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Camilo e os amigos

16 Quarta-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Aristóteles, Camilo Castelo-Branco, Goya

A amizade é coisa séria, que em tempos de Facebook tanta gente trata com volubilidade, mas é no vai-vem da vida que a sua verdadeira qualidade se vê:

 

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
…
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.
…

 

Isto escreveu Camilo Castelo-Branco no soneto que à frente transcrevo.

 

 

Já antes trouxe ao blog uma curta reflexão de Aristóteles (384 a.C.-322a.C.) sobre a amizade, que em parte aqui retomo:

…
Os que têm a amizade com base na utilidade gostam uns dos outros pelo bem que os outros lhes fazem; os que têm uma amizade com base no prazer, gostam uns dos outros pelo próprio prazer que lhes dá.
…

 

Estas formas de amizade são, portanto, meramente acidentais. E são, sobretudo, as formas que frequentemente a amizade reflecte. Há, no entanto, relações de amizade bem mais profundas, sobre as quais Aristóteles reflecte na sua Ética a Nicómaco, as quais frequentemente surgem nos romance com o tempo qualificados de juvenis, e por vezes vemos plasmadas no cinema, ainda que na nossa vida pessoal delas não tenhamos a experiência.

No outro dia, de passagem, referi como em minha opinião Howard Hawks filmou a amizade como ninguém. No anterior artigo com Aristóteles, foram outros os filmes onde de amizade se tratava, o pretexto da reflexão. Hoje é um soneto irónico e amargo de Camilo Castelo-Branco (1825-1890) que reflecte sobre este sentimento precioso.

 

No soneto, a abrir, o poeta embala-se na multidão de amigos que tem, e em como tal facto o faz feliz. Segue-se a evidência de algum cansaço decorrente das exigências de alimentar tal fluxo de amizades (e como isto espelha tanto do comportamento de hoje em relação aos amigos do Facebook, e a quase obrigação de comentar frequentes inanidades). Infelizmente, ao autor aconteceu a tragédia que põe à prova as amizades verdadeiras. E de tantos amigos glorificados, apenas restou um, como o soneto refere em amarga e irónica conclusão.

 

 

Os Meus Amigos

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
 
Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.
 
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

— Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver…
Que cento e nove impávidos marotos!

 

 

Para o Luis que além do mais, me ajudou a localizar a publicação original do soneto.

 

 

Notícia bibliográfica

 

O soneto, inédito à data da morte de Camilo (1 de Junho de 1890), teve publicação póstuma nesse ano, na Revista Illustrada, (vol I, ano 1890, nº 11 de 15 Setembro, pág. 123).
A revista, quinzenal, iniciou publicação em Abril de 1890.
Informação do Camilianista Henrique Marques, Camilliana, ed. 1894.

 

 

Abre o artigo a imagem de um pormenor da pintura de Goya (1746-1828), A merenda à beira do Manzanares.

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Viagens no séc.XIX — Até Madrid com Júlio César Machado

02 Segunda-feira Maio 2016

Posted by viciodapoesia in Prosas

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Goya, Júlio César Machado

Goya 1779 450pxFizeram e farão parte das memórias de várias gerações com algumas posses que foram jovens até aos anos 50 do século XX, as viagens entre Lisboa e Madrid no comboio Lusitânia. Lugar de encontros e namoricos, a tal ponto que uma canção espanhola de sucesso à época dá disso conta: El chachachá del tren  cantado pelas Hermanas Fleta (pode ouvir-se no youtube).

A viagem até Madrid que Júlio César Machado (1835-1890) nos conta é quase cem anos anterior. Ainda o comboio chegava tão só a Badajoz, o resto do percurso era feito em carruagem.

Levados pelo saboroso da prosa entrego-vos à descoberta de um Portugal e Espanha antigos, e às peripécias da viagem.

 

…

Parto no comboio de Badajoz às oito e meia da noite de 26 de Março. Tenho por companheiro o meu amigo o conde d’Óbidos. A nossa entrada na carruagem produz longo murmúrio entre os membros de uma família dos Olivais, de quem temos o prazer de ser companheiros até à segunda estação; dá motivo a isto a nossa toilette um tanto complicada; o conde num copioso traje do touriste, capote à espanhola, bolsa a tiracolo, saco numa das mãos, bengala rija na outra, e uma almofada de vento debaixo de cada braço; eu, quasi em estilo de peregrino, chapéu desabado, jaqueta felpuda, uma almofada de vento pendurada a um saco-mala, um saco-mala pendurado a um chapéu de sol, um chapéu de sol pendurado a mim; — sensação no público. Os guardas contemplam-nos como a dois homens que partem para a Terra Santa.

Conversámos até às onze horas: nenhum de nós quer dormir; à meia-noite já dormimos ambos. Badajoz surpreende-nos pela madrugada; é logo bastante bom um dos habitantes desta capital de província para passar em costume espanhol àquela hora, e dar-me uma forte dose de cor local! A cidade cercada de muralhas, estende-se por uma colina coroada com as ruinas de um castelo velho. Cai uma chuvinha que lisonjeia a providência do meu chapéu de chuva, entramos num carro que nos obriga a bailar sentados o bolero, saltando de barranco para barranco, num caminho atroz que conduz da estação à cidade durante meia hora. Hospeda-nos a fonda das Tres Naciones, coio ignóbil, sem luz, sem roupa, sem criados, e onde se vive mais caro que em Londres ou em S. Petersburgo.

Miguel Beriol, o antigo e inteligente chefe do movimento na estação de Santa Apolónia tinha-me dado o Itinerario da Hespanha e Portugal, uma carta de recomendação, e um charuto bom; fumo o charuto, guardo a carta, e olho para o livro… fechado: é que tem oitocentas e oito paginas! e a mim assustam-me os livros volumosos; não me atrevo a principia-los com medo de não os poder acabar. Estou em preferir uma estrofe de Horácio à Ilíada ou a Odisseia, e qualquer breve linha do Tácito ao mais belo período de Cícero. Dava-me por feliz se pudesse encerrar a historia numa página, meter a filosofia numa frase, e apertar toda a poesia humana nalguns versos. Agora por exemplo que é Abril, não respiramos nós toda a Primavera numa só flor? Se pudesse ser assim com os livros, por alguma arte mágica!

Fumei o charuto durante estas considerações — e passo a entregar a carta de recomendação, que é para mr. De Varenne, chefe da estação de Badajoz. Ao subir a escada, encontro uma gentil espanhola de dezasseis anos, que a desce cantando, pulando, e rindo; cumprimenta-me com um ar cintilante de alegria, e precipita-se no jardim, chilreando sozinha como um bando de aves. Que saltinhar gracioso! À proporção que se afasta do solo, rouba o que quer que seja aos céus, aonde parecia querer chegar; desabrocha-lhe nos lábios uma trova andaluza, como flores proféticas de Espanha: paro um instante a escutá-la; larga a voz numa maviosa canção de amores, em que a ideia desprende as asas e a alma se eleva em toda a luz como o passarinho que no voo deixa brilhar as cores!

Subo. De Varenne está num gabinete ao lado da sala onde espero algum tempo. Algumas vozes de mulheres, brincando, cercam, interrompem e sufocam a dele; aí me aparece de novo a desconhecida do jardim, e vai misturar-se ao coro. Que casa é esta? Instantes depois, em conversação, fico sabendo que De Varenne é casado, que a visão que me surpreendeu à entrada é uma vizinha, e que as outras vozes são as de suas três irmãs, todas bonitas, todas de feição ardente e peninsular como ela, cabelos negros, olhos de longas pestanas que lhes resguardam a luz para nos não cegar, figura esbelta, sorriso límpido, voz melodiosa e sedutora. De Varenne é casado com uma compatriota nossa, linda filha de Coimbra que o destino enviou a Badajoz para glória da formosura portuguesa. A ruidosa galhofa das vizinhas, em visita ali, visita íntima, visita de toda a hora, explicou-se-me pois: eram espanholas em vida familiar — o que significa que eram o que pode haver de maior viveza, jovialidade e travessura sob o tecto de uma casa. Que graça, que animação, que ardor galante! No teatro, essa noite, — porque em Badajoz há teatro, por sinal que o chão é de ladrilho! — estiveram essas meninas explicando-me quem eram as pessoas que eu via nos diferentes camarotes.

— E aquele? perguntei, indicando um deles. — Um proprietário.

— Riquíssimo?

— Não!

— Pobríssimo?

— Tão pouco. Regularíssimo!

A vida em Badajoz é de uma insipidez honesta: de manhã trata-se dos negócios; à tarde vai-se para o campo de São João, praça onde está a catedral, o teatro, a melhor farmácia, o melhor botequim, — que botequim, Deus meu! — e, ao centro muitos embuçados como nos melodramas, desde o elegante com a sua capa de bandas de veludo carmesim, até ao maltrapilho que se embrulha com o maior garbo nos farrapos de um capote paradoxal; e à noite, as donzelas vão falar com os seus namorados da janela baixa de grades, enquanto os serenos entoam o seu pregão de hora em hora: Ave Maria puríssima, son las diez, y está sereno, ou Ave Maria puríssima, son las onze y lhove!

Depois de esperarmos dois dias que houvesse lugares na mala-posta, partimos para Madrid. O conde d’Óbidos, que em todo o tempo de Badajoz esteve dirigindo apóstrofes ao destino, encontra-me cheio de cabelos brancos, ao passo que eu o observo transparente: atribuímos estes fenómenos aos dois dias que passámos na funda das Tres Naciones! A mala-posta consta de uma serie de caixas, uma para guardar o correio, outra para guardar as bagagens, e outra para guardar os passageiros, — tudo velho, tudo a desabar, tudo seguro por cordas, puxado por sete mulas que voam por campos e vales com uma orquestra de pragas, gritos e chicotadas do cocheiro! Já vai fugindo o sol, as casas ficam lá ao longe, alargam-se os horizontes, tudo é charneca e montanhas. Vamos em Espanha. Ó longas contemplações, ó sonhos poéticos, ó saudosa lembrança dos contos e lendas deste país encantado, tenho-vos eu bem presente e não irei perder-vos pelo caminho?

A estrada vai trepando sempre, e gira, e volta, e sobe, e redemoinha em inumeráveis séries de vales, montes, colinas silenciosas e desertas. A fresca madrugada desprende depois o seu acento de tímida luz por aqueles campos sem habitantes, sem casas, sem árvores. À esquerda, estende-se a majestosa serra de Guadarrama em ondulações rápidas e imprevistas que nos mergulham o espírito nas mesmas meditações austeras que o mar suscita porque flutua a mesma ideia do infinito naquelas curvas magníficas que parecem a superfície inquieta das vagas cortadas ao longe pelo vento; e a impressão é mais irresistível ainda, porque, na calma ou na tormenta, tem vozes o mar que não se calam e ondas que não descansam, e a serra está sempre muda, sem movimento e sem vida, confundindo nas nuvens a sua coroa de neve!

Principia para nós outro extenso dia e outra longa noite de mala-posta, alimentando-nos apenas de chocolate que tomamos a ferver, com uma pressa ímpia, nas localidades em que há muda. Em Tragillo há um teatro e um casino em frente mesmo da venta; este esmero de civilização leva-me a pedir manteiga à locandeira; traz-me manteiga de porco e diz-me:

— Si usted la quiere, és de cierdo: no hay de otra!

Fulminado pela descoberta de que em Espanha não há manteiga, continuo recorrendo ao pão seco para acompanhar o chocolate de cada dia. Do Carrascal até Almaraz, quatorze léguas, temos o luxo de possuir um postilhão, de chapéu na orelha, jaqueta arruinada, grandes botas fanfarrans, esporas compridas, olhos de uma mobilidade extrema, voz vibrante, cabelos à mercê do vento. Já dançam os guizos, e, ao ruído desse acompanhamento caprichoso, a imaginação do viajante vai também trotando, retendo-se às vezes com o andar indeciso da pesada mala-posta, de outras deixando-se ir ao acaso das suaves e cambiantes ondulações do horizonte. O postilhão é um aragonez, que anda há vinte e seis anos neste serviço improbo de cavalgar todos os dias quatorze horas, a cair neve no inverno, e no verão sob um sol que abrasa, — para ganhar duas pesetas, dezasseis vintens!

Jantamos em Talaverra de la Reina. Tremo que me dêem sopas de chocolate, e interrogo timidamente o cocheiro sobre o género de refeição que nos espera nessa cidade tão ansiosamente desejada pelo meu estômago inquieto: — «Una comida formal!» responde esse excelente espanhol, a quem eu houvera querido presentear com um par de castanholas pela sua resposta consoladora. A comida formal em Espanha consta de uma sopa bastante nutriente, um prato de grãos cozidos com chouriço, toucinho e carne de vaca, coelho guisado, e quase sempre um assado de carneiro; o vinho é excelente, e tive repetidas ocasiões de fazer saúdes à minha pátria com um Valdepenas digno do brinde.

Partimos de novo. É ao cair da tarde. Há apenas uma claridade indecisa e descontente. Avistam-se ainda nas pastagens alguns bois pequenos, de um amarelo vivíssimo, que contemplam com uma espécie de ironia a capoeira em que vamos, e seguem brandamente o seu caminho, por uns campos pardacentos onde obstinados arqueólogos iriam debalde esgravatar a relva sem poderem encontrar os restos dos famigerados castelos da Espanha; alguns nos aparecem ainda, a grandes distâncias, visivelmente enfastiados de estarem para ali no esquecimento, ocupados apenas em sustentarem conforme podem as tradições do país.

Ainda uma longa noite de mala-posta, acompanhados unicamente por montes que se confundem com a serra em transições tão insensíveis como as da serra a confundir-se no céu, e sem encontrarmos senão algum raro viandante, de carabina ao ombro, lenço atado na cabeça, chapéu de abas largas, manta traçada, e polainas altas, e, de légua em légua, os soldados que patrulham de vigia à estrada.

Vai amanhecendo. Os cavalos fatigados encontram enfim alamedas magníficas. Por entre árvores de todos os lados, avista-se ao longe a casaria. Passa-me no espírito um turbilhão de ideias que se combatem, umas a falarem-me de feudalismo, de inquisição, de fanatismo, outras de castanholas, de pandeiros, de cachuchas, de serenatas, de costumes poéticos e pitorescos. Já se erguem no horizonte as grandes torres escuras. É Madrid! Ah! É Madrid enfim!…

Goya - O Guarda-sol 1776-78 500px

 

Nota bibliográfica

 

Este texto foi publicado numa crónica da Revista Contemporanea de Portugal e Brasil e posteriormente reescrito no livro Em Hespanha, Cenas de Viagem, 1865.

 

As imagens mostram pinturas de Goya (1746-1828).

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Curta visita à poesia de Jorge Sousa Braga

03 Segunda-feira Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Bosh, Gauguin, Goya, Jorge Sousa Braga, Leonardo da Vinci, Picasso

The Cure of Folly (Extraction of the Stone of Madness) 200px

Todos aqueles que nos primeiros dias de Março perscrutavam atentamente o céu ficaram desapontados. Este ano as andorinhas chegarão atrasadas, devido a uma greve dos controladores de voo.

 

Os livros vêm habitualmente ao meu encontro, e aconteceu uma destas tardes de novo. Tencionava sair mas com a invernia lá fora era tudo o que não me apetecia. Peguei ao acaso num livro da estante: era a poesia reunida de Jorge Sousa Braga (1957). Comecei a ler e por um par de horas gozei o que não esperava com a pensada saída para a rua.

 

São familiares aos leitores do blog traduções poéticas de Jorge Sousa Braga, frequentemente grandes poemas em português, mas da sua poesia original nunca aqui falei.

 

Há sobretudo três  motivos que me fazem gostar de muitos dos poemas que escreveu: a concisão do verso, a cultura que subjaz aos poemas, e o não fugir no assunto à crueza da vida. O modo corrosivo de ecos surrealizantes como nos conta a vida em alguns dos poemas acrescenta um sabor irresistível a esta poesia. Em vários poemas da reduzida escolha de hoje o absurdo reina em grande esplendor. Os poemas dispensam comentários de intermediação e aí ficam.

Leonardo da Vinci - Mona Lisa100px

Resolvido o enigma do sorriso da Gioconda: um dos meninos do Botticelli surpreendeu-a, de noite, com um dedo acariciando o baixo ventre.

Um levantino apaixonou-se pelo crepúsculo e estabeleceu aí residência permanente. Vive agora num avião que se desloca em sentido inverso ao da rotação da terra.

As autoridades marítimas investigam o misterioso desaparecimento da linha do horizonte ao longo de toda a costa atlântica.

Alguns enxames de abelhas invadiram o Museu do Louvre e exploraram cuidadosamente todas as naturezas-mortas com flores, não tendo deixado um único grão de pólen.

 

Les Demoiselles d'Avignon - 1907-19 150px

As demoiselles de Avignon foram surpreendidas numa rusga da polícia, nas imediações do museu.

 

Um homem disfarçado de arco-íris assaltou em pleno dia uma agência bancária mesmo no centro da cidade; alvejado a tiro na perseguição que depois lhe foi movida pela polícia, desfez-se numa bátega de chuva.

 

Um homem que se propusera pintar o Monte Branco de azul e que para o efeito comprara várias latas de tinta e um pincel desapareceu no meio de um violento nevão.

 

Passara quarenta anos de binóculos assestados, a seguir as migrações das aves e a tomar estranhos apontamentos num caderno. A última vez que foi visto voava a meia altura em direcção ao sul.

 

Deixara de acreditar nas ciências tradicionais, desde que se sentara em frente de uma montanha e gritava morango e a montanha lhe devolverá cinquenta alperces, e ele gritara vermelho e a montanha lhe devolvera rosa rosa rosa, um rosa cada vez mais ténue.

 

Goya - Os fusilamentos 175px

Cansados de estarem sempre na mesma posição, os fuzilados de Goya resolveram inverter os papéis e são agora eles que seguram os fusos.

Gauguin_Paul-The_Spirit_of_the_Dead_Keep_Watch 200px

Uma das vahinêes do Gauguin estava perdendo a cor de pêra-abacate. O conservador do museu decidiu proporcionar-lhe umas curtas férias de restabelecimento no Taiti.

in A greve dos controladores de voo

 

Escrito na margem de um rio

Nunca ouvi dizer

que alguém tivesse morrido

afogado em esperma

 

Streape-tease

 

Quanto mais me dispo

menos nu

me sinto

in Plano para salvar Veneza

 

De novo o silêncio

O silêncio é como se fosse água. Daquela água pura da montanha que se bebe directamente pelo coração.

 

O guarda-rios

É tão difícil guardar um rio

quando ele corre

dentro de nós

 

Cataratas

Nenhum rio consegue voar durante muito tempo. Uns segundos no máximo e ei-los que se despenham de muitos metros de altura. Ainda mal refeitos da queda, começam logo a correr a uma velocidade vertiginosa. E de novo se despenham. E só desistem quando se lhes depara o mar pela frente.

 

A última pincelada

Viveu em tempos um pintor que nunca conseguia acabar de pintar uma ave, fosse ela uma cegonha ou uma garça. Quando se preparava para dar a ultima pincelada, ela levantava voo.

 

E o pintor ficava muito tempo ainda a persegui-la com o pincel no céu azul…

 

Foz

Com água no bico

aves marinhas combatem

o incêndio do crepúsculo

 

Sete da manhã

o sol acorda

com olheiras enormes

 

Celas

Lua cheia:

com esta moeda de oiro

posso comprar um sorriso

in Os pés luminosos

 

Canção

Este esperma é puro

como a água de um iceberg

 

Colhido por masturbacao

centrifugado capacitado…

 

Bebe deste esperma simples

ou com gelo e limão

 

Só assim conseguirás

a redenção.

 

Tatuagem

Tinha uma rosa negra tatuada

num dos grandes lábios. E o

 

Púbis religiosamente depilado

como se de ervas daninhas se tratasse

in A ferida aberta

 

A erva da fortuna

A erva da fortuna cresce como por encanto nas orelhas dos políticos, o primeiro-ministro proclama a amnistia para os cucos dos relógios, o degelo nas relações internacionais restabelece o nível das águas nas albufeiras, o ministro da energia esfrega as mãos de contente. Embora o boletim meteorológico seja controlado pelo governo, nuvens cor de chumbo toldam frequentemente o horizonte, os pescadores de águas turvas procuram o alto mar, uma chuva de impostos cai de imprevisto, ah a chuva na primavera, escrevem os poetas.

 

As andorinhas podem passar livremente a fronteira. Os policias oferecem grinaldas aos condutores de veículos mal estacionados. O cio invade a assembleia. Os deputados bombardeiam-se com pólen. Um nostálgico do outono argumenta: a primavera de Praga também foi de lagartas nas estradas.

in De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu

 

Os poemas foram originalmente publicados nos livros mencionados e transcritos de O Poeta Nu [poesia reunida], Assírio & Alvim, Lisboa, 2007.

 

As imagens respeitam às pinturas assunto dos poemas excepto para Gauguin em que nenhuma das pinturas do Taiti é explicitamente referida e é escolha minha.

O poeta é profissionalmente médico obstetra e não neuro-cirurgião. A escolha de A extração da pedra da loucura, pintura de Hieronymous Bosch (1450-1516) para abrir o artigo decorre apenas das pistas que a sua poesia me enviou para ler o mundo.

 

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Jorge de Sena (1919-1978 ) – Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

15 Domingo Jan 2012

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Convite à arte

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Goya, Jorge de Sena

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya de Jorge de Sena (1919-1978 ) acompanha-me desde que adulto me conheço. Já a ele me referi na página O Autor. Hoje arquivo-o integralmente no blog entre o reduzido número de poemas do meu cânone.

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão-de ser em vão. Confesso que
muiltas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Lisboa, 25 de Junho de 1959

Para quem não conheça a pintura evocada no título do poema, eis uma reprodução acompanhada de um detalhe ampliado.

Francisco de GOYA Y LUCIENTES (1746-1828)
O  3 de Maio de 1808: A execução dos defensores de Madrid
Óleo s/tela, 266 x 345 cm, 1814
Museo del Prado, Madrid
Detalhe do indizível enfrentar da morte:

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A duquesa de Alba pintada por Goya (1746-1828)

06 Quinta-feira Out 2011

Posted by viciodapoesia in Convite à arte

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Goya

Hoje que estou em maré de quotidiano, desvio-me para matéria de noticiário. Com algum escândalo contido na voz, ontem, um locutor anunciava na TV o casamento da actual duquesa de Alba aos 85 anos. Abençoados 85 anos que ainda a levam para o sonho das delicias conjugais. Mostraram algumas imagens da senhora em traje da cerimónia e surpreendi-me ao constatar a semelhança física com a sua antepassada pintada por Goya, de quem as crónicas só levemente deixam transparecer a voluntariedade de comportamento. Arquivo no blog a imagem dessa pintura assinalando tão auspicioso evento e proporcionando a quem não conhece a pintura de Goya, alguns exemplos felizes.

A duquesa de Alba

e um detalhe do rosto.

Antes de avançar pergunto-me se esta pintura conhecida por Leocadia terá algo a ver com a duquesa. Terá?

Depois da duquesa de Alba deixo-vos, primeiro com duas garbosas mulheres, e a seguir poderão ver os estragos do tempo no belo sexo quando ainda não existiam operações plásticas.

E finalmente algumas cenas de ar livre, a verdadeira revolução operada por Goya na pintura ocidental

E terminemos com a Maja vestida e a Maja nua. Embora tenha sido aventado durante algum tempo que a modelo destas duas pinturas foi a 13ª duquesa de Alba mostrada acima, com quem Goya teve envolvimento amoroso, ao que se disse, modernamente aceita-se que o retrato (pelo menos da face) é um compósito de vários rostos.

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