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A condição de homem, em filho sempre, em pai, se acontece, vive-se na fragilidade da nossa circunstância. No labirinto do mundo apenas alguns caminhos percorremos, e em cada encruzilhada somos levados a decidir, bem ou mal, por onde continuar. Dessas escolhas vivemos as consequências. Se em algum momento podemos sentir: Pai, Pai, porque me abandonaste!? há um desabar em torno que retira sentido ao mundo.
A tragédia que as armadilhas do destino podem proporcionar viveu-as Édipo enquanto filho e pai, levadas a uma dimensão de absoluto. Personagem exemplar e mítico, na tragédia Rei Édipo escrita por Sófocles, confronta-se com os acasos que a vida o fez viver.
É a sua condição de filho que matou o pai, posteriormente casou com a mãe com quem gerou também filhos que seriam simultaneamente seus irmãos, o que se relata nos fragmentos que a seguir transcrevo.
Apesar de nos actos ignorar a sua condição de filho, descobrindo-se autor de tão hediondos crimes, furou os olhos cegando-se, a assim renunciou à vida quando o suicídio era um interdito.
A história, abusivamente assimilada a partir de Freud ao chamado complexo de Édipo, dá conta, entre a vastidão das suas implicações morais, da dignidade com que um homem aceita o inevitável sofrimento pela honra, em sequência de actos ignominiosos cometidos no desconhecimento da sua natureza e dimensão.
Estásimo IV
Coro
Ó gerações dos mortais,
como a vossa vida ao nada
se iguala!
Que homem, sim, que homem
da ventura mais possui
do que a aparência de a ter,
e, uma vez tida, de cair no ocaso?
Sim, com o teu exemplo — o teu!…
ó desditoso Édipo, os mortais
em nada vejo afortunados.
Tu, que ao mais alto
apontaste e dominaste
em tudo próspera a riqueza
— ó Zeus! — que derrubaste,
fatídica, a virgem
de recurvas presas e contra a morte
tua muralha nos ergueste!
Desde então meu rei
tu és chamado e as maiores
honras te são dadas,
da poderosa Te as
senhor!
Agora, quem poderá contar maior desdita?
Quem, no sofrimento, quem na ruína cruel
se lhe aproxima na derrocada da vida?
Aí, gloriosa figura de Édipo
a ti, imenso, o mesmo
porto foi bastante
para o filho e o pai
nas núpcias receber.
Como pôde, como pôde o seio fecundado
por teu pai consentir-te,
desditoso, no silêncio até agora?
Descobriu-te, mau grado teu, o tempo que tudo vê;
condena esta união monstruosa, em que há muito
genitor é gerado são um só.
Ai, filho de Laio,
nunca, nunca eu
te conhecesse!
Choro como se um grito
de horrores dos meus lábios
escapasse. E para falar
com justiça, por ti tomei alento,
e por ti, agora, a treva me cobre os olhos!
v.v. 1186-1222
…
Édipo
Que estas acções não foram o procedimento ideal, não mo ensines nem tão-pouco me dês conselhos. Pois, se eu tivesse vista, não sei com que olhos poderia encarar o meu pai, ao entrar no Hades, ou minha desgraçada mãe; contra ambos cometi crimes que exigem mais do que a forca.
E também em contemplar os meus filhos, nascidos como nasceram, que prazer poderia eu sentir? Nunca os meus olhos o teriam! Nem em contemplar a cidade, nem as suas muralhas, nem as imagens sagradas dos deuses; delas me afastei eu próprio — eu, que agora sou o maior dos desgraçados, e que fui um dos mais nobres filhos de Tebas — ao exortar todos ao repúdio do homem impuro, desse que os deuses apontam como anátema e filho de Laio.
Depois de tal mancha ter descoberto em mim, podia eu encará-los de olhar levantado? De modo algum. Houvesse ainda para a fonte dos sons uma barreira na senda dos ouvidos, e não me teria contido, sem aferrolhar o meu pobre corpo, para que fosse, além de cego, incapaz de ouvir; é doce para o espírito habitar longe dos seus males.
Oh Citerón, porque me acolheste? Porque me não recebeste para em seguida me dares a morte? Jamais mostraria então aos homens a minha origem. Oh, Pólibo, Corinto, antigo palácio ancestral, que passava por ser o de meu pai, tanta beleza criastes, e tanto mal dissimulado em mim! Pois agora, eu me descubro como réprobo, de réprobos nascido. Oh, caminho tripartido, recanto arborizado do vale, floresta de carvalhos, senda estreita da tripla encruzilhada, que bebeste, por minhas mãos derramado, o sangue de meu pai: acaso vos lembrais ainda de mim, dos crimes que em vossa presença cometi e daqueles que, ao vir, de novo pratiquei? Oh, himeneu, himeneu, que me fizeste nascer, e, depois de eu ter nascido, de novo me fizeste germinar na minha própria semente! Por ti se mostraram os pais, irmãos, filhos, como sangue incestuoso, para quem as esposas eram mulheres e mães ao mesmo tempo — toda a espécie de actos que são a suprema vergonha da humanidade.
Mas não é belo evocar o que não é decoroso. Depressa, pelos deuses, escondei-me algures, ou matai-me, arrojai-me ao mar, lá, onde jamais me possam ver. Aproximai-vos, dignai-vos tocar um homem desgraçado; acreditai, não tenhais receio, pois os meus males ninguém —senão eu — entre os mortais é capaz de os suportar.
v.v. 1369-1415
Tradução de Maria do Céu Zambujo Fialho
Transcrito de Sófocles, Rei Édipo, edições 70, Lisboa, 1997.