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Category Archives: Prosa

“O Sentimento Europeu” e Agustina – o prazer da prosa

15 Domingo Jan 2017

Posted by viciodapoesia in Prosa

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Agustina Bessa-Luís

comic-map-of-europe-500px— e é mais fácil discutir, alimentar, estimular uma ideia comum, do que pensar—,  o “sentimento europeu” não existe; assim como a humanidade não é exactamente nenhuma cousa, …

 

 

É do lado das mulheres que muito do melhor de Portugal surge. Hoje vou a uma dessas guardiãs do país na língua que aqui se fala: Agustina Bessa-Luís (1922). Não escreveu poesia stritu senso, mas quase toda a sua prosa é um admirável poema onde na curva de cada frase paramos embevecidos e meditativos sobre a beleza que a escrita em português pode ter. E em simultâneo lemos a prosa reflexiva de alguém que pensa a grandeza do comezinho de todos os dias e o revela nos gestos da sua banalidade.

 

Deixo-lhe, leitor, um mínimo cheiro em meia dúzia de frases entre os milhares que escreveu, e temos, vívidas, gentes e paisagens, e a reflexão densa onde uma ancestral sabedoria se revela.

 

 

 

De um relato de viagem nos anos 50, o livro  Embaixada a Calígula, transcrevo um curto fragmento do percurso  entre o Escorial e Madrid:

 

 

Até Madrid, a planície é pobre, mascarada por construções e pomares que não chegam a fazê-la pitoresca. Os ciganos acampam sob as árvores, passam carros de turismo e excursões de escolas com um padre zelador e algumas jovens mestras vestidas alegremente de Verão. As crianças usam vestidos curtos e gritam, desembrulhando as suas tortilhas e pão com chouriço picante. São vivas e tímidas, com um sorriso grave e independente, essas crianças que continuam uma raça que, com alguns povos euro-orientais, mantêm em belo conflito o sentimento da vida e da morte. Até chegar a Madrid pensamos naquilo que nos leva nesta viagem, isso a que de modo gesticulante e plástico chamam “o sentimento europeu”
Como acontece com os pensamentos que não são de ninguém, que se desenvolvem numa época simplesmente porque se fazem propriedade comum — e é mais fácil discutir, alimentar, estimular uma ideia comum, do que pensar —, o “sentimento europeu” não existe; assim como a humanidade não é exactamente nenhuma cousa, …

 

 

 

Outra prosa há: efabulação sobre o país e a gente que somos, nas raízes que uma modernidade emprestada raramente consegue esconder.

Pensar, como Agustina fez, fora das ideias comuns, faz-nos falta, tanto mais falta quanto pressentimos a vertiginosa mudança deste mundo onde ainda vivemos, e escolher por onde ir está a tornar-se vital.

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Da Poesia com Heidegger

21 Sábado Mar 2015

Posted by viciodapoesia in Prosa

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Heidegger

Teaching literacyA linguagem originária á a linguagem da poesia.

Contudo, o poeta não é aquele que faz versos sobre o respectivo agora. A poesia não é um calmante para rapariguinhas delirantes, um estímulo para os estetas que pensam que a arte é para desfrutar e lamber. A verdadeira poesia é daquele ser que já há muito nos foi profetizado e que nós ainda não alcançámos. Por isso, a linguagem do poeta não é nunca actual, mas sempre sido e futuro. O poeta nunca é contemporâneo. Os poetas contemporâneos deixam-se, na verdade, classificar como tal, mas permanecem, apesar disso um contra-senso. A poesia, e com ela a linguagem em sentido próprio, acontecem só lá onde o vigorar do ser é trazido à intangibilidade superior da palavra originária.

 

in Martin Heidegger, LÓGICA A pergunta pela essência da linguagem. edição FCG, Lisboa 2008.

Tradução de Maria Adelaide Pacheco e Helga Hoock Quadrado

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O vitelo do quinto andar – episódio por Júlio César Machado

31 Quarta-feira Dez 2014

Posted by viciodapoesia in Prosa

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Júlio César Machado

Despeço-me de 2014 no blog com esta prosa bem-humorada de Júlio César Machado (1835-1890).

Para todos um feliz 2015 e até para o ano.

Francesco Clemente - Água e vinho

O disparate francês, deve dizer-se, não se parece com o de nenhum povo; é sempre picante, imaginoso, excêntrico.

Um homem compra um vitelinho, e leva-o para casa; dá-lhe sempre de comer, trata-o com carinho, e deixa-o ir crescendo na água-furtada em que habita. Um belo dia, com o andar do tempo, o vitelinho torna-se num boi. A vizinhança inquieta-se, assusta-se, despeita-se, e dá parte à autoridade. A autoridade visita a água-furtada, e encontra o boi magestosamente nédio no meio da sala, sem poder andar para traz nem para diante, porque a enche com a sua colossal corpulência. O dono da casa pergunta delicadamente a que deve o prazer daquela visita inesperada, ao que a autoridade, no auge do pasmo e da indignação, responde:

—Atreve-se a perguntá-lo! Vinha por causa desse animal enorme, esse boi maravilhoso…

—Vem visitar o meu boi? Oh ! Faz favor de entrar!

—O senhor sabe perfeitamente que a lei proíbe criar bois na cidade.

—Na cidade?

—Tanto mais dentro duma casa.

—Sim?

—E mais ainda, se mais pode haver, num quarto andar.

—Não conta a sobreloja?

—Num quinto andar.

—Exactamente.

—O seu procedimento tão novo e inexplicável…

—Como, inexplicável! Vi uma vez na rua um vitelinho, manso, comedido, gracioso, saltitante, levei-me de simpatia, e comprei-o.

—Senhor.

—Comprei-o, eis tudo.

—Senhor!

—Comprei-o, e trouxe-o para casa. Era um entretenimento. Pequenino, jeitoso, meigo…

—Mas o senhor bem sabia que ele havia de crescer!

—Não sabia!

—Como, não sabia?

—Suspeitava; mas afirmaram-me que não.

A autoridade encoleriza-se,

—Está caçoando porventura!? Então ignorava que os bois em pequenos são vitelos, e que os vitelos vêem a ser bois?

—Tinha ideia de ouvir contar isso, mas como me afiançaram que não crescia, e eu me lembrava de ter comprado uma ocasião um cão pequenino que nunca cresceu mais, persuadi-me que o vitelo seria da mesma natureza: porque não?

—Todo este caso é original, e vai seguir os seus trâmites. Comecemos por tirar daqui esse inquilino de que o senhorio não teve notícia.

—Principiemos!

Os oficiais de diligências, depois de algumas inteligentes manobras, compreenderam a dificuldade da sua missão, porque o boi, não cabendo pela porta nem pela janela, não podia sair. A autoridade estava fula de cólera, os vizinhos tinham vindo todos para a escada, os beleguins praguejavam, e o boi olhava para todos com um verosimil ar de surpresa.

Albert Eckert - Pensando sobre o futuro

A autoridade, depois de uma pausa cheia de reflexão, disse:

—Mate-se o boi.

A esta palavra, o dono da casa ia protestar, quando os vizinhos e principalmente as vizinhas largaram numa gritaria infernal opondo-se a essa resolução, que ia espalhar desassossego no bairro e sangue no prédio. A esposa do senhorio principiou a gabar o boi, o inquilino tomou a liberdade de lho oferecer, o senhorio não consentiu, a autoridade disse que tinha pressa, os vizinhos agarraram-se todos ao boi a chorar, e o senhorio consolou os ânimos por esta frase:

—Vou cortar o nó gordio!

Os vizinhos disseram todos: Ah!…

—Corta o nó gordio, meu homem! exclamou a esposa enxugando copiosas lágrimas.

A autoridade significou por um gesto cheio de dignidade, que estava preparada a ouvir.

—Aproveito a ocasião para fazer obras no prédio, e mando alargar a escada, de maneira que o boi possa sair!

—Isso leva muito tempo. É impossível; respondeu a autoridade. Isto há-de decidir-se até amanhã.

—Pois decidir-se-á hoje mesmo, replicou o senhorio em tom picado. Esta tarde alargam-se as janelas, e o boi sairá içado.

Nessa tarde, com grande alvoroço do bairro e dos curiosos, içou-se o boi que saiu por uma ex-janela, gloriosamente demolida por seis diligentes pedreiros.

 

A imagem que acompanha o texto a abrir mostra uma obra de Francesco Clemente (1952) de seu nome: Água e Vinho.

No corpo da prosa, o boi – vaca – vitelo, surpreso, da autoria de Albert Ecker, chamou-lhe o autor, “Pensando sobre o futuro”.

 

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Da amizade segundo Aristóteles

08 Segunda-feira Set 2014

Posted by viciodapoesia in Prosa

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Aristóteles

jules-et-jim-poster do filme 600pxVoltei a ver um destes dias o filme de François Truffaut (1932-84), Jules e Jim (1962), que gira à volta de uma amizade entre dois homens onde uma mulher aparece.  

O filme de algum modo retoma com mais profundidade e outras implicações o assunto da deliciosa comédia de Ernst Lubitch (1892-1947), Uma mulher para dois (Design for Living, 1933): um acordo de “ménàge à trois” que não corre pelo melhor.

design for living poster 600pxNo filme de Truffaut, situado na Paris de ante 1ª guerra mundial, dois jovens amigos vagamente escritores, um francês, um alemão, vivem na boémia do tempo. Nas relações que se sucedem, surge uma mulher que com eles acaba a partilhar a amizade. Criatura peculiar, por quem os dois poderiam apaixonar-se, a certa altura o alemão pretende-a só para si. Casam. A guerra rebenta e coloca cada um dos homens em campo inimigo.

O filme passa ao lado deste conflito amizade/política, que fora admiravelmente retratado em A vida do coronel Blimp (The Life and Death of Colonel Blimp, 1943) da dupla britânica Michael Powell (1905-90) e Emeric Pressburger1902-88).

the-life-and-death-of-colonel-blimp-movie-poster-1943Ambos saídos ilesos da guerra, os amigos do filme de Truffaut retomam contacto. O alemão permanece casado numa relação quase em ruínas onde laivos de paixão permanecem. O que foi um casamento com amigo ao lado, transforma-se, com a chegada do francês, numa complexa relação de pertença onde a amizade entre os dois homens é posta à prova num conflito que a paixão atravessa. Mulher voluntariosa, a protagonista, vivia um entendimento da entrega ao amor ditada por uma exigente e continuada atenção à sua pessoa e aos seus caprichos, onde apenas a sua vontade reinasse como condição de harmonia. Termina o filme, e se nele encontramos uma elegia da amizade, fica-nos também o sabor do mistério da mulher nesta relação entre sexos.

 Amigos e amizade são relações afectivas que todos tomamos por conhecidas. A presença quase universal do Facebook no nosso quotidiano, e o seu apelo à formação de círculos de amigos, dá conta, na sua variedade de relações, de quanto o conceito de amizade hoje surge algo difuso.

Nem sempre todos entendemos por amizade o mesmo conteúdo de uma relação.

Com alguns fragmentos de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) onde o filósofo discorre sobre o conceito de amizade e as suas diversas formas, talvez consigamos articular com mais precisão e clareza a variedade do que nas relações humanas tomamos por amizade.

As transcrições vão semeadas de reticências, as quais respeitam ao desenvolvimento justificativo das afirmações transcritas, que pela sua extensão omiti.

Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro VIII, III

O desejo de amizade nasce depressa mas a amizade não.

…

Os motivos pelos quais a amizade nasce distinguem-se segundo três formas essenciais; de acordo com esses três motivos, assim também são as respectivas formas de amizade.

…

Os que definem a sua amizade com base na utilidade não são amigos por aquilo que eles próprios são, mas pelo bem que daí pode resultar para ambos. De modo semelhante, acontece com os que definem a sua amizade com base no prazer, pois não se gosta de pessoas divertidas pelas qualidades de carácter que têm mas por serem agradáveis.

Os que têm a amizade com base na utilidade gostam uns dos outros pelo bem que os outros lhes fazem; os que têm uma amizade com base no prazer, gostam uns dos outros pelo próprio prazer que lhes dá.

…

Estas formas de amizade são, portanto, meramente acidentais. Porque não se gosta do outro apenas por aquilo que ele é, mas por ser vantajoso ou ser agradável. Estes laços de amizade são os que mais facilmente se rompem, sobretudo se os que por eles estão envolvidos com outros, não ficarem os mesmos e se tiverem tornado diferentes ao longo do tempo. Isto é, deixam de ser amigos, quando o prazer acaba ou deixa de haver vantagem.

…

Mas a amizade perfeita existe entre os homens de bem e os que são semelhantes a respeito da excelência. … E por serem homens de bem são amigos dos outros pelo que os outros são. … Na verdade querem para os seus amigos o bem que querem para si próprios. E são desta maneira por gostarem dos amigos como eles são na sua essência, e não por motivos acidentais. A amizade entre eles permanece durante o tempo em que forem homens de bem;

…

Tais amizades são, de facto, raras, porque são poucos os homens desta estirpe. Além do mais, é preciso tempo e cumplicidade, pois, tal como diz o provérbio, não é possível que duas pessoas se conheçam uma à outra sem antes terem comido juntas a mesma quantidade de sal. Nem se pode reconhecer alguém como amigo antes de cada um se ter mostrado ao outro digno de amizade e merecedor de confiança. Pessoas que depressa produzem provas (exteriores) de amizade entre si querem ser amigos, mas não podem sê-lo logo. É preciso primeiro que se tornem dignos da amizade e se possa reconhecer neles essa mesma dignidade. O desejo de amizade nasce depressa, mas a amizade não.

Tradução do Grego e notas de António C. Caeiro, Quetzal Editores, Lisboa, 2004.

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Dos Deveres em política — um poema de Salvador Espriu

15 Sexta-feira Ago 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas, Prosa

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Cícero, Grécia, Platão, Salvador Espriu

Ambrogio LORENZETTI - efeitos do bom governo na cidade 1

Terá talvez havido um tempo em que a política era entendida generalizadamente como o serviço dos outros. É escassa a memória histórica de tal. Mas lembrar o que deve ser nunca é perda de tempo. Escreveu-o o romano Cícero (106-43 a. C.) em Dos Deveres com quem inicio o artigo, citando o grego Platão (428/7-328/7a. C.),  e lembra-o Salvador Espriu (1913-1985), o poeta catalão, de quem depois transcrevo o poema XXIV de A Pele de Touro em tradução de Manuel de Seabra.

 

... os que se preparam para governar a república ( Res publica) devem observar dois preceitos de Platão. Um é que devem cuidar tanto dos interesses dos seus concidadãos que todos os seus actos se devem aferir por esta medida, esquecendo o seu próprio bem-estar; o outro, é que cuidem de todo o corpo da Res publica, a fim de, ao tratarem de uma parte, não abandonarem as restantes. Pois tal como a tutela, assim a administração da Res publica deve ser conduzida, não para vantagem daqueles a quem está entregue, mas daqueles que lhes foram confiados.

(Cícero, Dos Deveres I.25.85)

 

A Pele de Touro — poema XXIV

 

Se te chamam a guiar

um breve momento

do caminhar milenário

das gerações,

afasta o oiro,

o sono e o nome.

Também a pompa

vã das palavras,

a vergonha do ventre

e das honrarias.

Imporás

a verdade

até à morte,

sem a ajuda

de nenhum consolo.

Não esperes nunca

deixar lembrança,

porque és apenas

o mais humilde

dos servidores.

O desvalido

e o que sofre

sempre serão

os teus únicos senhores.

Excepto Deus,

que te pôs

debaixo dos pés

de todos.

 

Salvador Espriu, A Pele de Touro, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1975.

 

O fragmento de Cícero, em tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, foi transcrito de Romana, Antologia da Cultura Latina, 6ª edição aumentada, Babel, Lisboa, 2010.

A obra encontra-se integralmente traduzida em Edições 70, Lisboa.

 

Abre o artigo uma imagem do fresco de Ambrogio Lorenzetti (c. 1290-1348), Alegoria do Bom e do Mau Governo, no Palácio Cívico de Siena, mostrando os efeitos do bom governo na vida da cidade.

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A conferência dos partidos — pintura de Paul Klee, com passagem pelo Reino de Pacheco

24 Sábado Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas, Prosa

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Alexandre O'Neill, Eça de Queiroz, Jorge Luís Borges, Paul Klee, Peter Kagayi

Paul Klee - Erro em verde 1939

Contribuo para a reflexão pré-eleitoral que os portugueses hoje vivem, com a pintura alegórica de Paul Klee (1879-1940) que segue. Nela observamos de um lado o gigante liberal, à direita, enfrentando outros animais de corpulência diversa arrumados mais ou menos entre o centro e o lado esquerdo.

Paul Klee - O concerto dos partidos 1907

Os tempos correm perigosamente para o que Jorge Luis Borges (1899-1986) escreveu em 1976 no prólogo ao seu livro A Moeda de Ferro:

Sei-me de todo indigno de opinar em matéria política, mas talvez me seja perdoado acrescentar que descreio da democracia, esse curioso abuso da estatística (destaque meu).

Olhamos a campanha eleitoral na televisão, ouvimos quem se propõe governar-nos, cá ou em Estrasburgo, e ocorre-nos o fabuloso Pacheco inventado por Eça de Queiroz (1845-1900) (carta VIII de A Correspondência de Fradique Mendes).

O personagem é uma caricatura da inanidade parlamentar e pública que, infelizmente, e ainda hoje, vai ao encontro de exemplares vivos.

 

Vale a pena a transcrição da primeira intervenção parlamentar de Pacheco:

…

De pé, com o dedo espetado (jeito que foi sempre muito seu), Pacheco afirmou num tom que traía a segurança do pensar e do saber íntimo: “Que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!” Era pouco, decerto:— mas a Câmara compreendeu bem que, sob aquele curto resumo, havia um mundo, todo um formidável mundo, de ideias sólidas. Não volveu a falar durante meses — mas o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto mais invisível e inacessível se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu ser. O único recurso que restou então aos devotos desse imenso talento (que já os tinha, incontáveis) foi contemplar a testa de Pacheco — como se olha para o céu pela certeza que Deus está por trás, dispondo. A testa de Pacheco oferecia uma superfície escanteada, larga e lustrosa. E muitas vezes, junto dele, conselheiros e directores-gerais balbuciavam maravilhados: “Nem é necessário mais! Basta ver aquela testa!”

…

Ficaria por aquí, não fora Pacheco, o da testa, ter inspirado um mais pungente que sarcástico poema a Alexandre O’Neill (1924-1986): No Reino do Pacheco:

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos,

E a vida? Não a vivemos.

…

Na verdade, vivemos a vida, não o nosso sonho dela.

Sou pai de um desses jovens qualificados que procuram no mundo a vida que cá não há, e quando surge a chamada de decidir do futuro(?) dentro das regras, interrogo-me sobre o como destes últimos quarenta anos nos trouxe até aqui, sem esquecer o país em que nasci e cresci. Não foi feito o melhor. Mas foi feito o possível? E agora, será diferente?

Pensava no que nos angustía, na vida que temos e não queremos e dei de olhos num poema de um jovem do Uganda, Peter Kagayi (1986).

 

Em 2065

Nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos

As estradas serão iguais

Os políticos serão iguais

Kampala será igual

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos

 

E irei a Mulago para tratar o meu reumatismo e os médicos dirão que não há cura

E o homem do taxi-bicicleta irá recomendar-me um curandeiro da zona Oeste do Nilo

E irei para a escola do meu neto assim como o meu avô fez

E irei ser mandado embora por excesso de idade

 

O presidente vai ser o mesmo que temos hoje, e desde uma cadeira de rodas irá proferir o seu Discurso Nacional

Só que o filho dele, feito entretanto Marechal, irá lê-lo no lugar dele

E falará no seu lugar

E mandará no seu lugar

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos.

 

E Makerere estará mexida por motins e o General-Major “Não-sei-quantos”

Ordenará abrir fogo contra os estudantes que reivindicam feijões fritos

Pois isso será um perigo para a segurança nacional

E U.R.A. irá taxar o ar que respiramos, as vezes que os casais se beijam,

Os nossos excrementos, as palavras que proferimos e a maneira como morremos

E determinará quem vai para o céu e quem vai para o inferno e irá taxar os seus corpos de modo diferente

 

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos.

 

E os professores estarão a pedir nas ruas para alimentarem as suas famílias

As suas esposas irão dormir com turistas para conseguirem levar uma vida decente

As leis serão a mesma sombra que os colonialistas deixaram atrás

Com sistemas demasiado arcaicos e demasiado alheados para proporcionarem alguma coisa de essencial

E os estudantes ficarão reduzidos a couves e batatas assim como se encontram hoje em dia

E a proporção entre os desempregados e os aspirantes a trabalho será de nove a um assim como é hoje

E assim a vida irá avançar

E assim nada mudará

…

 

E nós seremos as pessoas desse futuro

Construídas num presente que não promete assim tanto

Excepto envelhecer

Estaremos aí com a esperança de morrer em breve.

 

Depois da transcrição parcial deste terrível poema, deixo-vos com o Reino do Pacheco em véspera de ganhar novo fôlego democrático. Amanhã regresso ao mundo harmonioso do amor feliz.

 

No Reino do Pacheco

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos,

E a vida? Não a vivemos.

 

Querer viver (deixai-me rir!)

seria muito exigir…

Vida mental? Com certeza!

Vida por detrás da testa

será tudo o que nos resta?

Uma ideia é uma ideia

— e até parece nossa! —

mas quem viu uma andorinha

a puxar uma carroça?

 

Se à ideia não se der

o braço que ela pedir,

a ideia, por melhor

que ela seja ou queira ser,

não será mais que bolor,

pão abstracto ou mulher

sem amor!

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos.

E a vida? Não a vivemos.

 

Neste reino de Pacheco

— do que era todo testa,

do que já nada dizia,

e só sorria, sorria,

do que nunca disse nada

a não ser prá galeria,

que também não o ouvia,

do que, por detrás da testa,

tinha a testa luzidia,

neste Reino de Pacheco,

ó meus senhores que nos resta

senão ir aos maus costumes,

às redundâncias, bem-pensâncias,

com alfinetes e lumes,

fazer rebentar a besta,

pô-la de pernas pró ar?

 

Por isso, aqui, acolá

tudo pode acontecer,

que as ideias saem fora

da testa de cada qual

para que a vida não seja

só mentira, só mental…

 

Publicado pela primeira vez em Poemas com Endereço,1962. Transcrito de Poesias Completas 1951/1986, INCM, 3ªedição revista e aumentada, Braga, 10 de Junho, Dia de Portugal, 1980.

 

O poema de Peter Kagayi foi transcrito de Próximo Futuro, nº14, Outubro 2013, publicação em formato de jornal editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Termino com o que poderá ser uma imagem da angústia portuguesa ao votar, pintura também de Paul Klee.

Paul Klee - Ensimesmamento 1919

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Sopa da pedra – a lenda recontada por Júlio César Machado

29 Sábado Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Prosa, Prosas

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Júlio César Machado

 

Aertsen_Pieter-Market_Woman_with_Vegetable_Stall

Por um mecanismo informático cujo segredo estará ao alcance de poucos, o Facebook insiste em mostrar-me, na minha qualidade de administrador da página viciodapoesia, páginas dedicadas à culinária moderna, com o pretexto de que têm, o que chamam, um desempenho igual à minha.
Não é coisa que me preocupe ou incomode, e sobretudo trouxe-me a ideia de mostrar aos leitores do vicio da poesia não culinária moderna, mas a antiquíssima sopa da pedra ou sopa de pedra.
A sopa da pedra é, para quem não sabe, uma sopa de sustancia, com hortaliças e carne, tradicional da culinária portuguesa, sobretudo no Ribatejo, e em Almeirim em particular, onde a pedra é de lei; e presença literária num dos contos tradicionais portugueses.
Esta sopa da pedra terá sido expediente de um frade mendicante para obter alimento junto dos mais renitentes, tal como a tradição a conta. A lenda mereceu a Júlio César Machado (1835-1890) um ligeiro reenquadramento, voltando a contá-la num dos seus livros de prosas avulsas.
A graça e frescura do estilo com que esta arqui-conhecida estória está contada, leva-me à sua transcrição, em ortografia modernizada.

Sopa de pedra por Júlio César Machado

Foram dois rapazes, da tropa, dois pobres moços, dois tristes soldados, aboletados para casa de um grande somítico, em Peniche.
Apressou-se logo em lhes ir dizendo o homem:
—Ó filhos, vocemecês vêem para cá! Ora, que ideia! Não lhes posso dar senão água e lume.
—Água e quê?
—E lume.
—Já não é mau.
—Está visto, que não é mau. Mas advirto-os desde já, para saberem a tempo com o que podem
contar, e não me azoinarem depois com pedidos…
—Diz bem.
—Tenho razão ou não tenho?
—Tem, tem razão.
—Cada um dá o que pode.
—Está bem de ver!
—Não é assim!?
—É.
—Pois aí está. Água e lume têm vocês aqui. O mais arranjem-o.
—Sim, senhor
—Estamos entendidos.

Puseram água ao lume. Depois, disse um para o outro:
—Ó Rufino, vai buscar a coisa, hein?
—A água já ferve ?
—Não, mas para haver tempo de se lavar.
—Ah ! Isso, sim. E para o dono da casa:
—Com licença!
—Você vai sair?
—É um instante. Faz favor de não fechar a porta.
—Não fechar a porta! Deus me livre disso! A porta quer-se sempre fechada.
—Vou ali buscar uma coisa, e já volto.
Dali a nada voltou com uma pedra.
—Vá, disse-lhe o outro; lava-a, que a água já principia a ferver.
O soldado lavou a pedra muito bem lavada, em três águas, como se faz ao arroz, depois escorreu-a, limpou-a, e meteu-a na panela.
O somítico estava pasmado. E mais pasmado ficou, quando os viu deitarem sal na panela e provarem.
—Que tal está? perguntou um dos aboletados.
—Não está má.
—Não o deve estar, porque a pedra parece boa.
—Ah! Isso é ela. De boa qualidade.
—Precisa ferver.
—É o que precisa. E se tivesse uma hortaliça qualquer, uma cabecinha de nabo, umas cenouras, estava obra
—Homens, lá por isso não seja a dúvida! Ponderou o dono da casa. Tomem vocês lá duas cenouras, e duas cabeças de nabo, e mesmo também a rama, se querem.
—Pois venha lá isso.
Meteram os vegetais para dentro da panela.
Daí a bocado provaram.
—Que tal vai?
—Vai bem. Está mesmo boa. Por mais um nadinha, ficaria óptima!
—Que nadinha é? perguntou o avarento.
—Um bocadinho de toucinho, ou banha de porco … respondeu um dos soldados.
—Pois, tire lá: mas, hão de dar-me a provar, porque tenho curiosidade de vêr o que sai daí.
—Sai uma sopa só fina!
—Mas, isso, é sopa de pedra?
—É sim, senhor. Também se faz de seixos. Mas, esta, é mais corda.
—E a primeira vez que tal vejo!
—Há-de gostar.
Foi-se o soldado ao toucinho, cortou-lhe um naco, deitou-o no caldo da hortaliça e deixou ferver.
—Cheira, cheira, isso já.
—E bem
—Cheira bem, cheira bem.
—Ora! pois é pitéu. E então em levando um anexim, que lhe falta, é de uma pessoa lamber o prato…
—O que é que falta?
—Um pedacinho de chouriço, ou mesmo linguiça. Isso então fica maravilha!
—Homem, disse o somítico, lá por causa de um apêndice tão fácil de achar á mão, não deixe essa extraordinária comida de chegar a ser o que se diga perfeita …
Juntou-se-lhe o chouriço.
Coseu, coseu…
Deitava um cheiro …
—Ó senhores, que cheiro! disse o unhas de fome.
—Cheira muito bem, meu senhor, e melhor há-de saber! redarguiu um dos aboletados.
E o outro aboletado:
—Está pronta. Está na conta própria. Agora, em querendo, vamos a ela… Isto com pão, é melhor ainda, se é possível; mas, mesmo sem pão é boa!
O somitico foi buscar um pão.
—Vamos já a isto… Estou com vontade de saborear essa historia…
—Esta historia é mais bonita que a da carochinha, e com isto se diz tudo! Ora, muito bem . .
Uma vez partido o pão à mão …
—Sim! ponderou o outro soldado. Isso é que é de preceito para este caso. Há-de ser por força à mão…
—Sim, sim … Pois seja à mão.
—Mas por força.
—Acredito! basta vocês dizerem!
—Agora despeja-se-lhe o caldo em cima, guardando de reserva o pão suficiente para machucar no toucinho, acompanhado com as ervas… Que tal?! Boa?
—Está óptima! exclamava o homem. Eslá excelente. Vocês são o diabo! Não à gente como são os soldados, para estas coisas! Como vocês fazem sopa de um pedregulho, e fica uma delícia por esta maneira! Não se acredita! Parece bruxaria!
—E para vocemecê vêr
—Cá me fica!…

Bom apetite!

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Elogio de Innocencio

28 Sexta-feira Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Prosa

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A. A. Teixeira de Vasconcellos, Innocencio Francisco da Silva, Inocêncio Francisco da Silva, Júlio César Machado, Revista Contemporânea de Portugal e Brasil

Carl Spitzweg BookwormA1cropedSabem todos quantos por uma vez procuraram uma informação ou minudência sobre a edição portuguesa em livro anterior a 1850, quanto o Dicionário Bibliografico organizado por Innocencio Francisco da Silva (1810-1876) se revelou precioso. Obra ímpar pelo rigor da informação coligida, acrescenta-se dos frequentes e saborosos comentários do seu autor a propósito de pequenos nadas que ele trata com a importância de relevantes factos. Mas são precisamente estas irrelevâncias que muitas vezes fazem dele auxiliar precioso e insubstituível.
Aconteceu-me comprar certo livro antigo, descapado, sem folha de rosto e sem qualquer possibilidade de identificação imediata do seu autor. Era um livro de poesia, talvez do virar do século XVIII para o XIX, isto tanto pelo estilo e assunto dos poemas como pela qualidade do papel e tipo da impressão.. As notas levaram-me a avançar um pouco no tempo e situar o seu autor entre os emigrados em Inglaterra durante o miguelismo, onde se incluiu o jovem Alexandre Herculano. Neste grupo, além de Herculano e Garrett não sabia de outros poetas.
Enquadrado o livro no tempo, percorri o Innocencio, como é carinhosamente conhecido entre bibliófilos e livreiros, e graças à descrição do conteúdo do índice, número de páginas e seu formato, consegui identificar o livro, o seu autor, e o ano de publicação. Tratava-se de Obras Poéticas de Francisco Evaristo Leoni (1804-1874), obra e autor que um destes dias virá ao blog.
Sem as preciosas minudências que Inocêncio acumulou e me fizeram saltar de autor para autor, excluindo-os, nunca tal livro seria identificado. Outras têm sido as ocasiões, embora de forma menos espectacular, em que a consulta do dicionário tem sido preciosa.
Mesmo entre os utilizadores do Dicionário Bibliográfico poucos saberão quem foi o homem. Lembra-lo é um gosto e um acto de justiça mínimo, tanto mais quanto parece ter sido um homem integro com a vida entregue à paixão dos livros.
Esta paixão, como ainda hoje acontece, gera bizarrias de comportamento quais o que certa tarde em Lisboa aconteceu, e Júlio César Machado (1835-1890) narra com alguma graça.
Ora leiam:

De uma ocasião, cavaqueando o Innocencio e o Meréllo, na loja do livreiro Rodrigues, da rua do Crucifixo, farejaram um livro de valia cuidando, qualquer dos dois, que o outro não houvesse dado por ele.
Principiaram então, como que ao desafio, em espertezas, procurando mutuamente afastar o competidor do lugar da maravilha.
Já um chamava o outro para a porta, e lhe narrava não sei que historia em grandes ares de confidência; já o outro consultava o relógio e lhe dizia a hora, adiantando-a, ao passo que lhe perguntava qual fosse a sua hora de jantar. . .
Nem o Meréllo nem o Innocencio arredavam um passo da baiúca do livreiro, recinto encantado da ambicionada jóia. Nisto, não se atrevendo um nem o outro a desampararem a caça, nem, tão pouco, a separarem-se, saíram juntos.
Innocencio, morava nesse tempo, ao Rato, na rua de S. Filippe Nery; o Meréllo, como que deleitando-se com a sua conversação, foi indo até lá.
Uma vez chegados, disse-lhe o autor do Diccionario Bibliographico:
—Você onde vai?
O Meréllo, titubeando, denunciou, porventura, na sua hesitação, o designio que guardava em seu ânimo, chi lo sá?! Respondeu conforme pôde:
—Eu agora . . . estou capaz de ir . . . tenho por força de ir agora. . .
—Para cima?
—Não; ali, para aquele lado. . .
Innocencio fixava-o no branco dos olhos.
—A Santa Isabel!!! accrescentou Meréllo, que, com o ganhar tempo, cobrara ânimo, e revigorara o seu espírito. Vou a Santa Isabel, e adeus, que não me posso demorar!!!
—Então, adeus! disse-lhe o Innocencio. E obrigado pela companhia.
Meréllo, em passinho de pulga, cortou para a direita, pelo largo do Rato fora, e sumiu-se detrás da esquina.
Dois olhos, porém, o acompanhavam, vigiando-o, sem falarmos nos da providência, que, talvez, naquela hora o não seguissem com tanto desvelo. . .
Eram os olhos do Innocencio, que, logo depois de fechar a porta da rua, de novo a abrira, de mansinho, encostando-a habilmente por maneira que pudesse ver sem ser visto.
Espreitado o Meréllo no rápido ápice de dobrar a esquina, aí foi logo, de corrida, de voada, o Innocencio, encostar-se meio escondido, na diligência de observar, se, efectivamente, o Meréllo seguia pela rua do Sol, a fim de cortar depois á esquerda para Santa Isabel.
Mas,—oh! confirmação da suspeita!—o Meréllo virou pela rua de S. Bento, e, deste modo, revelou a engenhosa estratégia com que estivera a ponto de levar de vencida o seu competidor.
Innocencio Francisco da Silva não pensou uma, não pensou duas, nem três vezes, e, voltando a meter-se na rua da Escola Politécnica, desceu pressuroso, aos encontrões a quem ia e vinha; ele, para o passeio; ele, para o meio da rua; zás, pás; de salto, pulo, e gangão; respirando apenas; apertando o fígado, abalado pela fúria da correria; até que, catrapuz, caía de chofre na loja do livreiro, onde, em caso imediato, se embrulhava com um vulto, que, também de repelão e de tombo súbito, penetrava ali. . . Era o Meréllo!
O Meréllo, que, suspeitoso e inquieto pelas perguntas do Innocencio, correra ao livreiro, e alcançara, pela rua de S. Bento, Calhariz e Chiado, chegar ao Pote das Almas ao mesmo tempo que o seu rival ilustre, por S. Pedro de Alcântara e S. Roque: em passo vertiginoso, de bibliófilos, ambos eles; o incomparável passo, que fez sempre a inveja do Bargossi! o andarilho Bargossi!
Com razão se diz serem mudas as dores supremas. No meio do reboliço que houve naquela loja, quando os dois alfarrabistas se atropelaram ao entrar ali, qual deles com maior ânsia, foi o Meréllo o primeiro a conseguir deitar a mão ao livro.
O Innocencio, que tinha uma tremenda língua de palmo e meio, terror do próximo, meteu-a no bucho, e, engolindo em seco, viu o outro arrecadar o livro no bolso do peito, abotoar-se à mesm’alma, pagar o livro ao Rodrigues, e sair, ficando quedo e mudo, como se, aquele caso formidando, estivesse a ponto de entupir-lhe por uma vez a fala.

Os leitores conhecedores da topografia de Lisboa, e uma vez que as ruas conservam o mesmo nome, podem, ao ler o texto, reconstruir o percurso dos dois ávidos bibliófilos.

Termino com um fragmento do perfil biográfico de Inoccencio Francisco da Silva traçado por A. A. Teixeira de Vasconcellos (1816-1878) na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil.

O sr. Innocencio Francisco da Silva, nasceu em Lisboa a 28 de Setembro de 1810. Seu pai, comerciante pouco abastado e oficial de ordenanças, foi o mestre que lhe deu as primeiras noções do saber humano…
Desde 1825 até 1830 estudou desenho, humanidades, lingua francesa, e frequentou durante dois anos o curso da aula do comércio, intercalando estes trabalhos com leituras dos principais filósofos do século passado.
De 1830 a 1833 seguiu o curso matemático da Academia Real de Marinha. No primeiro e no segundo ano obteve prémios. No terceiro em que não os havia mereceu distinção honrosa.
Nessa época entrara em Lisboa o duque da Terceira, vitorioso das tropas realistas, e principiara a organizar a guarnição que devia defender dos inimigos ainda numerosos, tão preciosa conquista. O sr. Innocencio assentou praça no 4.° Batalhão Movel, no qual serviu de oficial inferior com satisfação e louvor dos seus chefes.
Seu pai, cuja fortuna diminuira ainda antes de 1830, estava então velho, cego e paralítico. Os encargos da familia pesavam todos sobre o jovem voluntário liberal, cuja inteligência, instrucção e ânimo determinado, o habilitavam a cumpri-los todos. Aproveitando os estudos anteriores dedicou-se a leccionar estudantes da Academia de Marinha e da Aula de Comercio, c neste exercicio obteve excelentes créditos desde 1834 até 1837. De certo não eram menores os que tinha como cidadão, pois que os seus camaradas da Guarda Nacional, por esse tempo o elegeram capitão.
Obteve então um amigo que o administrador geral de Lisboa convidasse o sr. Innocencio para ser amanuense extraordinário ou temporário da sua secretaria, com vencimento de dez tostões nos dias úteis. Nesta colocação se conservou até 1842, em que o despacharam amanuense de segunda classe, vindo só a alcançar em 1851 acesso à primeira. Nos vinte e cinco anos que tem passado no governo civil a escrever mais de vinte e seis mil cartas e ofícios, soube o sr. Innocencio adquirir e conservar o conceito dos chefes, e merecer-lhes louvores, assim pelo serviço feito na repartição de fazenda, onde esteve até 1848, como pelo que prestou na repartição da policia, segurança e salubridade publica, a que hoje pertence. Há pouco foi-lhe conferida a graduação de oficial, porém sem accesso.
Durante muitos anos foi o sr. Innocencio preparando os materiais para a sua obra, manuseando larga cópia de livros, adquirindo grande porção deles, estudando os modelos bibliográficos, investigando as questões e dúvidas que a cada passo lhe surgiam, e lutando com difficuldades que teriam desanimado qualquer espirito menos vigoroso e persistente.
Em Outubro de 1858, saiu á luz da Imprensa Nacional, a expensas do governo português, o primeiro volume do Diccionario Bibliographico, e já a esse tempo a Academia Real das Sciencias, escolhera o autor para seu sócio correspondente.
O instituto de Coimbra, o Instituto Historico e Geographico do Brasil, e não sei quantas outras sociedades literárias abriram espontaneamente as suas portas ao ilustre bibliógrafo
português, e há poucos dias a Academia Real das Sciencias resolveu chamá-lo ao grêmio dos seus sócios efectivos, onde o conceito público o julgava desde muito tempo colocado.

Lisboa, 17 de Maio de 1862
A. A. Teixeira de Vasconcellos.

A imagem de abertura mostra uma pintura famosa de Carl Spitzweg (1808-1885).

Encerro o artigo com o retrato do homem em gravura a ponta de aço.

Innocencio Francisco da Silva - Perfil

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Heterónimos de Fernando Pessoa – a carta a Adolfo Casais Monteiro

31 Sexta-feira Maio 2013

Posted by viciodapoesia in Prosa

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Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares, Fernando Pessoa, Heterónimos de Fernando Pessoa, Ricardo Reis

Era uma vezOs leitores do blog conhecem, certamente, os heterónimos de Fernando Pessoa. Talvez não conheçam, no entanto, como o poeta os pensou e referiu a Adolfo Casais Monteiro numa carta famosa, datada de Lisboa em 13 de Janeiro de 1935, e publicada pela primeira vez em 1937 na Revista Presença, após a morte do poeta, portanto.

É neste pressuposto que transcrevo parcialmente para o blog, tão relevante documento.

…
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não ao estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos, depois lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta, mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 —, acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, “O Guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio também, os seis poemas que constituem “Chuva Oblíqua”, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajudei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à maquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, çriador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes e como eu não sou nada na matéria.
…
Mais uns apontamentos nesta matéria… Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (à 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes, e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco. Álvaro de Campos é alto (1m,75 de altura — mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo porém liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o “Opiário”. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?… Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa [Livro do Desassossego] é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de tenue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos, como dizer “eu próprio” em vez de “eu mesmo”, etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim, é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).
…

Transcrevi o texto da edição da Correspondência de Fernando Pessoa editada por Manuela Parreira da Silva e publicada por Assírio & Alvim, Lisboa 1999.

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