentir como a partir daí estamos na vida por nossa conta. É essa referência que nos moldou ao crescer, que nos acompanha pela vida e nos faz desejar assinalar de forma especial a passagem do Dia do Pai, diferente do seu ou do nosso aniversário.

Uma vez pais, cada filho é sempre uma espécie do nosso Menino Jesus. Foi sentindo isso que escolhi assinalar este Dia do Pai com a transcrição do poema VIII de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, o heterónimo de Fernando Pessoa, que termina precisamente com esta identificação:

Esta é a história do meu Menino Jesus. / Por que razão que se perceba /Não há de ser ela mais verdadeira / Que tudo quanto os filósofos pensam /E tudo quanto as religiões ensinam?

O poeta diz num verso lapidar como cada filho vive em nós e nos integra:

…

Ele dorme dentro da minha alma

…

A irreverência, por vezes chocante para católicos, que numa leitura superficial do poema a espaços surge, como por exemplo neste fragmento:

…

Um dia que Deus estava a dormir

E o Espírito-Santo andava a voar,

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fêz que ninguém soubesse que êle tinha fugido.

Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modêlo às outras.

Depois fugiu para o Sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

ganha a dimensão da liberdade de pensar e faz sentir a complexidade dos sentimentos que nos atravessam perante a força avassaladora da fé, na sua negação do irracional. Irracional que está sempre presente no amor com que banhamos os nossos filhos desde o dia em que nascem até que deles nos despedimos, talvez com o desejo secreto que o poeta desvela:

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.

Deixo-o, leitor, com o poema.

Para quem o conhece, fica o prazer do reencontro. Para quem o lê pela primeira vez, no final será, eventualmente, outra pessoa.

VIII

Num meio-dia de fim de primavera

Tive um sonho como uma fotografia.            

Vi Jesus Cristo descer à terra.

           

Veio pela encosta de um monte

Tornado outra vez menino,

A correr e a rolar-se pela erva

E a arrancar flores para as deitar fora

E a rir de modo a ouvir-se de longe.

           

Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacôrdo

Com flores e árvores e pedras.

No céu tinha que estar sempre sério

E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer

Com uma côroa tôda à roda de espinhos

E os pés espetados por um prego com cabeça,

E até com um trapo à roda da cintura

Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe

Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas –

Um velho chamado José, que era carpinteiro,

E que não era pai dêle;

E o outro pai era uma pomba estúpida,

A única pomba feia do mundo

Porque não era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala

Em que ele tinha vindo do céu.

E queriam que êle, que só nascera da mãe,

E nunca tivera pai para amar com respeito,

Pregasse a bondade e a justiça!

           

Um dia que Deus estava a dormir

E o Espírito-Santo andava a voar,

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fêz que ninguém soubesse que êle tinha fugido.

Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modêlo às outras.

Depois fugiu para o Sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,

Chapinha nas pôças de água,

Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.

Atira pedras aos burros,

Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães.

E, porque sabe que elas não gostam

E que tôda a gente acha graça,

Corre atrás das raparigas

Que vão em ranchos pelas estradas

Com as bilhas às cabeças

E levanta-lhes as saias.

           

A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me tôdas as coisas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.

           

Diz-me muito mal de Deus.

Diz que ele é um velho estúpido e doente,

Sempre a escarrar no chão

E a dizer indecências.

A Virgem-Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.

E o Espírito-Santo coça-se com o bico

E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada

Das coisas que criou –

«Se é êle que as criou, do que duvido» -.

«Êle diz, por exemplo, que os sêres cantam a sua glória,

Mas os sêres não cantam nada.

Se cantassem seriam cantores.

Os seres existem e mais nada,

E por isso se chamam sêres».

E depois, cansado de dizer mal de Deus,

O Menino Jesus adormece nos meus braços

E eu levo-o ao cólo para casa.

           

…………………………………………………………

           

Êle mora comigo na minha casa a meio do outeiro.

Êle é a Eterna Criança, o deus que faltava.

Êle é o humano que é natural,

Êle é o divino que sorri e que brinca.

E por isso é que eu sei com tôda a certeza

Que êle é o Menino Jesus verdadeiro.

           

E a criança tão humana que é divina

É esta minha quotidiana vida de poeta,

E é porque êle anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,

E que o meu mínimo olhar

Me enche de sensação,

E o mais pequeno som, seja do que fôr,

Parece falar comigo.

           

A Criança Nova que habita onde vivo

Dá-me uma mão a mim

E a outra a tudo que existe

E assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindo

E gozando o nosso segrêdo comum

Que é o de saber por tôda a parte

Que não há mistério no mundo

E que tudo vale a pena.

           

A Criança Eterna acompanha-me sempre.

A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.

O meu ouvido atento alegremente a todos os sons

São as cócegas que êle me faz, brincando, nas orelhas.

           

Damo-nos tão bem um com o outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,

Mas vivemos juntos e dois

Com um acôrdo íntimo

Como a mão direita e a esquerda.

           

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas

No degrau da porta de casa,

Graves como convém a um deus e a um poeta,

E como se cada pedra

Fôsse todo um universo

E fôsse por isso um grande perigo para ela

Deixá-la cair no chão.

           

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens

E ele sorri, porque tudo é incrível.

Ri dos reis e dos que não são reis,

E tem pena de ouvir falar das guerras,

E dos comércios, e dos navios

Que ficam fumo no ar dos altos mares.

Porque êle sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer

E que anda com a luz do sol

A variar os montes e os vales

E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

           

Depois êle adormece e eu deito-o.

Levo-o ao colo para dentro de casa

E deito-o, despindo-o lentamente

E como seguindo um ritual muito limpo

E todo materno até êle estar nu.

           

Ele dorme dentro da minha alma

E às vezes acorda de noite

E brinca com os meus sonhos.

Vira uns de pernas para o ar,

Põe uns em cima dos outros

E bate as palmas sòzinho

Sorrindo para o meu sono.

           

……………………………………………..

       

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.

           

……………………………………………………

           

Esta é a história do meu Menino Jesus.

Por que razão que se perceba

Não há de ser ela mais verdadeira

Que tudo quanto os filósofos pensam

E tudo quanto as religiões ensinam?

A transcrição ortográfica segue o texto fixado por Teresa Sobral Cunha na sua edição dos Poemas Completos de Alberto Careiro, Editorial Presença, Lisboa, 1994.

A pintura que abre o artigo é do belga Louis Gallait pintada presumivelmente em 1848.

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Herberto Helder e O AMOR EM VISITA no Dia da Mulher

08 Sexta-feira Mar 2013

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Convite à arte, Poetas e Poemas

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Herberto Helder, Matisse

Matisse_Henri-Zulma

Para quem anda distraído, ou ocupado nas imensas ninharias da vida, celebra o mundo neste dia 8 de Março, o Dia Internacional da Mulher.
Assunto maior e recorrente no blog – A Mulher – aproveito a comemoração para, com pouca conversa, transcrever o longo poema/oração de Herberto Helder (1930) O AMOR EM VISITA, um entre aquela menos que duzia de obras-primas absolutas da poesia portuguesa do século XX, pela primeira vez publicado em 1958 e sucessivamente retocado.

Poema de exaltação do amor pela mulher, que a abrir nos diz:

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.

Com o poema caminhamos na musica encantatória do verso, e percorremos, entre o instante e o eterno, a vertigem do amor:

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
– Porém, tu sempre me incendeias.

sabendo que no final e sempre:

Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

O AMOR EM VISITA

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas –
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele – imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
– Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
– Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
– Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
– Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra – invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo –
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida – e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira – para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
– Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
– Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
– o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
– E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
– No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
– Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo
– aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto aberto
– no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável –
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água – e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

Transcrevi a versão publicada em OU O POEMA CONTÍNUO, edição da obra poética de Herberto Helder, na forma definitiva de 2004, publicada por Assírio & Alvim em Setembro de 2004.

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O presépio da minha infância

24 Segunda-feira Dez 2012

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Convite à arte, Crónicas

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Fernando Pessoa, Natal

UNKNOWN MASTER, German 1420É a poesia de Fernando Pessoa um poço inesgotável, onde a cada mergulho a alma se nos prende e se desvenda. Nesta vasta obra há pouco sobre o Natal, mas basta o arqui-conhecido poema Natal. Na província neva/…, para ficar dito em definitivo o que em desolada solidão sente quem na vida caminha Coração oposto ao mundo.

NATAL  

Natal. Na província neva.
Nos lares aconchegados
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

Era pela feira de Outubro que naquele virar dos anos cinquenta a chegada próxima do Natal nos conduzia, crianças de vida modesta numa sociedade de bens escassos.

Aí começava a preparação do presépio com a compra de figurinhas de barro, umas novas para acrescentar variedade à composição, outras para substituir algumas entretanto quebradas. Era o dinheiro amealhado em longos meses, às vezes todo o ano, que permitia essas compras. Depois seguiam-se os trabalhos de preparação e montagem do cenário para o presépio. Tratava-se de uma vasta estrutura com quase dois metros de frente e mais de um metro de fundo construída com réguas de madeira às quais se pregavam raízes de canas. Estas raízes de canas, tuberculos rijos e com formas caprichosas, permitiam uma arquitecuta espacial variada. Pregadas em anfiteatro, desciam das alturas ao fundo, e confluíam na gruta, em baixo e quase ao centro, na frente, onde nasceria o deus menino.
O propósito era criar um vasto cenário deixando imaginar montanhas e vales, por onde andaria e viveria gente, que à chegada do Natal saberiam da boa nova e desciam até à gruta para ver e adorar o deus nascido. Eram esta gente e animais, casas e alfaias, as figurinhas de barro compradas na feira. Ao cenário acrescentava-se musgo e searas (grãos de trigo postos a germinar semanas antes em tacinhas de vidro).
E como se fazia a base do cenário? Pregadas as raízes às tábuas na disposição que iria permitir o relevo, a esta estrutura colava-se papal Kraft, integralmente coberto de um dos lados com cola de farinha, a qual, uma vez seca fixava o papel às raízes e acrescentava-lhe a rigidez e resistência suficiente para nele pousar sem rasgar as figuras de barro.
A cola de farinha era feita com farinha e água, cozida ao fogo. Depois de bem seca a cola, toda a estrutura era pintada com uma solução de dioxénio, a qual por ser de um castanho transparente, permitia nuances de cor sobre o papel creme e já manchado pelo repasse da cola. Uma vez seco o dioxénio e ficando a contento o cenário de montanha que queríamos, tratava-se de polvilhar a estrutura com purpurina dourada e prateada de forma que surgissem reflexos na estrutura, quando iluminada.
Com todo este trabalho tinha passado Outubro e Novembro. Além de carrear todo o material, escolher e ensaiar o cenário a construir, havia também a construção em cartolina do castelo do presépio, e de casas para espalhar pela paisagem. O castelo era a obra-prima de cada ano a fazer, pela vastidão e variedade de torres e ameias, fazendo lembrar um castelo das iluminuras dos irmãos Limbourg, que em tempos deixei algures no blog.
Concluídas as tarefas, e de posse de todos os elementos: figuras, musgo, searas, luzes, tratava-se de as dispor no cenário e inaugurar o presépio, nem sempre no primeiro de Dezembro mas seguramente nos primeiros dias do mês. Quando era montado na montra da loja de meu pai, colocava-se um pano no exterior enquanto a montagem durava, e anos houve em que a miudagem apercebendo-se, ali se juntava e esperava a retirada do pano para primeiro ver o presépio e as suas novidades. Depois, ao longo dos dias, na saída da escola, lá passavam e ficavam a olhar, uns, sem mais, outros discutindo este ou aquele detalhe que gostavam ou não.

Era o tempo de pôr o sapato à chaminé na véspera de Natal à noite, e acreditar que por ali o Pai Natal desceria com um ou dois presentes e pouco mais de meia dúzia de pequenos chocolates, enchendo o sapatinho com os secretos sonhos que só ele conhecia. Hoje, as chaminés vedadas por exaustores não permitem, nem à mais tenra infância, a ilusão da descida do Pai Natal, dando forma a desejos acalentados longamente.

Este acreditar que a magia do bem é possível, acompanha pela vida quem a sentiu, e torna a esperança na felicidade, indestrutível.
Oxalá o mesmo se passe consigo, leitor.

Feliz Natal!

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Cântico Negro de José Régio

05 Segunda-feira Mar 2012

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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José Régio

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Desde que foi escrito, Cântico Negro  de José Régio (1901-1969) permanece como o grito da juventude à procura de si e da sua singularidade:

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

…

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

–  Sei que não vou por aí!

O poeta publicou-o no seu primeiro livro Poemas de Deus e o do Diabo   em 1925.

Lembro-me de ter quinze anos e ter balbuciado em delíquio poético um

Corro,

Corro,

porquê, para onde?

Não sei!

…

É desta dúvida que assalta cada adolescente quando começa a ter consciência de si, que o poema superiormente nos fala e grita:

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos…

Segue-se a recusa de um mundo que insiste em fazer-nos todos iguais:

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: “vem por aqui!”?

As dúvidas, as incertezas, os sonhos, todos os sonhos, lá estão:

Eu amo o Longe e a Miragem,

E na fúria de tudo começar de novo, fazendo tábua rasa do que encontrou no mundo ao chegar, proclama:

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tectos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…

Eu tenho a minha Loucura !

…

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.

Depois destes pequenos comentários vamos ao poema lido por João Villaret na memorável sessão de 1958 no Teatro S. Luís em Lisboa.

  https://s3-eu-west-1.amazonaws.com/viciodapoesiamedia/Jo%C3%A3o+Villaret+no+S%C3%A3o+Lu%C3%ADs+-+C%C3%A2ntico+Negro.mp3

Transcrevo a versão definitiva do poema publicada na edição de 1951 de Poemas de Deus e o do Diabo, a qual difere ligeiramente da versão lida apaixonadamente de João Villaret.

 Cântico Negro

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces,

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: “vem por aqui”!

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali…

    

A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

    

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos…

      

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,

Por que me repetis: “vem por aqui”?

 

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí…

    

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

    

Como, pois, sereis vós

Que me dareis machados, ferramentas, e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?…

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

 

Ide! tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tectos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

      

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

    

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

 

É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou…

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

–  Sei que não vou por aí!

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Cantiga, partindo-se de Jorge Roiz de Castelo-Branco

05 Domingo Fev 2012

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Convite à música

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Amália, Cancioneiro Geral, Garcia de Resende, Jorge Roiz de Castelo-Branco

O afastamento, a distância de quem nos é querido, têm nas imagens poéticas em torno dos olhos alguns dos mais belos poemas de sempre da poesia portuguesa. Um deles é este Cantiga, partindo-se, publicado por Garcia de Resende no seu Cancioneiro Geral, e atribuído a Jorge Roiz de  Castelo-Branco (14??-1515), que agora acrescento ao meu cânone pessoal.

Cantiga, partindo-se

Senhora, partem tão tristes

meus olhos por vós, meu bem,

que nunca tão tristes vistes

outros nenhuns por ninguém.

 

Tão tristes, tão saüdosos,

tão doentes da partida,

tão cansados, tão chorosos,

da morte mais desejosos

cem mil vezes que da vida,

partem tão tristes os tristes,

tão fora de esperar bem,

que nunca tão tristes vistes

outros nenhuns por ninguém.

Jorge Roiz de  Castelo-Branco (14??-1515)

Transcrevi a versão de José Régio em português moderno publicada em  as mais belas poesias do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, 1962, publicada por Realizações Artis.

E agora, com música de Alain Oulman, o poema na voz sublime de Amália

https://s3-eu-west-1.amazonaws.com/viciodapoesiamedia/Am%C3%A1lia+-+Cantiga+partindo-se.mp3

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Jorge de Sena (1919-1978 ) – Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

15 Domingo Jan 2012

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Convite à arte

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Goya, Jorge de Sena

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya de Jorge de Sena (1919-1978 ) acompanha-me desde que adulto me conheço. Já a ele me referi na página O Autor. Hoje arquivo-o integralmente no blog entre o reduzido número de poemas do meu cânone.

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão-de ser em vão. Confesso que
muiltas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Lisboa, 25 de Junho de 1959

Para quem não conheça a pintura evocada no título do poema, eis uma reprodução acompanhada de um detalhe ampliado.

Francisco de GOYA Y LUCIENTES (1746-1828)
O  3 de Maio de 1808: A execução dos defensores de Madrid
Óleo s/tela, 266 x 345 cm, 1814
Museo del Prado, Madrid
Detalhe do indizível enfrentar da morte:

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