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Despeço-me de 2014 no blog com esta prosa bem-humorada de Júlio César Machado (1835-1890).
Para todos um feliz 2015 e até para o ano.
O disparate francês, deve dizer-se, não se parece com o de nenhum povo; é sempre picante, imaginoso, excêntrico.
Um homem compra um vitelinho, e leva-o para casa; dá-lhe sempre de comer, trata-o com carinho, e deixa-o ir crescendo na água-furtada em que habita. Um belo dia, com o andar do tempo, o vitelinho torna-se num boi. A vizinhança inquieta-se, assusta-se, despeita-se, e dá parte à autoridade. A autoridade visita a água-furtada, e encontra o boi magestosamente nédio no meio da sala, sem poder andar para traz nem para diante, porque a enche com a sua colossal corpulência. O dono da casa pergunta delicadamente a que deve o prazer daquela visita inesperada, ao que a autoridade, no auge do pasmo e da indignação, responde:
—Atreve-se a perguntá-lo! Vinha por causa desse animal enorme, esse boi maravilhoso…
—Vem visitar o meu boi? Oh ! Faz favor de entrar!
—O senhor sabe perfeitamente que a lei proíbe criar bois na cidade.
—Na cidade?
—Tanto mais dentro duma casa.
—Sim?
—E mais ainda, se mais pode haver, num quarto andar.
—Não conta a sobreloja?
—Num quinto andar.
—Exactamente.
—O seu procedimento tão novo e inexplicável…
—Como, inexplicável! Vi uma vez na rua um vitelinho, manso, comedido, gracioso, saltitante, levei-me de simpatia, e comprei-o.
—Senhor.
—Comprei-o, eis tudo.
—Senhor!
—Comprei-o, e trouxe-o para casa. Era um entretenimento. Pequenino, jeitoso, meigo…
—Mas o senhor bem sabia que ele havia de crescer!
—Não sabia!
—Como, não sabia?
—Suspeitava; mas afirmaram-me que não.
A autoridade encoleriza-se,
—Está caçoando porventura!? Então ignorava que os bois em pequenos são vitelos, e que os vitelos vêem a ser bois?
—Tinha ideia de ouvir contar isso, mas como me afiançaram que não crescia, e eu me lembrava de ter comprado uma ocasião um cão pequenino que nunca cresceu mais, persuadi-me que o vitelo seria da mesma natureza: porque não?
—Todo este caso é original, e vai seguir os seus trâmites. Comecemos por tirar daqui esse inquilino de que o senhorio não teve notícia.
—Principiemos!
Os oficiais de diligências, depois de algumas inteligentes manobras, compreenderam a dificuldade da sua missão, porque o boi, não cabendo pela porta nem pela janela, não podia sair. A autoridade estava fula de cólera, os vizinhos tinham vindo todos para a escada, os beleguins praguejavam, e o boi olhava para todos com um verosimil ar de surpresa.
A autoridade, depois de uma pausa cheia de reflexão, disse:
—Mate-se o boi.
A esta palavra, o dono da casa ia protestar, quando os vizinhos e principalmente as vizinhas largaram numa gritaria infernal opondo-se a essa resolução, que ia espalhar desassossego no bairro e sangue no prédio. A esposa do senhorio principiou a gabar o boi, o inquilino tomou a liberdade de lho oferecer, o senhorio não consentiu, a autoridade disse que tinha pressa, os vizinhos agarraram-se todos ao boi a chorar, e o senhorio consolou os ânimos por esta frase:
—Vou cortar o nó gordio!
Os vizinhos disseram todos: Ah!…
—Corta o nó gordio, meu homem! exclamou a esposa enxugando copiosas lágrimas.
A autoridade significou por um gesto cheio de dignidade, que estava preparada a ouvir.
—Aproveito a ocasião para fazer obras no prédio, e mando alargar a escada, de maneira que o boi possa sair!
—Isso leva muito tempo. É impossível; respondeu a autoridade. Isto há-de decidir-se até amanhã.
—Pois decidir-se-á hoje mesmo, replicou o senhorio em tom picado. Esta tarde alargam-se as janelas, e o boi sairá içado.
Nessa tarde, com grande alvoroço do bairro e dos curiosos, içou-se o boi que saiu por uma ex-janela, gloriosamente demolida por seis diligentes pedreiros.
A imagem que acompanha o texto a abrir mostra uma obra de Francesco Clemente (1952) de seu nome: Água e Vinho.
No corpo da prosa, o boi – vaca – vitelo, surpreso, da autoria de Albert Ecker, chamou-lhe o autor, “Pensando sobre o futuro”.