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Assistimos hoje, nas tragédias aéreas e outras em que mortes acontecem, à angústia e ansiedade dos familiares das vítimas em recuperar os corpos dos seus e providenciar-lhes sepultura. É algo que parece uma necessidade humana interior, e funciona com castigo insuportável ser impedido de o fazer.
Essa é a motivação de Antígona na tragédia do mesmo nome de Sófocles (497/6-406/5 a.C.) ao desobedecer à ordem de Creonte, dando sepultura ao irmão morto, e com isso enfrentando o castigo de ser emparedada viva.
Além da terrível consequência pessoal com origem na motivação afectiva, são vastas para o homem enquanto ser social as implicações que atravessam o conflito vivido no desenrolar da tragédia.
Confrontam-se nela a fonte do poder e o seu exercício, a necessidade de obediência à lei para a estabilidade de uma sociedade organizada, e os limites da vontade de quem manda, exigindo o equilíbrio entre exercício legítimo de poder e arbítrio.
Pelo meio temos, numa fala do coro que permanece entre os mais famosos poemas do legado grego, o registo de quanto o ser humano é capaz, recordando no final que apenas a morte nos faz parar.
Como refere Maria Helena da Rocha Pereira (MHRP) em nota à sua tradução que abaixo transcrevo, na ode o coro celebra as conquistas do homem: a navegação, a agricultura, a caça, a pesca, a domesticação dos animais, a fala, o pensamento, a política, a construção de casas, a medicina.
De então para cá, se o essencial das conquistas que propiciam a continuidade da espécie se mantém, é sobretudo na luta contra a doença que nos nossos dias as aptidões humanas se mostram mais efectivas, e seriam permanente motivo de espanto e admiração se por pouco parássemos a olhar para trás, sem necessidade de recuar muito no tempo.
O texto de Antígona (442 a.C.) de Sófocles tem feito correr rios de tinta, ocupado pensadores, e estimulado a criação artística. Leitores curiosos encontram em Antigonas de George Steiner um panorama desta vastidão. Acresce que a peça é de leitura compulsiva e de avassalador efeito, pelo menos na tradução de MHRP.
Termino citando Ruy Belo num poema que há pouco tempo trouxe ao blog:
O desafio de antígona e de prometeu
é hoje ainda o nosso desafio
embora como um rio o tempo haja corrido
Do sono da desperta Grécia vv. 27-29
Se já referi a tradução de MHRP, que mais à frente virá, fazendo justiça ao poema com uma fiel tradução a partir do grego, começo no entanto, com uma outra versão, pela mão da inspiração poética de David Mourão-Ferreira:
Elogio do Homem
Inúmeras são do mundo as maravilhas,
mas nenhuma que ao homem se compare:
é vê-lo sobre as ondas, entre as ilhas,
as águas percorrer do branco mar;
ou é vê-lo, diante da mãe-Terra,
sem pausa revolvê-la com seus potros,
fazendo que dos grãos que a terra encerra
em frutos se desdobrem todos, todos!
Ele, só, captura com seus laços,
ou com redes que faz entrelaçadas,
os pássaros ligeiros dos espaços,
os peixes que se ocultam entre as vagas…
E consegue os cavalos ir domando,
adrede utilizando suas manhas;
ao bicho mais feroz torná-lo manso,
como acontece ao touro das montanhas.
Sob tectos, se abriga da friagem;
sob tectos, das chuvas inclementes…
E vede: o pensamento, a linguagem
sua conquista são exclusivamente.
É o Ser dos recursos infindáveis:
até contra o futuro se faz forte;
e cura-se de males incuráveis…
Aquilo que o detém? Somente a Morte.
Antígona vv. 332-62
Tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da poesia europeia – I
E agora a tradução da Prof. Rocha Pereira:
Coro
Muitos prodígios há: porém nenhum
maior do que o homem.
Esse, co’o sopro invernoso do Noto (1),
passando entre as vagas
fundas como abismos,
o cinzento mar ultrapassou. E a terra
imortal, dos deuses a mais sublime,
trabalha-a sem fim,
volvendo o arado, ano após ano,
com a raça dos cavalos laborando.
E das aves as tribos descuidadas,
a raça das feras,
em côncavas redes
a fauna marinha, apanha-as e prende-as
o engenho do homem.
Dos animais do monte, que no mato
habitam, com arte se apodera;
domina o cavalo
de longas crinas, o jugo lhe põe,
vence o touro indomável das alturas.
A fala e o alado pensamento,
as normas que regulam as cidades
sozinho aprendeu;
da geada do céu, da chuva inclemente
e sem refúgio, os dardos evita,
de tudo capaz.
Na vida não avança sem recursos.
Ao Hades somente
não pode fugir.
De doenças invencíveis os meios
de escapar já com outros meditou.
Da sua arte o engenho subtil
p’ra além do que se espera, ora o leva
ao bem, ora ao mal;
se da terra preza as leis e dos deuses
na justiça faz fé, grande é a cidade;
mas logo a perde
quem por audácia incorre no erro.
(1) vento sul
Fragmento de Antígona, vv. 332-371
Sófocles, Antígona, 3ª edição, INIC, Coimbra, 1992.
Acompanham o artigo algumas das iluminuras dos irmãos Limbourg para o livro Les Très Riches Heures du Duc de Berry (1416) dando conta de tarefas do calendário agrícola: sementeiras, colheitas, vindima.