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Sucedem-se os dias mundiais a propósito das mais variadas matérias. Acabam por chamar a atenção para assuntos ou realidades de que andava distraído. Não assim com o Dia Mundial do Livro. É para mim uma espécie de aniversário colectivo em que muitos amigos se festejam.

No esforço de segurar a vida tentando acreditar que vale a pena vive-la, é aos livros que recorro, qual Cartas a Lucílio, de Séneca, qual Consolação da Filosofia, de Boécio. Outros há, e na poesia são tantos, em que a alegria de estar vivo se reencontra!

Leio de forma regular desde os oito anos. À época, e estou a falar do principio dos anos sessenta do século XX, a fonte das minhas leituras era a biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian, materializada numa carrinha cheia de livros que às quartas-feiras estacionava no Largo da Praça e onde, ao fim da tarde, eu trocava os livros emprestados e lidos, pelos novos que seriam a alegria da semana seguinte. Encarregava-me o meu pai, nesta troca, do transporte dos livros que para ele também levara. Do que ele lia, não recordo. Apenas o nome de Balzac me vem à memória, pelo peso e tamanho dos livros. Para mim, sim, lembro os livros de contos de príncipes e princesas encantadas, encadernados a tecido com uma estampa pequena, colorida, na capa.

Foi adulto que, com enorme jubilo, encontrei no livro do século XV, Très Riches Heures du Duc de Berry (c. 1416), da autoria dos irmãos Limbourg, as imagens que inspiravam os desenhos desses livros de contos e me alimentaram a imaginação infantil com castelos e personagens fabulosos.

Hoje, à visão de qualquer livro de horas exposto em museu ou galeria, páro embevecido a olhá-los longamente. Foi com desgosto que há dias, em visita a um alfarrabista, não comprei uma belíssima copia fac.-similada em pergaminho, de uma destas obras-primas. A crise não está para aventuras.

Mas voltando à infância, poucos anos passados, com o aumento do nº de leitores, a biblioteca deixou a carrinha itinerante e instalou-se num antigo edifício no interior da cerca moura, adjacente à igreja da Misericórdia. Chegava-se lá por uma rua estreita em escadaria, da época medieval, a que também conduz ao castelo. Quando subia aquelas escadas, a minha imaginação infantil coloria-se, e via cavaleiros a descer por ali abaixo, envoltos em trajes esvoaçantes, arma em riste, a caminho de qualquer batalha ou aventura cavaleiresca de libertar formosa dama de um tirano pai que a mantinha a pão e água no alto de qualquer castelo.

Nunca mais parei de ler. Quando por volta dos catorze anos deixei de encontrar na biblioteca os livros que supunha interessarem-me, passei a comprá-los logo que conseguia juntar o dinheiro suficiente. Assim continuei, e acabei por quase submergir em livros.

Os livros sobrevivem-nos sempre, e agora, chegada a altura das escolhas, decidi passar a outros parte dos livros que por anos me acompanharam. Não ofereço, vendo-os. Quem decide gastar o seu dinheiro num livro, provavelmente deseja-o, e estimá-lo-á. Espero reduzir a biblioteca pessoal a poucos milhares de livros e continuar a ter espaço para os novos livros que chegam.

Hoje, ao toque do carteiro, pensei, mais cartas das Finanças! Afinal não. Para minha grande alegria, era o livro com a edição inglesa dos poemas de Anna Akhmatova, há muito esperado, e que a certa altura julguei perdido, que chegava. Terei ocasião de falar dele, da poetisa e dos seus poemas, mais tarde no blog.

Acredito com Umberto Eco que os livros como os conhecemos não serão substituídos por eBooks no tempo da minha vida. Os suportes variarão, todos teremos as nossa preferências no acto de leitura, mas a criação pela palavra e a sua transmissão entre os homens não vai terminar.
Reflexo da mutação dos tempos que atravessamos, decidi-me finalmente pela edição de parte do que tenho escrito, e assinalo este Dia Mundial do Livro de 2012 com o envio para publicação em eBook  do livro  da fermosa benfeitoria (rimas obscenas). A distribuição do livro estará a cargo de uma empresa dos EUA, e como as rimas são acompanhadas da reprodução de pinturas eróticas japonesas da minha colecção, aguardo a confirmação de aceitação, tendo em conta a censura visual exercida sobre a comunicação electrónica pública no pais da liberdade.

O livro, com uma abertura que remete para a pintura e um epílogo em diálogo com a religião, contém no corpo rimas que evocam alguma da poesia erótica da tradição europeia publicada ao longo dos séculos.

Quando o livro se encontrar disponível para compra, darei noticia no blog.

Releio o que escrevi acima e duas evidências ressaltam: por um lado ao falar de livros é a palavra alegria que sobressai; por outro, seria diferente o texto, e seria eu outra pessoa, se a vida não tivesse cruzado no meu caminho a Fundação Calouste Gulbenkian enquanto cidadão.
Através dela encontrei os livros, são edições da Fundação os livros que me salvaram e devolvem o sentido do viver, foi na colecção de arte da Fundação, exposta no seu museu, que abri os olhos para o belo artístico, aí incluídos tanto os livros de horas, como os livros persas por cujas iluminuras me apaixonei; foi finalmente na Fundação que as experiências musicais marcantes me aconteceram, quais os encontros com a música da vanguarda do século XX e a música antiga, e que outro dia virá à conversa, agora que Montserrat Figueras partiu para encantar os anjos no céu.

São do livro Très Riches Heures du Duc de Berry as imagens que acompanham o artigo.