• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Tag Archives: Sófocles

Sófocles — fragmento de Rei Édipo

19 Quinta-feira Mar 2015

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Robert Smithson, Sófocles

Robert Smithson-Spiral-Jetty-Great-Salt-Lake-02-1970A condição de homem, em filho sempre, em pai, se acontece, vive-se na fragilidade da nossa circunstância. No labirinto do mundo apenas alguns caminhos percorremos, e em cada encruzilhada somos levados a decidir, bem ou mal, por onde continuar. Dessas escolhas vivemos as consequências. Se em algum momento podemos sentir: Pai, Pai, porque me abandonaste!? há um desabar em torno que retira sentido ao mundo.

A tragédia que as armadilhas do destino podem proporcionar viveu-as Édipo enquanto filho e pai, levadas a uma dimensão de absoluto. Personagem exemplar e mítico, na tragédia Rei Édipo escrita por Sófocles, confronta-se com os acasos que a vida o fez viver.

É a sua condição de filho que matou o pai, posteriormente casou com a mãe com quem gerou também filhos que seriam simultaneamente seus irmãos, o que se relata nos fragmentos que a seguir transcrevo.

Apesar de nos actos ignorar a sua condição de filho, descobrindo-se autor de tão hediondos crimes, furou os olhos cegando-se, a assim renunciou à vida quando o suicídio era um interdito.

A história, abusivamente assimilada a partir de Freud ao chamado complexo de Édipo, dá conta, entre a vastidão das suas implicações morais, da dignidade com que um homem aceita o inevitável sofrimento pela honra, em sequência de actos ignominiosos cometidos no desconhecimento da sua natureza e dimensão.

 

 

Estásimo IV

 

Coro

 

Ó gerações dos mortais,

como a vossa vida ao nada

se iguala!

Que homem, sim, que homem

da ventura mais possui

do que a aparência de a ter,

e, uma vez tida, de cair no ocaso?

Sim, com o teu exemplo — o teu!…

ó desditoso Édipo, os mortais

em nada vejo afortunados.

 

Tu, que ao mais alto

apontaste e dominaste

em tudo próspera a riqueza

— ó Zeus! — que derrubaste,

fatídica, a virgem

de recurvas presas e contra a morte

tua muralha nos ergueste!

Desde então meu rei

tu és chamado e as maiores

honras te são dadas,

da poderosa Te as

senhor!

 

Agora, quem poderá contar maior desdita?

Quem, no sofrimento, quem na ruína cruel

se lhe aproxima na derrocada da vida?

Aí, gloriosa figura de Édipo

a ti, imenso, o mesmo

porto foi bastante

para o filho e o pai

nas núpcias receber.

Como pôde, como pôde o seio fecundado

por teu pai consentir-te,

desditoso, no silêncio até agora?

 

Descobriu-te, mau grado teu, o tempo que tudo vê;

condena esta união monstruosa, em que há muito

genitor é gerado são um só.

Ai, filho de Laio,

nunca, nunca eu

te conhecesse!

Choro como se um grito

de horrores dos meus lábios

escapasse. E para falar

com justiça, por ti tomei alento,

e por ti, agora, a treva me cobre os olhos!

v.v. 1186-1222

 

…

 

Édipo

 

Que estas acções não foram o procedimento ideal, não mo ensines nem tão-pouco me dês conselhos. Pois, se eu tivesse vista, não sei com que olhos poderia encarar o meu pai, ao entrar no Hades, ou minha desgraçada mãe; contra ambos cometi crimes que exigem mais do que a forca.

E também em contemplar os meus filhos, nascidos como nasceram, que prazer poderia eu sentir? Nunca os meus olhos o teriam! Nem em contemplar a cidade, nem as suas muralhas, nem as imagens sagradas dos deuses; delas me afastei eu próprio — eu, que agora sou o maior dos desgraçados, e que fui um dos mais nobres filhos de Tebas — ao exortar todos ao repúdio do homem impuro, desse que os deuses apontam como anátema e filho de Laio.

Depois de tal mancha ter descoberto em mim, podia eu encará-los de olhar levantado? De modo algum. Houvesse ainda para a fonte dos sons uma barreira na senda dos ouvidos, e não me teria contido, sem aferrolhar o meu pobre corpo, para que fosse, além de cego, incapaz de ouvir; é doce para o espírito habitar longe dos seus males.

Oh Citerón, porque me acolheste? Porque me não recebeste para em seguida me dares a morte? Jamais mostraria então aos homens a minha origem. Oh, Pólibo, Corinto, antigo palácio ancestral, que passava por ser o de meu pai, tanta beleza criastes, e tanto mal dissimulado em mim! Pois agora, eu me descubro como réprobo, de réprobos nascido. Oh, caminho tripartido, recanto arborizado do vale, floresta de carvalhos, senda estreita da tripla encruzilhada, que bebeste, por minhas mãos derramado, o sangue de meu pai: acaso vos lembrais ainda de mim, dos crimes que em vossa presença cometi e daqueles que, ao vir, de novo pratiquei? Oh, himeneu, himeneu, que me fizeste nascer, e, depois de eu ter nascido, de novo me fizeste germinar na minha própria semente! Por ti se mostraram os pais, irmãos, filhos, como sangue incestuoso, para quem as esposas eram mulheres e mães ao mesmo tempo — toda a espécie de actos que são a suprema vergonha da humanidade.

Mas não é belo evocar o que não é decoroso. Depressa, pelos deuses, escondei-me algures, ou matai-me, arrojai-me ao mar, lá, onde jamais me possam ver. Aproximai-vos, dignai-vos tocar um homem desgraçado; acreditai, não tenhais receio, pois os meus males ninguém —senão eu — entre os mortais é capaz de os suportar.

v.v. 1369-1415

 

Tradução de Maria do Céu Zambujo Fialho

Transcrito de Sófocles, Rei Édipo, edições 70, Lisboa, 1997.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Elogio do Homem – fragmento de Antígona de Sófocles

18 Segunda-feira Ago 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Antígona, Grécia, Irmãos Limbourg, Sófocles

Très Riches Heures 06Assistimos hoje, nas tragédias aéreas e outras em que mortes acontecem, à angústia e ansiedade dos familiares das vítimas em recuperar os corpos dos seus e providenciar-lhes sepultura. É algo que parece uma necessidade humana interior, e funciona com castigo insuportável ser impedido de o fazer.

Essa é a motivação de Antígona na tragédia do mesmo nome de Sófocles (497/6-406/5 a.C.) ao desobedecer à ordem de Creonte, dando sepultura ao irmão morto, e com isso enfrentando o castigo de ser emparedada viva.

Além da terrível consequência pessoal com origem na motivação afectiva, são vastas para o homem enquanto ser social as implicações que atravessam o conflito vivido no desenrolar da tragédia.

Confrontam-se nela a fonte do poder e o seu exercício, a necessidade de obediência à lei para a estabilidade de uma sociedade organizada, e os limites da vontade de quem manda, exigindo o equilíbrio entre exercício legítimo de poder e arbítrio.

Pelo meio temos, numa fala do coro que permanece entre os mais famosos poemas do legado grego, o registo de quanto o ser humano é capaz, recordando no final que apenas a morte nos faz parar.

Très Riches Heures 03Como refere Maria Helena da Rocha Pereira (MHRP) em nota à sua tradução que abaixo transcrevo, na ode o coro celebra as conquistas do homem: a navegação, a agricultura, a caça, a pesca, a domesticação dos animais, a fala, o pensamento, a política, a construção de casas, a medicina.

De então para cá, se o essencial das conquistas que propiciam a continuidade da espécie se mantém, é sobretudo na luta contra a doença que nos nossos dias as aptidões humanas se mostram mais efectivas, e seriam permanente motivo de espanto e admiração se por pouco parássemos a olhar para trás, sem necessidade de recuar muito no tempo.

Très Riches Heures 09O texto de Antígona (442 a.C.) de Sófocles tem feito correr rios de tinta, ocupado pensadores, e estimulado a criação artística. Leitores curiosos encontram em Antigonas de George Steiner um panorama desta vastidão. Acresce que a peça é de leitura compulsiva e de avassalador efeito, pelo menos na tradução de MHRP.

Termino citando Ruy Belo num poema que há pouco tempo trouxe ao blog:

O desafio de antígona e de prometeu

é hoje ainda o nosso desafio

embora como um rio o tempo haja corrido

Do sono da desperta Grécia  vv. 27-29

Très Riches Heures 10Se já referi a tradução de MHRP, que mais à frente virá, fazendo justiça ao poema com uma fiel tradução a partir do grego, começo  no entanto, com uma outra versão, pela mão da inspiração poética de David Mourão-Ferreira:

 

Elogio do Homem

 

Inúmeras são do mundo as maravilhas,

mas nenhuma que ao homem se compare:

é vê-lo sobre as ondas, entre as ilhas,

as águas percorrer do branco mar;

ou é vê-lo, diante da mãe-Terra,

sem pausa revolvê-la com seus potros,

fazendo que dos grãos que a terra encerra

em frutos se desdobrem todos, todos!

 

Ele, só, captura com seus laços,

ou com redes que faz entrelaçadas,

os pássaros ligeiros dos espaços,

os peixes que se ocultam entre as vagas…

E consegue os cavalos ir domando,

adrede utilizando suas manhas;

ao bicho mais feroz torná-lo manso,

como acontece ao touro das montanhas.

 

Sob tectos, se abriga da friagem;

sob tectos, das chuvas inclementes…

E vede: o pensamento, a linguagem

sua conquista são exclusivamente.

É o Ser dos recursos infindáveis:

até contra o futuro se faz forte;

e cura-se de males incuráveis…

Aquilo que o detém? Somente a Morte.

 

Antígona vv. 332-62

 

Tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da poesia europeia – I

Très Riches Heures 07E agora a tradução da Prof. Rocha Pereira:

 

Coro

 

Muitos prodígios há: porém nenhum

maior do que o homem.

Esse, co’o sopro invernoso do Noto (1),

passando entre as vagas

fundas como abismos,

o cinzento mar ultrapassou. E a terra

imortal, dos deuses a mais sublime,

trabalha-a sem fim,

volvendo o arado, ano após ano,

com a raça dos cavalos laborando.

 

E das aves as tribos descuidadas,

a raça das feras,

em côncavas redes

a fauna marinha, apanha-as e prende-as

o engenho do homem.

Dos animais do monte, que no mato

habitam, com arte se apodera;

domina o cavalo

de longas crinas, o jugo lhe põe,

vence o touro indomável das alturas.

 

A fala e o alado pensamento,

as normas que regulam as cidades

sozinho aprendeu;

da geada do céu, da chuva inclemente

e sem refúgio, os dardos evita,

de tudo capaz.

Na vida não avança sem recursos.

Ao Hades somente

não pode fugir.

De doenças invencíveis os meios

de escapar já com outros meditou.

 

Da sua arte o engenho subtil

p’ra além do que se espera, ora o leva

ao bem, ora ao mal;

se da terra preza as leis e dos deuses

na justiça faz fé, grande é a cidade;

mas logo a perde

quem por audácia incorre no erro.

 

(1) vento sul

 

Fragmento de Antígona, vv. 332-371

 

Sófocles, Antígona, 3ª edição, INIC, Coimbra, 1992.

Très Riches Heures 02Acompanham o artigo algumas das iluminuras dos irmãos Limbourg para o livro Les Très Riches Heures du Duc de Berry (1416) dando conta de tarefas do calendário agrícola: sementeiras, colheitas, vindima.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Visitas ao Blog

  • 2.059.309 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 873 outros subscritores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • A valsa — poema de Casimiro de Abreu
  • Fernando Pessoa - Carta da Corcunda para o Serralheiro lida por Maria do Céu Guerra
  • Vozes dos Animais - poema de Pedro Diniz

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Site no WordPress.com.

  • Seguir A seguir
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 873 outros seguidores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Personalizar
    • Seguir A seguir
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    %d bloggers gostam disto: