Etiquetas
Para esta Primavera que tarda, resolvi-me à transcrição de um belo poema de Rainer Maria Rilke (1875-1926), escrito em francês e traduzido por Maria Gabriela Llansol.
PRIMAVERA
I
Ó seiva das ramagens
de todas as árvores, ergue-se
a tua melodia,
acompanhando o canto
da nossa voz demasiado breve.
A diversidade das figuras
do teu antiquissimo abandono é tal
que só, durante umas breves medidas,
ó fecunda natureza,
te conseguimos acompanhar.
Quando a nossa voz se calar,
outras virão…
Mas, neste momento, que hei-de eu fazer,
para te fazer chegar o meu imenso
coração que te completa?
II
Tudo se prepara para mostrar
a alegria que esplende;
a terra, e tudo o mais, a postos
para nos deslumbrar. Brevemente.
Estamos no melhor lugar
para tudo olhar e entender;
teremos mesmo que dizer “basta” –
e fazer recuar o encantamento.
Se, ao menos, estivéssemos no seu âmago envolvente!
O excelente lugar, que é o nosso,
está ligeiramente demasiado exposto
a esse jogo tão comovente.é um facto.
III
A seiva sobe nos capilares
e, sem prevenir, mostra aos velhos
o ano íngreme que não hão-de escalar
e que, dentro deles, iça as velas para a partida.
O corpo (magoado por este rompante
da natureza bruta, que desconhece
que essas artérias, onde ela ainda ferve,
suportam mal um capitão impaciente)
nega-se a tão inesperada aventura;
e enquanto para sobreviver se contrai,
desconfiado, o corpo facilita à terra dura
o seu biscate de morte.
IV
É a seiva que dá cabo
dos velhos e dos hesitantes
quando de súbito, flutua nas ruas
um nada malsão que corrói a atmosfera.
Todos esses que já não têm força
para erguer no céu as asas
são convidados ao divórcio
que os confunde com o pó da terra.
É a doçura que os abre
com a sua suprema ponta afiada,
e, aos que ainda resistem, um afago sobrevém
para os deitar ao nada.
V
Para que serviria a doçura
se não fosse capaz,
terna e inefável,
de nos causar pânico?
Está tão para além
de qualquer violencia
que, quando se solta,
ninguém lhe apara o golpe.
VI
No inverno, a morte homicida
entra pelas casas adentro,
à procura da irmã, à procura do pai,
para os enfeitar de violino.
Mas quando a terra se agita
sob a enxada da Primavera,
é plas ruas que ela anda,
a dizer “olá” a quem passa.
VII
É da costela de Adão
que Eva foi tirada;
mas, quando a sua vida se acaba,
para onde vai ela, moribunda?
Adão será a sua tumba?
Será preciso, quando está cansada,
arranjar um lugar, só para ela,
num homem impermeável?
Profunda reflexão sobre a brevidade da vida em contraste com a imperturbável perenidade da natureza,
I
…
C’est pendant quelques mesures
seulement que nous suivons
les multiples figures
de ton long abandon,
ô abondante nature,
Quand il faudra nous taire,
d’autres continueront…
Mais à présent comment faire
pour te rendre mon
grand coeur complémentaire?
é também da morte que nos fala, sobretudo nas três quadras de III, e ainda nesta belíssima forma de referir a visita da morte: leur joue du violon.
VI
En hiver, la morte meurtrière
entre dans les maisions;
elle cherche la soeu, le père,
et leur joue du violon.
Temos ainda em IV e V uma ambivalência na doçura que salva para a vida, ou conduz à morte:
sont invités au divorce / qui à la terre les mêle.
Termina o poema com a enigmática interrogação do destino do homem e da mulher:
C‘est de la côte d’Adam
qu’on a retiré Ève;
mais quand sa vie s’achève,
oú va-t-elle, mourant?
Adam serait-il son tombeau?
Faut-il, lorsqu’elle se lasse,
lui ménager une place
dans un homme bien clos?
Passando com a maior leveza do trivial ao transcendente, a leitura da poesia de Rilke introduz-nos no mistério da palavra, estimulando no leitor a busca da multiplicidade de sentidos envolvidos no dizer poético.
Nota
O poema encontra-se no livro FRUTOS E APONTAMENTOS, tradução livre por Maria Gabriela Llansol, dos poemas de Rainer Maria Rilke escritos em francês.
É uma edição Relógio d’Água, 1996.
Optei por acompanhar os curtos comentários ao poema com o original francês para que, pelo menos os leitores que dominam a língua, tenham a percepção das, por vezes controversas, opções da tradutora.