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Viagens no séc.XIX — Até Madrid com Júlio César Machado

02 Segunda-feira Maio 2016

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Goya, Júlio César Machado

Goya 1779 450pxFizeram e farão parte das memórias de várias gerações com algumas posses que foram jovens até aos anos 50 do século XX, as viagens entre Lisboa e Madrid no comboio Lusitânia. Lugar de encontros e namoricos, a tal ponto que uma canção espanhola de sucesso à época dá disso conta: El chachachá del tren  cantado pelas Hermanas Fleta (pode ouvir-se no youtube).

A viagem até Madrid que Júlio César Machado (1835-1890) nos conta é quase cem anos anterior. Ainda o comboio chegava tão só a Badajoz, o resto do percurso era feito em carruagem.

Levados pelo saboroso da prosa entrego-vos à descoberta de um Portugal e Espanha antigos, e às peripécias da viagem.

 

…

Parto no comboio de Badajoz às oito e meia da noite de 26 de Março. Tenho por companheiro o meu amigo o conde d’Óbidos. A nossa entrada na carruagem produz longo murmúrio entre os membros de uma família dos Olivais, de quem temos o prazer de ser companheiros até à segunda estação; dá motivo a isto a nossa toilette um tanto complicada; o conde num copioso traje do touriste, capote à espanhola, bolsa a tiracolo, saco numa das mãos, bengala rija na outra, e uma almofada de vento debaixo de cada braço; eu, quasi em estilo de peregrino, chapéu desabado, jaqueta felpuda, uma almofada de vento pendurada a um saco-mala, um saco-mala pendurado a um chapéu de sol, um chapéu de sol pendurado a mim; — sensação no público. Os guardas contemplam-nos como a dois homens que partem para a Terra Santa.

Conversámos até às onze horas: nenhum de nós quer dormir; à meia-noite já dormimos ambos. Badajoz surpreende-nos pela madrugada; é logo bastante bom um dos habitantes desta capital de província para passar em costume espanhol àquela hora, e dar-me uma forte dose de cor local! A cidade cercada de muralhas, estende-se por uma colina coroada com as ruinas de um castelo velho. Cai uma chuvinha que lisonjeia a providência do meu chapéu de chuva, entramos num carro que nos obriga a bailar sentados o bolero, saltando de barranco para barranco, num caminho atroz que conduz da estação à cidade durante meia hora. Hospeda-nos a fonda das Tres Naciones, coio ignóbil, sem luz, sem roupa, sem criados, e onde se vive mais caro que em Londres ou em S. Petersburgo.

Miguel Beriol, o antigo e inteligente chefe do movimento na estação de Santa Apolónia tinha-me dado o Itinerario da Hespanha e Portugal, uma carta de recomendação, e um charuto bom; fumo o charuto, guardo a carta, e olho para o livro… fechado: é que tem oitocentas e oito paginas! e a mim assustam-me os livros volumosos; não me atrevo a principia-los com medo de não os poder acabar. Estou em preferir uma estrofe de Horácio à Ilíada ou a Odisseia, e qualquer breve linha do Tácito ao mais belo período de Cícero. Dava-me por feliz se pudesse encerrar a historia numa página, meter a filosofia numa frase, e apertar toda a poesia humana nalguns versos. Agora por exemplo que é Abril, não respiramos nós toda a Primavera numa só flor? Se pudesse ser assim com os livros, por alguma arte mágica!

Fumei o charuto durante estas considerações — e passo a entregar a carta de recomendação, que é para mr. De Varenne, chefe da estação de Badajoz. Ao subir a escada, encontro uma gentil espanhola de dezasseis anos, que a desce cantando, pulando, e rindo; cumprimenta-me com um ar cintilante de alegria, e precipita-se no jardim, chilreando sozinha como um bando de aves. Que saltinhar gracioso! À proporção que se afasta do solo, rouba o que quer que seja aos céus, aonde parecia querer chegar; desabrocha-lhe nos lábios uma trova andaluza, como flores proféticas de Espanha: paro um instante a escutá-la; larga a voz numa maviosa canção de amores, em que a ideia desprende as asas e a alma se eleva em toda a luz como o passarinho que no voo deixa brilhar as cores!

Subo. De Varenne está num gabinete ao lado da sala onde espero algum tempo. Algumas vozes de mulheres, brincando, cercam, interrompem e sufocam a dele; aí me aparece de novo a desconhecida do jardim, e vai misturar-se ao coro. Que casa é esta? Instantes depois, em conversação, fico sabendo que De Varenne é casado, que a visão que me surpreendeu à entrada é uma vizinha, e que as outras vozes são as de suas três irmãs, todas bonitas, todas de feição ardente e peninsular como ela, cabelos negros, olhos de longas pestanas que lhes resguardam a luz para nos não cegar, figura esbelta, sorriso límpido, voz melodiosa e sedutora. De Varenne é casado com uma compatriota nossa, linda filha de Coimbra que o destino enviou a Badajoz para glória da formosura portuguesa. A ruidosa galhofa das vizinhas, em visita ali, visita íntima, visita de toda a hora, explicou-se-me pois: eram espanholas em vida familiar — o que significa que eram o que pode haver de maior viveza, jovialidade e travessura sob o tecto de uma casa. Que graça, que animação, que ardor galante! No teatro, essa noite, — porque em Badajoz há teatro, por sinal que o chão é de ladrilho! — estiveram essas meninas explicando-me quem eram as pessoas que eu via nos diferentes camarotes.

— E aquele? perguntei, indicando um deles. — Um proprietário.

— Riquíssimo?

— Não!

— Pobríssimo?

— Tão pouco. Regularíssimo!

A vida em Badajoz é de uma insipidez honesta: de manhã trata-se dos negócios; à tarde vai-se para o campo de São João, praça onde está a catedral, o teatro, a melhor farmácia, o melhor botequim, — que botequim, Deus meu! — e, ao centro muitos embuçados como nos melodramas, desde o elegante com a sua capa de bandas de veludo carmesim, até ao maltrapilho que se embrulha com o maior garbo nos farrapos de um capote paradoxal; e à noite, as donzelas vão falar com os seus namorados da janela baixa de grades, enquanto os serenos entoam o seu pregão de hora em hora: Ave Maria puríssima, son las diez, y está sereno, ou Ave Maria puríssima, son las onze y lhove!

Depois de esperarmos dois dias que houvesse lugares na mala-posta, partimos para Madrid. O conde d’Óbidos, que em todo o tempo de Badajoz esteve dirigindo apóstrofes ao destino, encontra-me cheio de cabelos brancos, ao passo que eu o observo transparente: atribuímos estes fenómenos aos dois dias que passámos na funda das Tres Naciones! A mala-posta consta de uma serie de caixas, uma para guardar o correio, outra para guardar as bagagens, e outra para guardar os passageiros, — tudo velho, tudo a desabar, tudo seguro por cordas, puxado por sete mulas que voam por campos e vales com uma orquestra de pragas, gritos e chicotadas do cocheiro! Já vai fugindo o sol, as casas ficam lá ao longe, alargam-se os horizontes, tudo é charneca e montanhas. Vamos em Espanha. Ó longas contemplações, ó sonhos poéticos, ó saudosa lembrança dos contos e lendas deste país encantado, tenho-vos eu bem presente e não irei perder-vos pelo caminho?

A estrada vai trepando sempre, e gira, e volta, e sobe, e redemoinha em inumeráveis séries de vales, montes, colinas silenciosas e desertas. A fresca madrugada desprende depois o seu acento de tímida luz por aqueles campos sem habitantes, sem casas, sem árvores. À esquerda, estende-se a majestosa serra de Guadarrama em ondulações rápidas e imprevistas que nos mergulham o espírito nas mesmas meditações austeras que o mar suscita porque flutua a mesma ideia do infinito naquelas curvas magníficas que parecem a superfície inquieta das vagas cortadas ao longe pelo vento; e a impressão é mais irresistível ainda, porque, na calma ou na tormenta, tem vozes o mar que não se calam e ondas que não descansam, e a serra está sempre muda, sem movimento e sem vida, confundindo nas nuvens a sua coroa de neve!

Principia para nós outro extenso dia e outra longa noite de mala-posta, alimentando-nos apenas de chocolate que tomamos a ferver, com uma pressa ímpia, nas localidades em que há muda. Em Tragillo há um teatro e um casino em frente mesmo da venta; este esmero de civilização leva-me a pedir manteiga à locandeira; traz-me manteiga de porco e diz-me:

— Si usted la quiere, és de cierdo: no hay de otra!

Fulminado pela descoberta de que em Espanha não há manteiga, continuo recorrendo ao pão seco para acompanhar o chocolate de cada dia. Do Carrascal até Almaraz, quatorze léguas, temos o luxo de possuir um postilhão, de chapéu na orelha, jaqueta arruinada, grandes botas fanfarrans, esporas compridas, olhos de uma mobilidade extrema, voz vibrante, cabelos à mercê do vento. Já dançam os guizos, e, ao ruído desse acompanhamento caprichoso, a imaginação do viajante vai também trotando, retendo-se às vezes com o andar indeciso da pesada mala-posta, de outras deixando-se ir ao acaso das suaves e cambiantes ondulações do horizonte. O postilhão é um aragonez, que anda há vinte e seis anos neste serviço improbo de cavalgar todos os dias quatorze horas, a cair neve no inverno, e no verão sob um sol que abrasa, — para ganhar duas pesetas, dezasseis vintens!

Jantamos em Talaverra de la Reina. Tremo que me dêem sopas de chocolate, e interrogo timidamente o cocheiro sobre o género de refeição que nos espera nessa cidade tão ansiosamente desejada pelo meu estômago inquieto: — «Una comida formal!» responde esse excelente espanhol, a quem eu houvera querido presentear com um par de castanholas pela sua resposta consoladora. A comida formal em Espanha consta de uma sopa bastante nutriente, um prato de grãos cozidos com chouriço, toucinho e carne de vaca, coelho guisado, e quase sempre um assado de carneiro; o vinho é excelente, e tive repetidas ocasiões de fazer saúdes à minha pátria com um Valdepenas digno do brinde.

Partimos de novo. É ao cair da tarde. Há apenas uma claridade indecisa e descontente. Avistam-se ainda nas pastagens alguns bois pequenos, de um amarelo vivíssimo, que contemplam com uma espécie de ironia a capoeira em que vamos, e seguem brandamente o seu caminho, por uns campos pardacentos onde obstinados arqueólogos iriam debalde esgravatar a relva sem poderem encontrar os restos dos famigerados castelos da Espanha; alguns nos aparecem ainda, a grandes distâncias, visivelmente enfastiados de estarem para ali no esquecimento, ocupados apenas em sustentarem conforme podem as tradições do país.

Ainda uma longa noite de mala-posta, acompanhados unicamente por montes que se confundem com a serra em transições tão insensíveis como as da serra a confundir-se no céu, e sem encontrarmos senão algum raro viandante, de carabina ao ombro, lenço atado na cabeça, chapéu de abas largas, manta traçada, e polainas altas, e, de légua em légua, os soldados que patrulham de vigia à estrada.

Vai amanhecendo. Os cavalos fatigados encontram enfim alamedas magníficas. Por entre árvores de todos os lados, avista-se ao longe a casaria. Passa-me no espírito um turbilhão de ideias que se combatem, umas a falarem-me de feudalismo, de inquisição, de fanatismo, outras de castanholas, de pandeiros, de cachuchas, de serenatas, de costumes poéticos e pitorescos. Já se erguem no horizonte as grandes torres escuras. É Madrid! Ah! É Madrid enfim!…

Goya - O Guarda-sol 1776-78 500px

 

Nota bibliográfica

 

Este texto foi publicado numa crónica da Revista Contemporanea de Portugal e Brasil e posteriormente reescrito no livro Em Hespanha, Cenas de Viagem, 1865.

 

As imagens mostram pinturas de Goya (1746-1828).

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O vitelo do quinto andar – episódio por Júlio César Machado

31 Quarta-feira Dez 2014

Posted by viciodapoesia in Prosa

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Júlio César Machado

Despeço-me de 2014 no blog com esta prosa bem-humorada de Júlio César Machado (1835-1890).

Para todos um feliz 2015 e até para o ano.

Francesco Clemente - Água e vinho

O disparate francês, deve dizer-se, não se parece com o de nenhum povo; é sempre picante, imaginoso, excêntrico.

Um homem compra um vitelinho, e leva-o para casa; dá-lhe sempre de comer, trata-o com carinho, e deixa-o ir crescendo na água-furtada em que habita. Um belo dia, com o andar do tempo, o vitelinho torna-se num boi. A vizinhança inquieta-se, assusta-se, despeita-se, e dá parte à autoridade. A autoridade visita a água-furtada, e encontra o boi magestosamente nédio no meio da sala, sem poder andar para traz nem para diante, porque a enche com a sua colossal corpulência. O dono da casa pergunta delicadamente a que deve o prazer daquela visita inesperada, ao que a autoridade, no auge do pasmo e da indignação, responde:

—Atreve-se a perguntá-lo! Vinha por causa desse animal enorme, esse boi maravilhoso…

—Vem visitar o meu boi? Oh ! Faz favor de entrar!

—O senhor sabe perfeitamente que a lei proíbe criar bois na cidade.

—Na cidade?

—Tanto mais dentro duma casa.

—Sim?

—E mais ainda, se mais pode haver, num quarto andar.

—Não conta a sobreloja?

—Num quinto andar.

—Exactamente.

—O seu procedimento tão novo e inexplicável…

—Como, inexplicável! Vi uma vez na rua um vitelinho, manso, comedido, gracioso, saltitante, levei-me de simpatia, e comprei-o.

—Senhor.

—Comprei-o, eis tudo.

—Senhor!

—Comprei-o, e trouxe-o para casa. Era um entretenimento. Pequenino, jeitoso, meigo…

—Mas o senhor bem sabia que ele havia de crescer!

—Não sabia!

—Como, não sabia?

—Suspeitava; mas afirmaram-me que não.

A autoridade encoleriza-se,

—Está caçoando porventura!? Então ignorava que os bois em pequenos são vitelos, e que os vitelos vêem a ser bois?

—Tinha ideia de ouvir contar isso, mas como me afiançaram que não crescia, e eu me lembrava de ter comprado uma ocasião um cão pequenino que nunca cresceu mais, persuadi-me que o vitelo seria da mesma natureza: porque não?

—Todo este caso é original, e vai seguir os seus trâmites. Comecemos por tirar daqui esse inquilino de que o senhorio não teve notícia.

—Principiemos!

Os oficiais de diligências, depois de algumas inteligentes manobras, compreenderam a dificuldade da sua missão, porque o boi, não cabendo pela porta nem pela janela, não podia sair. A autoridade estava fula de cólera, os vizinhos tinham vindo todos para a escada, os beleguins praguejavam, e o boi olhava para todos com um verosimil ar de surpresa.

Albert Eckert - Pensando sobre o futuro

A autoridade, depois de uma pausa cheia de reflexão, disse:

—Mate-se o boi.

A esta palavra, o dono da casa ia protestar, quando os vizinhos e principalmente as vizinhas largaram numa gritaria infernal opondo-se a essa resolução, que ia espalhar desassossego no bairro e sangue no prédio. A esposa do senhorio principiou a gabar o boi, o inquilino tomou a liberdade de lho oferecer, o senhorio não consentiu, a autoridade disse que tinha pressa, os vizinhos agarraram-se todos ao boi a chorar, e o senhorio consolou os ânimos por esta frase:

—Vou cortar o nó gordio!

Os vizinhos disseram todos: Ah!…

—Corta o nó gordio, meu homem! exclamou a esposa enxugando copiosas lágrimas.

A autoridade significou por um gesto cheio de dignidade, que estava preparada a ouvir.

—Aproveito a ocasião para fazer obras no prédio, e mando alargar a escada, de maneira que o boi possa sair!

—Isso leva muito tempo. É impossível; respondeu a autoridade. Isto há-de decidir-se até amanhã.

—Pois decidir-se-á hoje mesmo, replicou o senhorio em tom picado. Esta tarde alargam-se as janelas, e o boi sairá içado.

Nessa tarde, com grande alvoroço do bairro e dos curiosos, içou-se o boi que saiu por uma ex-janela, gloriosamente demolida por seis diligentes pedreiros.

 

A imagem que acompanha o texto a abrir mostra uma obra de Francesco Clemente (1952) de seu nome: Água e Vinho.

No corpo da prosa, o boi – vaca – vitelo, surpreso, da autoria de Albert Ecker, chamou-lhe o autor, “Pensando sobre o futuro”.

 

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Sopa da pedra – a lenda recontada por Júlio César Machado

29 Sábado Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Prosa, Prosas

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Júlio César Machado

 

Aertsen_Pieter-Market_Woman_with_Vegetable_Stall

Por um mecanismo informático cujo segredo estará ao alcance de poucos, o Facebook insiste em mostrar-me, na minha qualidade de administrador da página viciodapoesia, páginas dedicadas à culinária moderna, com o pretexto de que têm, o que chamam, um desempenho igual à minha.
Não é coisa que me preocupe ou incomode, e sobretudo trouxe-me a ideia de mostrar aos leitores do vicio da poesia não culinária moderna, mas a antiquíssima sopa da pedra ou sopa de pedra.
A sopa da pedra é, para quem não sabe, uma sopa de sustancia, com hortaliças e carne, tradicional da culinária portuguesa, sobretudo no Ribatejo, e em Almeirim em particular, onde a pedra é de lei; e presença literária num dos contos tradicionais portugueses.
Esta sopa da pedra terá sido expediente de um frade mendicante para obter alimento junto dos mais renitentes, tal como a tradição a conta. A lenda mereceu a Júlio César Machado (1835-1890) um ligeiro reenquadramento, voltando a contá-la num dos seus livros de prosas avulsas.
A graça e frescura do estilo com que esta arqui-conhecida estória está contada, leva-me à sua transcrição, em ortografia modernizada.

Sopa de pedra por Júlio César Machado

Foram dois rapazes, da tropa, dois pobres moços, dois tristes soldados, aboletados para casa de um grande somítico, em Peniche.
Apressou-se logo em lhes ir dizendo o homem:
—Ó filhos, vocemecês vêem para cá! Ora, que ideia! Não lhes posso dar senão água e lume.
—Água e quê?
—E lume.
—Já não é mau.
—Está visto, que não é mau. Mas advirto-os desde já, para saberem a tempo com o que podem
contar, e não me azoinarem depois com pedidos…
—Diz bem.
—Tenho razão ou não tenho?
—Tem, tem razão.
—Cada um dá o que pode.
—Está bem de ver!
—Não é assim!?
—É.
—Pois aí está. Água e lume têm vocês aqui. O mais arranjem-o.
—Sim, senhor
—Estamos entendidos.

Puseram água ao lume. Depois, disse um para o outro:
—Ó Rufino, vai buscar a coisa, hein?
—A água já ferve ?
—Não, mas para haver tempo de se lavar.
—Ah ! Isso, sim. E para o dono da casa:
—Com licença!
—Você vai sair?
—É um instante. Faz favor de não fechar a porta.
—Não fechar a porta! Deus me livre disso! A porta quer-se sempre fechada.
—Vou ali buscar uma coisa, e já volto.
Dali a nada voltou com uma pedra.
—Vá, disse-lhe o outro; lava-a, que a água já principia a ferver.
O soldado lavou a pedra muito bem lavada, em três águas, como se faz ao arroz, depois escorreu-a, limpou-a, e meteu-a na panela.
O somítico estava pasmado. E mais pasmado ficou, quando os viu deitarem sal na panela e provarem.
—Que tal está? perguntou um dos aboletados.
—Não está má.
—Não o deve estar, porque a pedra parece boa.
—Ah! Isso é ela. De boa qualidade.
—Precisa ferver.
—É o que precisa. E se tivesse uma hortaliça qualquer, uma cabecinha de nabo, umas cenouras, estava obra
—Homens, lá por isso não seja a dúvida! Ponderou o dono da casa. Tomem vocês lá duas cenouras, e duas cabeças de nabo, e mesmo também a rama, se querem.
—Pois venha lá isso.
Meteram os vegetais para dentro da panela.
Daí a bocado provaram.
—Que tal vai?
—Vai bem. Está mesmo boa. Por mais um nadinha, ficaria óptima!
—Que nadinha é? perguntou o avarento.
—Um bocadinho de toucinho, ou banha de porco … respondeu um dos soldados.
—Pois, tire lá: mas, hão de dar-me a provar, porque tenho curiosidade de vêr o que sai daí.
—Sai uma sopa só fina!
—Mas, isso, é sopa de pedra?
—É sim, senhor. Também se faz de seixos. Mas, esta, é mais corda.
—E a primeira vez que tal vejo!
—Há-de gostar.
Foi-se o soldado ao toucinho, cortou-lhe um naco, deitou-o no caldo da hortaliça e deixou ferver.
—Cheira, cheira, isso já.
—E bem
—Cheira bem, cheira bem.
—Ora! pois é pitéu. E então em levando um anexim, que lhe falta, é de uma pessoa lamber o prato…
—O que é que falta?
—Um pedacinho de chouriço, ou mesmo linguiça. Isso então fica maravilha!
—Homem, disse o somítico, lá por causa de um apêndice tão fácil de achar á mão, não deixe essa extraordinária comida de chegar a ser o que se diga perfeita …
Juntou-se-lhe o chouriço.
Coseu, coseu…
Deitava um cheiro …
—Ó senhores, que cheiro! disse o unhas de fome.
—Cheira muito bem, meu senhor, e melhor há-de saber! redarguiu um dos aboletados.
E o outro aboletado:
—Está pronta. Está na conta própria. Agora, em querendo, vamos a ela… Isto com pão, é melhor ainda, se é possível; mas, mesmo sem pão é boa!
O somitico foi buscar um pão.
—Vamos já a isto… Estou com vontade de saborear essa historia…
—Esta historia é mais bonita que a da carochinha, e com isto se diz tudo! Ora, muito bem . .
Uma vez partido o pão à mão …
—Sim! ponderou o outro soldado. Isso é que é de preceito para este caso. Há-de ser por força à mão…
—Sim, sim … Pois seja à mão.
—Mas por força.
—Acredito! basta vocês dizerem!
—Agora despeja-se-lhe o caldo em cima, guardando de reserva o pão suficiente para machucar no toucinho, acompanhado com as ervas… Que tal?! Boa?
—Está óptima! exclamava o homem. Eslá excelente. Vocês são o diabo! Não à gente como são os soldados, para estas coisas! Como vocês fazem sopa de um pedregulho, e fica uma delícia por esta maneira! Não se acredita! Parece bruxaria!
—E para vocemecê vêr
—Cá me fica!…

Bom apetite!

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Elogio de Innocencio

28 Sexta-feira Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Prosa

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A. A. Teixeira de Vasconcellos, Innocencio Francisco da Silva, Inocêncio Francisco da Silva, Júlio César Machado, Revista Contemporânea de Portugal e Brasil

Carl Spitzweg BookwormA1cropedSabem todos quantos por uma vez procuraram uma informação ou minudência sobre a edição portuguesa em livro anterior a 1850, quanto o Dicionário Bibliografico organizado por Innocencio Francisco da Silva (1810-1876) se revelou precioso. Obra ímpar pelo rigor da informação coligida, acrescenta-se dos frequentes e saborosos comentários do seu autor a propósito de pequenos nadas que ele trata com a importância de relevantes factos. Mas são precisamente estas irrelevâncias que muitas vezes fazem dele auxiliar precioso e insubstituível.
Aconteceu-me comprar certo livro antigo, descapado, sem folha de rosto e sem qualquer possibilidade de identificação imediata do seu autor. Era um livro de poesia, talvez do virar do século XVIII para o XIX, isto tanto pelo estilo e assunto dos poemas como pela qualidade do papel e tipo da impressão.. As notas levaram-me a avançar um pouco no tempo e situar o seu autor entre os emigrados em Inglaterra durante o miguelismo, onde se incluiu o jovem Alexandre Herculano. Neste grupo, além de Herculano e Garrett não sabia de outros poetas.
Enquadrado o livro no tempo, percorri o Innocencio, como é carinhosamente conhecido entre bibliófilos e livreiros, e graças à descrição do conteúdo do índice, número de páginas e seu formato, consegui identificar o livro, o seu autor, e o ano de publicação. Tratava-se de Obras Poéticas de Francisco Evaristo Leoni (1804-1874), obra e autor que um destes dias virá ao blog.
Sem as preciosas minudências que Inocêncio acumulou e me fizeram saltar de autor para autor, excluindo-os, nunca tal livro seria identificado. Outras têm sido as ocasiões, embora de forma menos espectacular, em que a consulta do dicionário tem sido preciosa.
Mesmo entre os utilizadores do Dicionário Bibliográfico poucos saberão quem foi o homem. Lembra-lo é um gosto e um acto de justiça mínimo, tanto mais quanto parece ter sido um homem integro com a vida entregue à paixão dos livros.
Esta paixão, como ainda hoje acontece, gera bizarrias de comportamento quais o que certa tarde em Lisboa aconteceu, e Júlio César Machado (1835-1890) narra com alguma graça.
Ora leiam:

De uma ocasião, cavaqueando o Innocencio e o Meréllo, na loja do livreiro Rodrigues, da rua do Crucifixo, farejaram um livro de valia cuidando, qualquer dos dois, que o outro não houvesse dado por ele.
Principiaram então, como que ao desafio, em espertezas, procurando mutuamente afastar o competidor do lugar da maravilha.
Já um chamava o outro para a porta, e lhe narrava não sei que historia em grandes ares de confidência; já o outro consultava o relógio e lhe dizia a hora, adiantando-a, ao passo que lhe perguntava qual fosse a sua hora de jantar. . .
Nem o Meréllo nem o Innocencio arredavam um passo da baiúca do livreiro, recinto encantado da ambicionada jóia. Nisto, não se atrevendo um nem o outro a desampararem a caça, nem, tão pouco, a separarem-se, saíram juntos.
Innocencio, morava nesse tempo, ao Rato, na rua de S. Filippe Nery; o Meréllo, como que deleitando-se com a sua conversação, foi indo até lá.
Uma vez chegados, disse-lhe o autor do Diccionario Bibliographico:
—Você onde vai?
O Meréllo, titubeando, denunciou, porventura, na sua hesitação, o designio que guardava em seu ânimo, chi lo sá?! Respondeu conforme pôde:
—Eu agora . . . estou capaz de ir . . . tenho por força de ir agora. . .
—Para cima?
—Não; ali, para aquele lado. . .
Innocencio fixava-o no branco dos olhos.
—A Santa Isabel!!! accrescentou Meréllo, que, com o ganhar tempo, cobrara ânimo, e revigorara o seu espírito. Vou a Santa Isabel, e adeus, que não me posso demorar!!!
—Então, adeus! disse-lhe o Innocencio. E obrigado pela companhia.
Meréllo, em passinho de pulga, cortou para a direita, pelo largo do Rato fora, e sumiu-se detrás da esquina.
Dois olhos, porém, o acompanhavam, vigiando-o, sem falarmos nos da providência, que, talvez, naquela hora o não seguissem com tanto desvelo. . .
Eram os olhos do Innocencio, que, logo depois de fechar a porta da rua, de novo a abrira, de mansinho, encostando-a habilmente por maneira que pudesse ver sem ser visto.
Espreitado o Meréllo no rápido ápice de dobrar a esquina, aí foi logo, de corrida, de voada, o Innocencio, encostar-se meio escondido, na diligência de observar, se, efectivamente, o Meréllo seguia pela rua do Sol, a fim de cortar depois á esquerda para Santa Isabel.
Mas,—oh! confirmação da suspeita!—o Meréllo virou pela rua de S. Bento, e, deste modo, revelou a engenhosa estratégia com que estivera a ponto de levar de vencida o seu competidor.
Innocencio Francisco da Silva não pensou uma, não pensou duas, nem três vezes, e, voltando a meter-se na rua da Escola Politécnica, desceu pressuroso, aos encontrões a quem ia e vinha; ele, para o passeio; ele, para o meio da rua; zás, pás; de salto, pulo, e gangão; respirando apenas; apertando o fígado, abalado pela fúria da correria; até que, catrapuz, caía de chofre na loja do livreiro, onde, em caso imediato, se embrulhava com um vulto, que, também de repelão e de tombo súbito, penetrava ali. . . Era o Meréllo!
O Meréllo, que, suspeitoso e inquieto pelas perguntas do Innocencio, correra ao livreiro, e alcançara, pela rua de S. Bento, Calhariz e Chiado, chegar ao Pote das Almas ao mesmo tempo que o seu rival ilustre, por S. Pedro de Alcântara e S. Roque: em passo vertiginoso, de bibliófilos, ambos eles; o incomparável passo, que fez sempre a inveja do Bargossi! o andarilho Bargossi!
Com razão se diz serem mudas as dores supremas. No meio do reboliço que houve naquela loja, quando os dois alfarrabistas se atropelaram ao entrar ali, qual deles com maior ânsia, foi o Meréllo o primeiro a conseguir deitar a mão ao livro.
O Innocencio, que tinha uma tremenda língua de palmo e meio, terror do próximo, meteu-a no bucho, e, engolindo em seco, viu o outro arrecadar o livro no bolso do peito, abotoar-se à mesm’alma, pagar o livro ao Rodrigues, e sair, ficando quedo e mudo, como se, aquele caso formidando, estivesse a ponto de entupir-lhe por uma vez a fala.

Os leitores conhecedores da topografia de Lisboa, e uma vez que as ruas conservam o mesmo nome, podem, ao ler o texto, reconstruir o percurso dos dois ávidos bibliófilos.

Termino com um fragmento do perfil biográfico de Inoccencio Francisco da Silva traçado por A. A. Teixeira de Vasconcellos (1816-1878) na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil.

O sr. Innocencio Francisco da Silva, nasceu em Lisboa a 28 de Setembro de 1810. Seu pai, comerciante pouco abastado e oficial de ordenanças, foi o mestre que lhe deu as primeiras noções do saber humano…
Desde 1825 até 1830 estudou desenho, humanidades, lingua francesa, e frequentou durante dois anos o curso da aula do comércio, intercalando estes trabalhos com leituras dos principais filósofos do século passado.
De 1830 a 1833 seguiu o curso matemático da Academia Real de Marinha. No primeiro e no segundo ano obteve prémios. No terceiro em que não os havia mereceu distinção honrosa.
Nessa época entrara em Lisboa o duque da Terceira, vitorioso das tropas realistas, e principiara a organizar a guarnição que devia defender dos inimigos ainda numerosos, tão preciosa conquista. O sr. Innocencio assentou praça no 4.° Batalhão Movel, no qual serviu de oficial inferior com satisfação e louvor dos seus chefes.
Seu pai, cuja fortuna diminuira ainda antes de 1830, estava então velho, cego e paralítico. Os encargos da familia pesavam todos sobre o jovem voluntário liberal, cuja inteligência, instrucção e ânimo determinado, o habilitavam a cumpri-los todos. Aproveitando os estudos anteriores dedicou-se a leccionar estudantes da Academia de Marinha e da Aula de Comercio, c neste exercicio obteve excelentes créditos desde 1834 até 1837. De certo não eram menores os que tinha como cidadão, pois que os seus camaradas da Guarda Nacional, por esse tempo o elegeram capitão.
Obteve então um amigo que o administrador geral de Lisboa convidasse o sr. Innocencio para ser amanuense extraordinário ou temporário da sua secretaria, com vencimento de dez tostões nos dias úteis. Nesta colocação se conservou até 1842, em que o despacharam amanuense de segunda classe, vindo só a alcançar em 1851 acesso à primeira. Nos vinte e cinco anos que tem passado no governo civil a escrever mais de vinte e seis mil cartas e ofícios, soube o sr. Innocencio adquirir e conservar o conceito dos chefes, e merecer-lhes louvores, assim pelo serviço feito na repartição de fazenda, onde esteve até 1848, como pelo que prestou na repartição da policia, segurança e salubridade publica, a que hoje pertence. Há pouco foi-lhe conferida a graduação de oficial, porém sem accesso.
Durante muitos anos foi o sr. Innocencio preparando os materiais para a sua obra, manuseando larga cópia de livros, adquirindo grande porção deles, estudando os modelos bibliográficos, investigando as questões e dúvidas que a cada passo lhe surgiam, e lutando com difficuldades que teriam desanimado qualquer espirito menos vigoroso e persistente.
Em Outubro de 1858, saiu á luz da Imprensa Nacional, a expensas do governo português, o primeiro volume do Diccionario Bibliographico, e já a esse tempo a Academia Real das Sciencias, escolhera o autor para seu sócio correspondente.
O instituto de Coimbra, o Instituto Historico e Geographico do Brasil, e não sei quantas outras sociedades literárias abriram espontaneamente as suas portas ao ilustre bibliógrafo
português, e há poucos dias a Academia Real das Sciencias resolveu chamá-lo ao grêmio dos seus sócios efectivos, onde o conceito público o julgava desde muito tempo colocado.

Lisboa, 17 de Maio de 1862
A. A. Teixeira de Vasconcellos.

A imagem de abertura mostra uma pintura famosa de Carl Spitzweg (1808-1885).

Encerro o artigo com o retrato do homem em gravura a ponta de aço.

Innocencio Francisco da Silva - Perfil

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