Em síntese, apanágio da poesia, Ruy Belo (1933-1978) dá conta no poema Do sono da desperta Grécia, de quanto somos devedores hoje, da herança grega:
… / Em busca da verdade o homem chega / às noções de justiça e liberdade / …
Poderia citar todo o poema, o que era evidentemente uma redundância. Destaco apenas alguns versos que pela penetração da ideia e formulação poética, se tornam exemplares:
… / Pela primeira vez o homem se interroga / sem livro algum sagrado sob a sua inteligência / …
… E nós ainda hoje nos interrogamos / a interrogação define a nossa livre condição / …
Sobre a herança cultural diz o poeta:
… sófocles roubando / aos dias desse tempo intemporais conflitos / chegados até nós na força do teatro
… / e a tragédia a arte o pensamento / desvendam o destino a divindade o universo / …
… / O desafio de antígona e de prometeu / é hoje ainda o nosso desafio / embora como um rio o tempo haja corrido / …
A eles irei, a Antígona e a Prometeu Agrilhoado, por estes dias.
Antes de vos deixar, acrescento a tradução que Maria Helena da Rocha Pereira (MHRP) fez do Epitáfio das Termópilas de Simónides de Ceos (séc VI-V a. C.) incluído no poema, a qual evidencia a diferença entre uma aproximação literal e a aproximação poética ao original noutra língua:
“Diz em lacedemónia ó estrangeiro
que morremos aqui para servir a lei”
escreveu o poeta. E agora a tradução de MHRP (frg. 92 Diehl):
Estrangeiro, vai contar aos Lacedemónios que jazemos
aqui, por obedecermos às suas normas.
in Helade, 8ª edição, ASA Editores, 2003.
Do sono da desperta Grécia
Nenhuma voz em esparta nem no oriente
se dirigira ainda aos homens do futuro
quando da acrópole de atenas péricles hierático
falou: “ainda que o declínio as coisas
todas humanas ameace sabei vós ó vindouros
que nós aqui erguemos a mais célebre e feliz cidade”
Eram palavras novas sob a mesma
abóbada celeste outrora aberta em estrelas
sobre a cabeça do emissário de argos
que aguardava o sinal da rendição de tróia
e sobre o dramaturgo sófocles roubando
aos dias desse tempo intemporais conflitos
chegados até nós na força do teatro
Apoiada na sua longilínea lança
a deusa atenas pensa ainda para nós
Pela primeira vez o homem se interroga
sem livro algum sagrado sob a sua inteligência
e a tragédia a arte o pensamento
desvendam o destino a divindade o universo
Em busca da verdade o homem chega
às noções de justiça e liberdade
Após quatro milénios de uma sujeição servil
o homem olha os deuses face a face
e desafia a força do tirano
E nós ainda hoje nos interrogamos
a interrogação define a nossa livre condição
O desafio de antígona e de prometeu
é hoje ainda o nosso desafio
embora como um rio o tempo haja corrido
“Diz em lacedemónia ó estrangeiro
que morremos aqui para servir a lei”
“E se esta noite é uma noite do destino
bendita seja ela pois é condição da aurora”
Palavras seculares vivas ainda agora
Uma grécia secreta dorme em cada coração
na noite que precede a inevitável manhã
Poema publicado pela primeira vez em Transporte no Tempo, Livraria Moraes Editores, Lisboa, 1973.