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DIZER MULHER …segundo RUY BELO

21 Sábado Mar 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Ruy Belo

Embora trate habitualmente no blog de um mundo de mortos, é a eternidade da sua fala e do que ela nos pode dizer, a nós vivos (ou nem tanto), quando a escutamos na sua intemporalidade, o que leio.

No ano em que nasci, Hollywood ofereceu ao mundo pela mão de Howard Hawks o filme Gentlemen Prefer Blondes, ou como se chamou em português Os Homens Preferem as Louras.

Filme onde passeiam o contraste da sua beleza Jane Russell e Marylin Monroe, que

na voz derramada canta

os segredos do prazer.

Anatomia única

de mamilos divergentes

no movimento das ancas

incendeia coxas e almas

em labaredas faustosas

de sonhada epifania.

Vê-lo hoje acaba com qualquer depressão decorrente da crise. Temos tudo: a graça da história, a beleza das mulheres e o eterno número de musical Diamonds Are A Girl’s Best Friend.

Numa leveza de champanhe a que talvez falte a elegância de Lubitsch, Hawks leva-nos entre o efémero e o eterno na mestria da sua realização.

Embora seja um hitchcockiano entusiasmado, a quem os filmes de John Ford lavam a alma, acabam por ser alguns filmes de Hawks que prefiro acima de todos. E desde logo aquele Rio Bravo, retrato absoluto da amizade entendida no companheirismo solidário, no respeito pelas opções de cada um, e onde o desafio da morte revela o valor de cada ser humano.

Fez Hawks alguns filmes para a minha ilha deserta além destes, onde atrizes, mulheres maiores, brilharam: Katharine Hepburn (A Grande) e Lauren Bacall (A Mulher-Desafio) para quem um dia escrevi este texto:

A voz está lá

num esplendor de assombro

capaz de sussurrando ao ouvido

desencadear cascatas de orgasmos.

E o resto?

continua perfeito.

A boca,

a lamina do olhar,

a pose,

apenas embrulhados nas rugas do tempo.

A idade na evidência dos seus sinais.

Há mulheres que não imaginamos no dia seguinte

são apenas o motor do antes

desencadeiam o desejo e a paixão.

No entanto,

fazem-nos sonhar com o depois.

Como foi?

Como será?

Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir. (Ruy Belo)

A escolha iconográfica de uma mulher mutilada pelo cancro da mama, num artigo que passeia pela beleza da mulher, desafia-me sobre a perenidade e o efémero, e sobretudo sobre o valor das escolhas que fazemos.

Deixo-o agora, leitor, com a superior leitura da beleza feita por Ruy Belo.

O poema foi inicialmente publicado no livro TRANSPORTE NO TEMPO, em 1973.

Transcrevo a versão incluída na reedição num volume de TODOS OS POEMAS publicada por Assírio & Alvim em 2000.

NA MORTE DE MARILYN

Morreu a mais bela mulher do mundo

tão bela que não só era assim bela

como mais que chamar-lhe marilyn

devíamos mas era reservar apenas para ela

o seco sóbrio simples nome de mulher

em vez de marilyn dizer mulher

Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher

mas ingeriu demasiados barbitúricos

uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha

ou suspeitou que tinha errado a vida

ela de quem a vida a bem dizer não era digna

e que exibia vida mesmo quando a suprimia

Não havia no mundo uma mulher mais bela mas

essa mulher um dia dispõs do direito

ao uso e ao abuso de ser bela

e decidiu de vez não mais o ser

nem doravante ser sequer mulher

O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor

um rosto sem regresso mais que rosto mar

e toda a confusão e convulsão que nele possa caber

e toda a violência e voz que num restrito rosto

possa o máximo mar intensamente condensar

Tomou todos os tubos que tinha e não tinha

e disse à governanta não me acorde amanhã

estou cansada e necessito de dormir

estou cansada e é preciso eu descansar

Nunca ninguém foi tão amado como ela

nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão

Era mulher era a mulher mais bela

mas não há coisa alguma que fazer se certo dia

a mão da solidão é pedra em nosso peito

Perto de marilyn havia aqueles comprimidos

seriam solução sentiu na mão a mãe

estava tão sozinha que pensou que a não amavam

que todos afinal a utilizavam

que viam por trás dela a mais comum imagem dela

a cara o corpo de mulher que urge adjectivar

mesmo que seja bela o adjectivo a empregar

que em vez de ver um todo se decida dissecar

analisar partir multiplicar em partes

Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha

julgou que a não amavam todo o tempo como que parou

quis ser até ao fim coisa que mexe coisa viva

um segundo bastou foi só estender a mão

e então o tempo sim foi coisa que passou

 

Por alturas da crise de 2010 publiquei no blog este artigo que agora trouxe ao encontro de novos leitores.

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Ruy Belo — o poema Ácidos e Óxidos

05 Sexta-feira Abr 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Jim Dine, Ruy Belo

Sim, sou eu, devo sem dúvida ser eu
…
Simples questão de tempo és e a certas circunstâncias de lugar
circunscreves o corpo. …

 

Depois do intervalo destes dias, regressemos à poesia densa de implicações sociais e psicológicas com o poema Ácidos e Óxidos de Ruy Belo (1933-1978):
…
Escolhe inscreve-te pertence, não concordas
que há cores mais bonitas do que outras?
Sou homem de palavra e hei-de cumprir tudo
hão-de encontrar coerência em cada gesto meu
Ser isto e não aquilo, amar perdidamente
alguém alguma coisa as cláusulas do pacto
Isto ou aquilo, ou ele ou eu, sem mais hesitações
…

 

Eis o retrato de alguém psicologicamente adaptado ao papel social que lhe foi atribuído, embora ocasionalmente espreite alguma perplexidade, que não interrogação:
…
E perguntar será para ti responder
…
Pode ser que me engane, pode ser que seja eu
e no entanto estou de pé, rebolo-me no sol,
sou filho desta terra e vou fazendo anos
pois não se pode estar sem fazer nada
…

 

Na desarticulação do discurso linear recolhem-se as complexidades do eu, e nesta espécie de conversa ao espelho do próprio consigo mesmo, reflecte-se a quase impotência da autonomia individual na teia social de compromissos, deveres, e expectativas dos outros, a ponto de acreditar que são afinal escolhas do próprio as que outros induzem:
…
São horas, vamos lá, sorri, já as primeiras chuvas
levam ou lavam corpos caras
Sabemos que podemos bem contar contigo em tudo
Amanhã, neste lugar, sob este sol
e de aqui a um ano? Combinado
…

 

O remate surge na inevitável conclusão da inutilidade de tanto compromisso, consequência da pressão exterior sobre o indivíduo:
…
Que fica dos teus passos dados e perdidos?
Horário de trabalho, uma família, o telefone, a carta,
o riso que resulta de seres vítima de olhares
Que resto dás? Ou porventura deixas algum rasto?
E assim e assado sofro tanto tempo gasto

 

 

Eis o poema na totalidade:

 

 

Ácidos e Óxidos

É uma coisa estranha este verão
E no entanto ia jurar que estive aqui
Não me dói nada, não. A tia como está?
Claro que vale a pena, por que não?
Sim, sou eu, devo sem dúvida ser eu
Podem contar comigo, eu tenho uma doutrina
Não é bonito o mar, as ondas, tudo isto?
Até já soube formas de o dizer de outra maneira

Há coisas importantes, umas mais que outras
Basta limpar os pés alheios à entrada
e só mandarmos nós neste templo de nada
E o orgulho é a nossa verdadeira casa
Nesta altura do ano quando o vento sopra
sobre os nossos dias, sabes quem gostava de ser?
Não, cargos ou honras não. Um simples gato ao sol,
talvez uma maneira ou um sentido para as coisas

Ó dias encobertos de verão do meu país perdido
mais certos do que o sol consumido nos charcos no inverno,
estas ou outras formas de morrermos dia a dia
como quem cumpre escrupulosamente o seu horário de trabalho
Não eras tu, nem isto, nem aqui. Mas está bem,
estou pelos ajustes porque sei que não há mais
Pode ser que me engane, pode ser que seja eu
e no entanto estou de pé, rebolo-me no sol,
sou filho desta terra e vou fazendo anos
pois não se pode estar sem fazer nada

Curriculum atestado testemunho opinião…
que importa, se o verão é mesmo uma certa estação?
Escolhe inscreve-te pertence, não concordas
que há cores mais bonitas do que outras?
Sou homem de palavra e hei-de cumprir tudo
hão-de encontrar coerência em cada gesto meu
Ser isto e não aquilo, amar perdidamente
alguém alguma coisa as cláusulas do pacto
Isto ou aquilo, ou ele ou eu, sem mais hesitações
Estar aqui no verão não é tomar uma atitude?
A mínima palavra não será como prestar
em certo tipo de papel qualquer declaração?
Há fórmulas, bem sei, e é preciso respeitá-las
como o gato que cumpre o seu devido sol
São horas, vamos lá, sorri, já as primeiras chuvas
levam ou lavam corpos caras
Sabemos que podemos bem contar contigo em tudo
Amanhã, neste lugar, sob este sol
e de aqui a um ano? Combinado
Não achas que a esplanada é uma pequena pátria
a que somos fiéis? Sentamo-nos aqui como quem nasce
Será verdade que não tens ninguém?
Onde é o teu refúgio, ó sítio de silêncio
e sofrimento indivisível? É necessário
Vais assim. Falam de ti e ficas nas palavras
fixo, imóvel, dito para sempre, reduzido
a um número. Curriculum cadastro vizinhança
Acreditas no verão? Terás licença? Diz-me:
seria isto, nada mais que isto?
Tens um nome, bem sei. Se é ele que te reduz,
aí é o inferno e não achas saída
Precário, provisório, é o teu nome
Lobos de sono atrás de ti nesses dez anos
que nunca conseguiste e muito menos hoje
Espingardas e uivos e regressos, um regaço
redondo – o único verdadeiro espaço, o
sabor de não estar só, natal antigo,
o sol de inverno sobre as águas, tudo novo,
a inspecção minuciosa de pauis, de cômoros, marachas
Viste noites e dias, estações, partidas
E tão terrível tudo, porque tudo
trazia no princípio o fim de tudo
A morte é a promessa: estar todo num lugar,
permanecer na transparência rápida do ser
E perguntar será para ti responder

Simples questão de tempo és e a certas circunstâncias de lugar
circunscreves o corpo. Sentas-te, levantas-te
e o sol bate por vezes nessa fronte aonde o pensamento
— que ao dominar-te deixa que domines — mora
Estás e nunca estás e o vento vem e vergas
e há também a chuva e por vezes molhas-te,
aceitas servidões quotidianas, vais de aqui para ali,
animas-te, esmoreces, há os outros, morres
Mas quando foi? Aonde te doía? Dividias-te
entre o fim do verão e a renda da casa
Que fica dos teus passos dados e perdidos?
Horário de trabalho, uma família, o telefone, a carta,
o riso que resulta de seres vítima de olhares
Que resto dás? Ou porventura deixas algum rasto?
E assim e assado sofro tanto tempo gasto

 

in Todos os Poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

 

 

Abre o artigo a imagem de um objecto escultórico de Jim Dine (1935), Fato Verde.

 

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O desejo de ser outro num poema de Ruy Belo

28 Segunda-feira Jan 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Helena Almeida, Ruy Belo

…
Sinto saudades de alguém
lido ou sonhado por mim
em sítios onde não estive
…

Ter a vida que não temos; viver a vida que não vivemos: humaníssimo desejo que aos contentes de si não assalta. Aos outros, a fantasia da imaginação ou o estímulo da literatura são o veículo para, por momentos, nos transportarmos para outra vida, outro indivíduo:
…
Há uma parte de mim que me abandona
e me edifica nesse vulto que
cheio de ser visto por mim
é o maior acontecimento
da tarde de domingo
…

É certamente desejo fugaz que acontece acontecer-nos, criaturas imperfeitas e insatisfeitas:
…
Ei-lo que avança e desaparece
E estou de novo comigo
sobre o asfalto onde quero estar.

Desse desejo nos fala o poema de Ruy Belo (1933-1978), Ah poder ser tu, sendo eu!, que antes, fragmentado, citei:

Ah poder ser tu, sendo eu!

Ei-lo que avança
de costas resguardadas pela minha esperança
Não sei quem é. Leva consigo
além do sob o braço o jornal
a sedução de ser seja quem for
aquele que não sou
E vai não sei onde
visitar não sei quem
Sinto saudades de alguém
lido ou sonhado por mim
em sítios onde não estive
Há uma parte de mim que me abandona
e me edifica nesse vulto que
cheio de ser visto por mim
é o maior acontecimento
da tarde de domingo
Ei-lo que avança e desaparece
E estou de novo comigo
sobre o asfalto onde quero estar

Poema publicado em Aquele Grande Rio Eufrates, 1961.
Transcrito de Ruy Belo, Todos os Poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

Abre o artigo a imagem de uma pintura (acrílico sobre fotografia) de Helena Almeida (1934-2018).
São poema e pintura duas formas complementares de mostrar o irreprimível desejo de ser outro que por vezes nos atravessa. Na pintura, procurar esconder-se no profundo azul, metáfora de paraíso, no poema, partir com quem passa rumo a destino desconhecido: afinal em ambos a insaciável busca de si.

 

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Ruy Belo — Orla marítima

24 Sábado Nov 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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António Nobre, Claude Monet, Ruy Belo

…
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
…

 

O eco de um verso de António Nobre [Ó suaves e frescas raparigas,](1) no início do poema Orla marítima de Ruy Belo (1933-1978) leva-me a abrir o artigo com a imagem de uma pintura de Claude Monet (1840-1926), evocativa de um tempo de harmonia e encanto que à uma atravessam tanto este poema como o soneto nº4 do livro Só de António Nobre (1867-1900).

 

Orla marítima conduz-nos por uma densa reflexão sobre a vida, o que deixámos para trás,  meditado … / ao sol dos solitários dias de dezembro / .
Repleto de belos versos, … / Ali fica o retrato destes dias / gestos e pensamentos tudo fixo / …, dando-nos conta de como … / Sabemos agora em que medida merecemos a vida.

Melhor que qualquer comentário, são as palavras do poeta para o dizer.

 

Orla marítima

O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios da vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão* solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

 

* Tenho dúvidas que a palavra impressa na edição que possuo seja a correcta no contexto do poema. Inclino-me para que em vez de pagão a palavra correcta seja pregão e os versos seriam:
[Manhã dos outros não nossa manhã / pregão* solar de uma alegria calma].
Poema transcrito de Ruy Belo, Todos os Poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

 

 

(1) Para quem o não conheça, deixo o soneto nº4 do livro Só de António Nobre:

Soneto nº4
Ó virgens que passais, ao sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
Que me transporte ao meu perdido Lar.

Cantai-me, nessa voz omnipotente,
O Sol que tomba, aureolando o Mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a Graça, a formosura, o luar!

Cantai! cantai as límpidas cantigas!
Das ruínas do meu Lar desaterrai
Todas aquelas ilusões antigas

Que eu vi morrer num sonho como um ai…
Ó suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me nessa voz… Cantai!
Porto 1896

in António Nobre, Poesia Completa, Círculo de Leitores, 1987.

 

 

A imagem da pintura de Claude Monet que abre o artigo, Jardim em Sainte-Adresse, feita em 1867, num tempo em que a pincelada brusca que caracterizou a sua última pintura começava a surgir, pertence à colecção do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque.

 

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Ruy Belo — a interrogação define a nossa livre condição

07 Quinta-feira Ago 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Grécia, Ruy Belo

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Em síntese, apanágio da poesia, Ruy Belo (1933-1978) dá conta no poema Do sono da desperta Grécia, de quanto somos devedores hoje, da herança grega:

 

… / Em busca da verdade o homem chega / às noções de justiça e liberdade / …

 

Poderia citar todo o poema, o que era evidentemente uma redundância. Destaco apenas alguns versos que pela penetração da ideia e formulação poética, se tornam exemplares:

 

… / Pela primeira vez o homem se interroga / sem livro algum sagrado sob a sua inteligência / …

 

… E nós ainda hoje nos interrogamos / a interrogação define a nossa livre condição / …

 

Sobre a herança cultural diz o poeta:

 

… sófocles roubando / aos dias desse tempo intemporais conflitos / chegados até nós na força do teatro

 

… / e a tragédia a arte o pensamento / desvendam o destino a divindade o universo / …

 

… / O desafio de antígona e de prometeu / é hoje ainda o nosso desafio / embora como um rio o tempo haja corrido / …

 

A eles irei, a Antígona e a Prometeu Agrilhoado, por estes dias.

 

Antes de vos deixar, acrescento a tradução que Maria Helena da Rocha Pereira (MHRP) fez do Epitáfio das Termópilas de Simónides de Ceos (séc VI-V a. C.) incluído no poema, a qual evidencia a diferença entre uma aproximação literal e a aproximação poética ao original noutra língua:

 

“Diz em lacedemónia ó estrangeiro

que morremos aqui para servir a lei”

 

escreveu o poeta. E agora a tradução de MHRP (frg. 92 Diehl):

 

Estrangeiro, vai contar aos Lacedemónios que jazemos

      aqui, por obedecermos às suas normas.

 

in Helade, 8ª edição, ASA Editores, 2003.

 

Do sono da desperta Grécia

 

Nenhuma voz em esparta nem no oriente

se dirigira ainda aos homens do futuro

quando da acrópole de atenas péricles hierático

falou: “ainda que o declínio as coisas

todas humanas ameace sabei vós ó vindouros

que nós aqui erguemos a mais célebre e feliz cidade”

Eram palavras novas sob a mesma

abóbada celeste outrora aberta em estrelas

sobre a cabeça do emissário de argos

que aguardava o sinal da rendição de tróia

e sobre o dramaturgo sófocles roubando

aos dias desse tempo intemporais conflitos

chegados até nós na força do teatro

Apoiada na sua longilínea lança

a deusa atenas pensa ainda para nós

Pela primeira vez o homem se interroga

sem livro algum sagrado sob a sua inteligência

e a tragédia a arte o pensamento

desvendam o destino a divindade o universo

Em busca da verdade o homem chega

às noções de justiça e liberdade

Após quatro milénios de uma sujeição servil

o homem olha os deuses face a face

e desafia a força do tirano

E nós ainda hoje nos interrogamos

a interrogação define a nossa livre condição

O desafio de antígona e de prometeu

é hoje ainda o nosso desafio

embora como um rio o tempo haja corrido

“Diz em lacedemónia ó estrangeiro

que morremos aqui para servir a lei”

“E se esta noite é uma noite do destino

bendita seja ela pois é condição da aurora”

Palavras seculares vivas ainda agora

Uma grécia secreta dorme em cada coração

na noite que precede a inevitável manhã

Poema publicado pela primeira vez em Transporte no Tempo, Livraria Moraes Editores, Lisboa, 1973.

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