Fizeram e farão parte das memórias de várias gerações com algumas posses que foram jovens até aos anos 50 do século XX, as viagens entre Lisboa e Madrid no comboio Lusitânia. Lugar de encontros e namoricos, a tal ponto que uma canção espanhola de sucesso à época dá disso conta: El chachachá del tren cantado pelas Hermanas Fleta (pode ouvir-se no youtube).
A viagem até Madrid que Júlio César Machado (1835-1890) nos conta é quase cem anos anterior. Ainda o comboio chegava tão só a Badajoz, o resto do percurso era feito em carruagem.
Levados pelo saboroso da prosa entrego-vos à descoberta de um Portugal e Espanha antigos, e às peripécias da viagem.
…
Parto no comboio de Badajoz às oito e meia da noite de 26 de Março. Tenho por companheiro o meu amigo o conde d’Óbidos. A nossa entrada na carruagem produz longo murmúrio entre os membros de uma família dos Olivais, de quem temos o prazer de ser companheiros até à segunda estação; dá motivo a isto a nossa toilette um tanto complicada; o conde num copioso traje do touriste, capote à espanhola, bolsa a tiracolo, saco numa das mãos, bengala rija na outra, e uma almofada de vento debaixo de cada braço; eu, quasi em estilo de peregrino, chapéu desabado, jaqueta felpuda, uma almofada de vento pendurada a um saco-mala, um saco-mala pendurado a um chapéu de sol, um chapéu de sol pendurado a mim; — sensação no público. Os guardas contemplam-nos como a dois homens que partem para a Terra Santa.
Conversámos até às onze horas: nenhum de nós quer dormir; à meia-noite já dormimos ambos. Badajoz surpreende-nos pela madrugada; é logo bastante bom um dos habitantes desta capital de província para passar em costume espanhol àquela hora, e dar-me uma forte dose de cor local! A cidade cercada de muralhas, estende-se por uma colina coroada com as ruinas de um castelo velho. Cai uma chuvinha que lisonjeia a providência do meu chapéu de chuva, entramos num carro que nos obriga a bailar sentados o bolero, saltando de barranco para barranco, num caminho atroz que conduz da estação à cidade durante meia hora. Hospeda-nos a fonda das Tres Naciones, coio ignóbil, sem luz, sem roupa, sem criados, e onde se vive mais caro que em Londres ou em S. Petersburgo.
Miguel Beriol, o antigo e inteligente chefe do movimento na estação de Santa Apolónia tinha-me dado o Itinerario da Hespanha e Portugal, uma carta de recomendação, e um charuto bom; fumo o charuto, guardo a carta, e olho para o livro… fechado: é que tem oitocentas e oito paginas! e a mim assustam-me os livros volumosos; não me atrevo a principia-los com medo de não os poder acabar. Estou em preferir uma estrofe de Horácio à Ilíada ou a Odisseia, e qualquer breve linha do Tácito ao mais belo período de Cícero. Dava-me por feliz se pudesse encerrar a historia numa página, meter a filosofia numa frase, e apertar toda a poesia humana nalguns versos. Agora por exemplo que é Abril, não respiramos nós toda a Primavera numa só flor? Se pudesse ser assim com os livros, por alguma arte mágica!
Fumei o charuto durante estas considerações — e passo a entregar a carta de recomendação, que é para mr. De Varenne, chefe da estação de Badajoz. Ao subir a escada, encontro uma gentil espanhola de dezasseis anos, que a desce cantando, pulando, e rindo; cumprimenta-me com um ar cintilante de alegria, e precipita-se no jardim, chilreando sozinha como um bando de aves. Que saltinhar gracioso! À proporção que se afasta do solo, rouba o que quer que seja aos céus, aonde parecia querer chegar; desabrocha-lhe nos lábios uma trova andaluza, como flores proféticas de Espanha: paro um instante a escutá-la; larga a voz numa maviosa canção de amores, em que a ideia desprende as asas e a alma se eleva em toda a luz como o passarinho que no voo deixa brilhar as cores!
Subo. De Varenne está num gabinete ao lado da sala onde espero algum tempo. Algumas vozes de mulheres, brincando, cercam, interrompem e sufocam a dele; aí me aparece de novo a desconhecida do jardim, e vai misturar-se ao coro. Que casa é esta? Instantes depois, em conversação, fico sabendo que De Varenne é casado, que a visão que me surpreendeu à entrada é uma vizinha, e que as outras vozes são as de suas três irmãs, todas bonitas, todas de feição ardente e peninsular como ela, cabelos negros, olhos de longas pestanas que lhes resguardam a luz para nos não cegar, figura esbelta, sorriso límpido, voz melodiosa e sedutora. De Varenne é casado com uma compatriota nossa, linda filha de Coimbra que o destino enviou a Badajoz para glória da formosura portuguesa. A ruidosa galhofa das vizinhas, em visita ali, visita íntima, visita de toda a hora, explicou-se-me pois: eram espanholas em vida familiar — o que significa que eram o que pode haver de maior viveza, jovialidade e travessura sob o tecto de uma casa. Que graça, que animação, que ardor galante! No teatro, essa noite, — porque em Badajoz há teatro, por sinal que o chão é de ladrilho! — estiveram essas meninas explicando-me quem eram as pessoas que eu via nos diferentes camarotes.
— E aquele? perguntei, indicando um deles. — Um proprietário.
— Riquíssimo?
— Não!
— Pobríssimo?
— Tão pouco. Regularíssimo!
A vida em Badajoz é de uma insipidez honesta: de manhã trata-se dos negócios; à tarde vai-se para o campo de São João, praça onde está a catedral, o teatro, a melhor farmácia, o melhor botequim, — que botequim, Deus meu! — e, ao centro muitos embuçados como nos melodramas, desde o elegante com a sua capa de bandas de veludo carmesim, até ao maltrapilho que se embrulha com o maior garbo nos farrapos de um capote paradoxal; e à noite, as donzelas vão falar com os seus namorados da janela baixa de grades, enquanto os serenos entoam o seu pregão de hora em hora: Ave Maria puríssima, son las diez, y está sereno, ou Ave Maria puríssima, son las onze y lhove!
Depois de esperarmos dois dias que houvesse lugares na mala-posta, partimos para Madrid. O conde d’Óbidos, que em todo o tempo de Badajoz esteve dirigindo apóstrofes ao destino, encontra-me cheio de cabelos brancos, ao passo que eu o observo transparente: atribuímos estes fenómenos aos dois dias que passámos na funda das Tres Naciones! A mala-posta consta de uma serie de caixas, uma para guardar o correio, outra para guardar as bagagens, e outra para guardar os passageiros, — tudo velho, tudo a desabar, tudo seguro por cordas, puxado por sete mulas que voam por campos e vales com uma orquestra de pragas, gritos e chicotadas do cocheiro! Já vai fugindo o sol, as casas ficam lá ao longe, alargam-se os horizontes, tudo é charneca e montanhas. Vamos em Espanha. Ó longas contemplações, ó sonhos poéticos, ó saudosa lembrança dos contos e lendas deste país encantado, tenho-vos eu bem presente e não irei perder-vos pelo caminho?
A estrada vai trepando sempre, e gira, e volta, e sobe, e redemoinha em inumeráveis séries de vales, montes, colinas silenciosas e desertas. A fresca madrugada desprende depois o seu acento de tímida luz por aqueles campos sem habitantes, sem casas, sem árvores. À esquerda, estende-se a majestosa serra de Guadarrama em ondulações rápidas e imprevistas que nos mergulham o espírito nas mesmas meditações austeras que o mar suscita porque flutua a mesma ideia do infinito naquelas curvas magníficas que parecem a superfície inquieta das vagas cortadas ao longe pelo vento; e a impressão é mais irresistível ainda, porque, na calma ou na tormenta, tem vozes o mar que não se calam e ondas que não descansam, e a serra está sempre muda, sem movimento e sem vida, confundindo nas nuvens a sua coroa de neve!
Principia para nós outro extenso dia e outra longa noite de mala-posta, alimentando-nos apenas de chocolate que tomamos a ferver, com uma pressa ímpia, nas localidades em que há muda. Em Tragillo há um teatro e um casino em frente mesmo da venta; este esmero de civilização leva-me a pedir manteiga à locandeira; traz-me manteiga de porco e diz-me:
— Si usted la quiere, és de cierdo: no hay de otra!
Fulminado pela descoberta de que em Espanha não há manteiga, continuo recorrendo ao pão seco para acompanhar o chocolate de cada dia. Do Carrascal até Almaraz, quatorze léguas, temos o luxo de possuir um postilhão, de chapéu na orelha, jaqueta arruinada, grandes botas fanfarrans, esporas compridas, olhos de uma mobilidade extrema, voz vibrante, cabelos à mercê do vento. Já dançam os guizos, e, ao ruído desse acompanhamento caprichoso, a imaginação do viajante vai também trotando, retendo-se às vezes com o andar indeciso da pesada mala-posta, de outras deixando-se ir ao acaso das suaves e cambiantes ondulações do horizonte. O postilhão é um aragonez, que anda há vinte e seis anos neste serviço improbo de cavalgar todos os dias quatorze horas, a cair neve no inverno, e no verão sob um sol que abrasa, — para ganhar duas pesetas, dezasseis vintens!
Jantamos em Talaverra de la Reina. Tremo que me dêem sopas de chocolate, e interrogo timidamente o cocheiro sobre o género de refeição que nos espera nessa cidade tão ansiosamente desejada pelo meu estômago inquieto: — «Una comida formal!» responde esse excelente espanhol, a quem eu houvera querido presentear com um par de castanholas pela sua resposta consoladora. A comida formal em Espanha consta de uma sopa bastante nutriente, um prato de grãos cozidos com chouriço, toucinho e carne de vaca, coelho guisado, e quase sempre um assado de carneiro; o vinho é excelente, e tive repetidas ocasiões de fazer saúdes à minha pátria com um Valdepenas digno do brinde.
Partimos de novo. É ao cair da tarde. Há apenas uma claridade indecisa e descontente. Avistam-se ainda nas pastagens alguns bois pequenos, de um amarelo vivíssimo, que contemplam com uma espécie de ironia a capoeira em que vamos, e seguem brandamente o seu caminho, por uns campos pardacentos onde obstinados arqueólogos iriam debalde esgravatar a relva sem poderem encontrar os restos dos famigerados castelos da Espanha; alguns nos aparecem ainda, a grandes distâncias, visivelmente enfastiados de estarem para ali no esquecimento, ocupados apenas em sustentarem conforme podem as tradições do país.
Ainda uma longa noite de mala-posta, acompanhados unicamente por montes que se confundem com a serra em transições tão insensíveis como as da serra a confundir-se no céu, e sem encontrarmos senão algum raro viandante, de carabina ao ombro, lenço atado na cabeça, chapéu de abas largas, manta traçada, e polainas altas, e, de légua em légua, os soldados que patrulham de vigia à estrada.
Vai amanhecendo. Os cavalos fatigados encontram enfim alamedas magníficas. Por entre árvores de todos os lados, avista-se ao longe a casaria. Passa-me no espírito um turbilhão de ideias que se combatem, umas a falarem-me de feudalismo, de inquisição, de fanatismo, outras de castanholas, de pandeiros, de cachuchas, de serenatas, de costumes poéticos e pitorescos. Já se erguem no horizonte as grandes torres escuras. É Madrid! Ah! É Madrid enfim!…

Nota bibliográfica
Este texto foi publicado numa crónica da Revista Contemporanea de Portugal e Brasil e posteriormente reescrito no livro Em Hespanha, Cenas de Viagem, 1865.
As imagens mostram pinturas de Goya (1746-1828).
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