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Bem me cuidei eu, Maria Garcia — um poema de Afonso Eanes do Cotom

01 Domingo Set 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Galaico-Portuguesa, Poesia Medieval

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Afonso Eanes do Cotom, Irmãos Limbourg

Surpreender hábitos e mentalidades são um dos atractivos dos cancioneiros antigos. E estes são cheios de revelações inesperadas. O título do artigo, primeiro verso do poema transcrito abaixo, e nome do poeta a seguir, não dá conta da surpresa que espera o leitor que continuar a leitura. É ele um singular poema do cancioneiro galaico-português onde o poeta reclama de não ter recebido paga depois de ter fodido uma Maria Garcia:

 

Bem acreditei, Maria Garcia

no outro dia, quando vos fodi,

que de vós não partiria

como parti, com a mão vazia,

apesar do serviço que vos fiz;

…

 

Ao ler estes versos poderíamos pensar tratar o poema de prostituição masculina ao referir o acto sexual como um serviço. É assim mas com nuances. Ganhamos uma ideia mais precisa destes comportamentos, digamos comerciais, à volta do sexo na idade média, ao ler o fabliaux Le Fouteur (O Fodedor) que outro dia aqui trarei. Este fodedor francês não se sentiu enganado, contrariamente ao protagonista do poema de hoje, porque exigiu o pagamento antecipado dos seus serviços, o que o nosso homem diz que em próxima ocasião também fará. 

Embora a prostituição seja antiga como a humanidade, e dela a poesia dê conta pelos tempos fora, quando masculina é invulgar o seu tratamento poético. E é certamente abusivo qualificar para esta época, e com a carga moral de hoje, prostituto um indivíduo cujo comportamento sexual, lendo só a estrofe citada, assim se poderia chamar nos nossos dias. Acontece que à época este comportamento não tinha associada a carga moral negativa dos nossos dias ainda que os seus praticantes pudessem incluir-se entre extractos mais baixos da sociedade. Ele integrava, e era parte, da imutável ordem natural do mundo, criado por Deus na sua infinita e inquestionável perfeição, e caberia num quadro de costumes aceite, como o poema refere a terminar:

…

E, dona minha, quem pergunta não erra

— e vós, por Deus, mandai perguntar

pelos naturais deste lugar

se foder, em paz ou em guerra,

não é por dinheiro ou por amor.

…

 

No entanto, e mais à frente, se verá quanto de comum há entre o resto desta reflexão em torno do relato factual, e tanta experiência pessoal hoje.

Entretanto, continuando a leitura do poema, ficamos a saber que o valor esperado pelo serviço não seria sequer significativo:

…

pois não me destes, segundo se diz, / nem um soldo para jantar um dia. / …, o que leva o nosso homem a dizer o que afinal é uma experiência intemporal:

… não mais foder uma mulher

se antes algo na mão me não puser

pois não tenho porque foder de graça;

e vós, se assim quiserdes foder

sabeis como: ide-o fazer

com quem tiverdes vestido e calçado.

…

 

Entra aqui o que insinuei antes, e é um dos aspectos perenes da relação sexual entre indivíduos: a contabilidade do dar e receber e, por vezes, a dependência económica que mantém uma ligação quando qualquer afecto ou estima desapareceu, o que de forma lapidar o poema específica, como vimos acima,

…

e vós, se assim quiserdes foder

sabeis como: ide-o fazer

com quem tiverdes vestido e calçado.

…

e prossegue:

…

Como não me vestiste nem calçaste 

nem eu habito no vosso casal;

nem tendes por mim poder tal

pra que vos foda, sem que me pagueis

antes muito bem; e mais vos eu direi:

nenhum medo, graças a Deus e el-Rei,

tenho da força que sobre mim façais.

…

 

Chegamos agora ao fim do poema com a lição que a vida todos os dias dá, a saber, as razões para as relações sexuais — por dinheiro ou por amor —

…

— e vós, por Deus, mandai perguntar

pelos naturais deste lugar

se foder, em paz ou em guerra,

não é por dinheiro ou por amor.

…

 

 

O poeta, Afonso Eanes do Cotom, autor de 19 poemas conhecidos, terá nascido na Galiza, e vivido no século XIII. O poema transcrito consta dos Cancioneiros da Biblioteca Nacional, (B 1588) e Biblioteca Vaticana (V1120).

Encontra o leitor a seguir uma minha versão do poema em português moderno, a qual entretanto citei no corpo do texto, procurando explicitar o sentido escondido de algumas expressões em desuso, para facilitar a sua inteligibilidade. Adoptei na tradução modernizada o que é uma prática comum na abundante edição francesa de poesia medieval, nomeadamente na colecção Lettres Gothiques da editora Le Livre de Poche.

Segue-se o texto do poema na língua original. A transcrição a partir dos manuscritos suscita dúvidas entre os especialista na expressão final — Rei en’a terra. ou renda na terra. — e escolhi a primeira.

 

 

Afonso Eanes do Cotom — [Bem acreditei, Maria Garcia]

 

Tradução modernizada em português 

 

Bem acreditei, Maria Garcia

no outro dia, quando vos fodi,

que de vós não partiria

como parti, com a mão vazia,

apesar do serviço que vos fiz;

pois não me destes, segundo se diz,

nem um soldo para jantar um dia.

 

Pois desta ficarei escarmentado (*)

para não mais foder uma mulher

se antes algo na mão me não puser

pois não tenho porque foder de graça;

e vós, se assim quiserdes foder

sabeis como: ide-o fazer

com quem tiverdes vestido e calçado.

 

Como não me vestiste nem calçaste 

nem eu habito no vosso casal;

nem tendes por mim poder tal

pra que vos foda, sem que me pagueis

antes muito bem; e mais vos eu direi:

nenhum medo, graças a Deus e el-Rei,

tenho da força que sobre mim façais.

 

E, dona minha, quem pergunta não erra

— e vós, por Deus, mandai perguntar

pelos naturais deste lugar

se foder, em paz ou em guerra,

não é por dinheiro ou por amor.

Ide tratar da vossa vida, senhor, (**)

que ainda há, graças a Deus, justiça na terra,

 

(*) Pois desta aprendi a lição.

(**) invariante antiga para senhor e senhora. Conservei a forma antiga para preservar a rima.

Tradução de Carlos Mendonça Lopes

 

 

Afonso Eanes do Cotom — [Bem me cuidei eu, Maria Garcia]

 

Original do poema

 

Bem me cuidei eu, Maria Garcia,

no outro dia, quando vos fodi,

que me nom partiss’eu de vós assi

como me parti já, mão vazia,

vel por serviço muito que vos fiz;

que me nom destes, como x’homem diz,

sequer um soldo que ceass’um dia.

 

Mais desta serei eu escarmentado:

de nunca foder já outra tal mulher

se m’ant’algo na mão não poser,

ca nom hei porque foda endoado;

e vós, se assi queredes foder,

sabedes como: ide-o fazer

com quem teverdes visti’e calçado.

 

Cá me nom vistides nem calçades

nem ar sej’eu en’o vosso casal;

nem havedes sobre mim poder tal

por que vos foda, se me nom pagades 

ante mui bem; e mais vos eu direi:

nulho medo, grado a Deus e a el-Rei,

nom hei de força que me vós façades.

 

E, mia dona, quem pergunta nom erra

— e vós, por Deus, mandade perguntar

polos naturaes deste lugar

se foderam nunca em paz nem em guerra,

ergo se foi por alg’ou por amor,

Id’adubar vossa prol, aí, senhor,

c’havedes, grad’a Deus, Rei en’a terra.

 

Cancioneiro da Biblioteca Nacional, 1588; Cancioneiro da Vaticana 1120.

 

 

Abre o artigo a imagem de um detalhe da iluminura para o mês de Fevereiro do manuscrito iluminado Les Tres Riches Heures du Duc du Berry pelos irmãos Limbourg.

Neste pormenor o artista mostra-nos um grupo de jovens camponeses, um rapaz e duas raparigas. Forçados a uma pausa nos trabalhos do campo pelo inverno, aproveitam-na ao que parece, para dar satisfação aos desejos imperiosos do corpo. Pelo menos é o que pode deduzir-se do cenário e dos gestos dos personagens. À esquerda, com uma cama em fundo, um casal, genitais à vista, apresta-se à função. Com gestos de mãos parecem querer acalmar na sua pressa a rapariga que no exterior faz o gesto de levantar as saias. 

Imagino que aqui não se tratará de dinheiro ou de amor a justificar a actividade adivinhada, como o poeta pretende que sempre acontece, mas apenas do irreprimível impulso da espécie.

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Dois vilancetes e uma sentença de D. Francisco de Portugal

14 Segunda-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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D. Francisco de Portugal, Irmãos Limbourg

Falar de amor e desejo, publicamente, através da poesia, no século XVI, tem as suas exigências de convenção, ainda que, sem grande subtileza espreite o eterno da atracção homem/mulher.
Vem isto a propósito de um vilancete de D. Francisco de Portugal ( 14??-1549), 1º Conde de Vimioso, que a seguir transcrevo. Nele o poeta recusa ousar o desejo que supostamente ofenderia o pudor da amada. A seguir diz-nos o poeta quanto esse desejo o incendeia, pois mesmo quando, por não o satisfazer, chama a morte como remédio, o desejo não parte, e permanece.

 

Vilancete

Meu amor, tanto vos amo,
Que meu desejo não ousa
Desejar nenhuma cousa

Porque se a desejasse
Logo a esperaria
E se a eu esperasse
Sei que vos anojaria.
Mil vezes a morte chamo
E meu desejo não ousa
Desejar-me outra cousa.

 

Agora, é a dor da ausência da amada o que o poeta sofre neste outro vilancete  de elegante versificação:

 

Vilancete

Meu bem sem vos ver
se vivo um dia
viver nam queria.

Caland’e sofrendo
meu mal sem medida,
mil mortes na vida
sinto não vos vendo.
E pois que vivendo
moiro todavia,
viver nam queria.

 

São poemas ao gosto de uma época que, na simplicidade da sua versificação, guardam o eterno do amor na ansiedade do desejo e dor do afastamento.

Termino esta pequena amostra da poesia de D. Francisco de Portugal com uma das suas sentenças rimadas:

 

Sentença

Que grande espanto é cuidar
Como se sustém o mundo.
Quam perto está de pasmar
Quem às cousas vê o fundo.

 

Publicado no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.

Transcritos de Sentenças de D. Francisco de Portugal, 1º Conde de Vimioso,  seguidas das suas poesias publicadas no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, revistas e prefaciaras por Mendes dos Remédios, Coimbra, França Amado Editor, 1905.

Abre o artigo a imagem de um detalhe de uma iluminura dos Irmãos Limbourg (início sec. XV), Les Trés Riches Heures du Duc du Berry, cena cortês no mês de Abril.

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Elogio do Homem – fragmento de Antígona de Sófocles

18 Segunda-feira Ago 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Antígona, Grécia, Irmãos Limbourg, Sófocles

Très Riches Heures 06Assistimos hoje, nas tragédias aéreas e outras em que mortes acontecem, à angústia e ansiedade dos familiares das vítimas em recuperar os corpos dos seus e providenciar-lhes sepultura. É algo que parece uma necessidade humana interior, e funciona com castigo insuportável ser impedido de o fazer.

Essa é a motivação de Antígona na tragédia do mesmo nome de Sófocles (497/6-406/5 a.C.) ao desobedecer à ordem de Creonte, dando sepultura ao irmão morto, e com isso enfrentando o castigo de ser emparedada viva.

Além da terrível consequência pessoal com origem na motivação afectiva, são vastas para o homem enquanto ser social as implicações que atravessam o conflito vivido no desenrolar da tragédia.

Confrontam-se nela a fonte do poder e o seu exercício, a necessidade de obediência à lei para a estabilidade de uma sociedade organizada, e os limites da vontade de quem manda, exigindo o equilíbrio entre exercício legítimo de poder e arbítrio.

Pelo meio temos, numa fala do coro que permanece entre os mais famosos poemas do legado grego, o registo de quanto o ser humano é capaz, recordando no final que apenas a morte nos faz parar.

Très Riches Heures 03Como refere Maria Helena da Rocha Pereira (MHRP) em nota à sua tradução que abaixo transcrevo, na ode o coro celebra as conquistas do homem: a navegação, a agricultura, a caça, a pesca, a domesticação dos animais, a fala, o pensamento, a política, a construção de casas, a medicina.

De então para cá, se o essencial das conquistas que propiciam a continuidade da espécie se mantém, é sobretudo na luta contra a doença que nos nossos dias as aptidões humanas se mostram mais efectivas, e seriam permanente motivo de espanto e admiração se por pouco parássemos a olhar para trás, sem necessidade de recuar muito no tempo.

Très Riches Heures 09O texto de Antígona (442 a.C.) de Sófocles tem feito correr rios de tinta, ocupado pensadores, e estimulado a criação artística. Leitores curiosos encontram em Antigonas de George Steiner um panorama desta vastidão. Acresce que a peça é de leitura compulsiva e de avassalador efeito, pelo menos na tradução de MHRP.

Termino citando Ruy Belo num poema que há pouco tempo trouxe ao blog:

O desafio de antígona e de prometeu

é hoje ainda o nosso desafio

embora como um rio o tempo haja corrido

Do sono da desperta Grécia  vv. 27-29

Très Riches Heures 10Se já referi a tradução de MHRP, que mais à frente virá, fazendo justiça ao poema com uma fiel tradução a partir do grego, começo  no entanto, com uma outra versão, pela mão da inspiração poética de David Mourão-Ferreira:

 

Elogio do Homem

 

Inúmeras são do mundo as maravilhas,

mas nenhuma que ao homem se compare:

é vê-lo sobre as ondas, entre as ilhas,

as águas percorrer do branco mar;

ou é vê-lo, diante da mãe-Terra,

sem pausa revolvê-la com seus potros,

fazendo que dos grãos que a terra encerra

em frutos se desdobrem todos, todos!

 

Ele, só, captura com seus laços,

ou com redes que faz entrelaçadas,

os pássaros ligeiros dos espaços,

os peixes que se ocultam entre as vagas…

E consegue os cavalos ir domando,

adrede utilizando suas manhas;

ao bicho mais feroz torná-lo manso,

como acontece ao touro das montanhas.

 

Sob tectos, se abriga da friagem;

sob tectos, das chuvas inclementes…

E vede: o pensamento, a linguagem

sua conquista são exclusivamente.

É o Ser dos recursos infindáveis:

até contra o futuro se faz forte;

e cura-se de males incuráveis…

Aquilo que o detém? Somente a Morte.

 

Antígona vv. 332-62

 

Tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da poesia europeia – I

Très Riches Heures 07E agora a tradução da Prof. Rocha Pereira:

 

Coro

 

Muitos prodígios há: porém nenhum

maior do que o homem.

Esse, co’o sopro invernoso do Noto (1),

passando entre as vagas

fundas como abismos,

o cinzento mar ultrapassou. E a terra

imortal, dos deuses a mais sublime,

trabalha-a sem fim,

volvendo o arado, ano após ano,

com a raça dos cavalos laborando.

 

E das aves as tribos descuidadas,

a raça das feras,

em côncavas redes

a fauna marinha, apanha-as e prende-as

o engenho do homem.

Dos animais do monte, que no mato

habitam, com arte se apodera;

domina o cavalo

de longas crinas, o jugo lhe põe,

vence o touro indomável das alturas.

 

A fala e o alado pensamento,

as normas que regulam as cidades

sozinho aprendeu;

da geada do céu, da chuva inclemente

e sem refúgio, os dardos evita,

de tudo capaz.

Na vida não avança sem recursos.

Ao Hades somente

não pode fugir.

De doenças invencíveis os meios

de escapar já com outros meditou.

 

Da sua arte o engenho subtil

p’ra além do que se espera, ora o leva

ao bem, ora ao mal;

se da terra preza as leis e dos deuses

na justiça faz fé, grande é a cidade;

mas logo a perde

quem por audácia incorre no erro.

 

(1) vento sul

 

Fragmento de Antígona, vv. 332-371

 

Sófocles, Antígona, 3ª edição, INIC, Coimbra, 1992.

Très Riches Heures 02Acompanham o artigo algumas das iluminuras dos irmãos Limbourg para o livro Les Très Riches Heures du Duc de Berry (1416) dando conta de tarefas do calendário agrícola: sementeiras, colheitas, vindima.

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No Dia Mundial do Livro

23 Segunda-feira Abr 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Crónicas

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Irmãos Limbourg

Sucedem-se os dias mundiais a propósito das mais variadas matérias. Acabam por chamar a atenção para assuntos ou realidades de que andava distraído. Não assim com o Dia Mundial do Livro. É para mim uma espécie de aniversário colectivo em que muitos amigos se festejam.

No esforço de segurar a vida tentando acreditar que vale a pena vive-la, é aos livros que recorro, qual Cartas a Lucílio, de Séneca, qual Consolação da Filosofia, de Boécio. Outros há, e na poesia são tantos, em que a alegria de estar vivo se reencontra!

Leio de forma regular desde os oito anos. À época, e estou a falar do principio dos anos sessenta do século XX, a fonte das minhas leituras era a biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian, materializada numa carrinha cheia de livros que às quartas-feiras estacionava no Largo da Praça e onde, ao fim da tarde, eu trocava os livros emprestados e lidos, pelos novos que seriam a alegria da semana seguinte. Encarregava-me o meu pai, nesta troca, do transporte dos livros que para ele também levara. Do que ele lia, não recordo. Apenas o nome de Balzac me vem à memória, pelo peso e tamanho dos livros. Para mim, sim, lembro os livros de contos de príncipes e princesas encantadas, encadernados a tecido com uma estampa pequena, colorida, na capa.

Foi adulto que, com enorme jubilo, encontrei no livro do século XV, Très Riches Heures du Duc de Berry (c. 1416), da autoria dos irmãos Limbourg, as imagens que inspiravam os desenhos desses livros de contos e me alimentaram a imaginação infantil com castelos e personagens fabulosos.

Hoje, à visão de qualquer livro de horas exposto em museu ou galeria, páro embevecido a olhá-los longamente. Foi com desgosto que há dias, em visita a um alfarrabista, não comprei uma belíssima copia fac.-similada em pergaminho, de uma destas obras-primas. A crise não está para aventuras.

Mas voltando à infância, poucos anos passados, com o aumento do nº de leitores, a biblioteca deixou a carrinha itinerante e instalou-se num antigo edifício no interior da cerca moura, adjacente à igreja da Misericórdia. Chegava-se lá por uma rua estreita em escadaria, da época medieval, a que também conduz ao castelo. Quando subia aquelas escadas, a minha imaginação infantil coloria-se, e via cavaleiros a descer por ali abaixo, envoltos em trajes esvoaçantes, arma em riste, a caminho de qualquer batalha ou aventura cavaleiresca de libertar formosa dama de um tirano pai que a mantinha a pão e água no alto de qualquer castelo.

Nunca mais parei de ler. Quando por volta dos catorze anos deixei de encontrar na biblioteca os livros que supunha interessarem-me, passei a comprá-los logo que conseguia juntar o dinheiro suficiente. Assim continuei, e acabei por quase submergir em livros.

Os livros sobrevivem-nos sempre, e agora, chegada a altura das escolhas, decidi passar a outros parte dos livros que por anos me acompanharam. Não ofereço, vendo-os. Quem decide gastar o seu dinheiro num livro, provavelmente deseja-o, e estimá-lo-á. Espero reduzir a biblioteca pessoal a poucos milhares de livros e continuar a ter espaço para os novos livros que chegam.

Hoje, ao toque do carteiro, pensei, mais cartas das Finanças! Afinal não. Para minha grande alegria, era o livro com a edição inglesa dos poemas de Anna Akhmatova, há muito esperado, e que a certa altura julguei perdido, que chegava. Terei ocasião de falar dele, da poetisa e dos seus poemas, mais tarde no blog.

Acredito com Umberto Eco que os livros como os conhecemos não serão substituídos por eBooks no tempo da minha vida. Os suportes variarão, todos teremos as nossa preferências no acto de leitura, mas a criação pela palavra e a sua transmissão entre os homens não vai terminar.
Reflexo da mutação dos tempos que atravessamos, decidi-me finalmente pela edição de parte do que tenho escrito, e assinalo este Dia Mundial do Livro de 2012 com o envio para publicação em eBook  do livro  da fermosa benfeitoria (rimas obscenas). A distribuição do livro estará a cargo de uma empresa dos EUA, e como as rimas são acompanhadas da reprodução de pinturas eróticas japonesas da minha colecção, aguardo a confirmação de aceitação, tendo em conta a censura visual exercida sobre a comunicação electrónica pública no pais da liberdade.

O livro, com uma abertura que remete para a pintura e um epílogo em diálogo com a religião, contém no corpo rimas que evocam alguma da poesia erótica da tradição europeia publicada ao longo dos séculos.

Quando o livro se encontrar disponível para compra, darei noticia no blog.

Releio o que escrevi acima e duas evidências ressaltam: por um lado ao falar de livros é a palavra alegria que sobressai; por outro, seria diferente o texto, e seria eu outra pessoa, se a vida não tivesse cruzado no meu caminho a Fundação Calouste Gulbenkian enquanto cidadão.
Através dela encontrei os livros, são edições da Fundação os livros que me salvaram e devolvem o sentido do viver, foi na colecção de arte da Fundação, exposta no seu museu, que abri os olhos para o belo artístico, aí incluídos tanto os livros de horas, como os livros persas por cujas iluminuras me apaixonei; foi finalmente na Fundação que as experiências musicais marcantes me aconteceram, quais os encontros com a música da vanguarda do século XX e a música antiga, e que outro dia virá à conversa, agora que Montserrat Figueras partiu para encantar os anjos no céu.

São do livro Très Riches Heures du Duc de Berry as imagens que acompanham o artigo.

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