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Embora trate habitualmente no blog de um mundo de mortos, é a eternidade da sua fala e do que ela nos pode dizer, a nós vivos (ou nem tanto), quando a escutamos na sua intemporalidade, o que leio.
No ano em que nasci, Hollywood ofereceu ao mundo pela mão de Howard Hawks o filme Gentlemen Prefer Blondes, ou como se chamou em português Os Homens Preferem as Louras.
Filme onde passeiam o contraste da sua beleza Jane Russell e Marylin Monroe, que
na voz derramada canta
os segredos do prazer.
Anatomia única
de mamilos divergentes
no movimento das ancas
incendeia coxas e almas
em labaredas faustosas
de sonhada epifania.
Vê-lo hoje acaba com qualquer depressão decorrente da crise. Temos tudo: a graça da história, a beleza das mulheres e o eterno número de musical Diamonds Are A Girl’s Best Friend.
Numa leveza de champanhe a que talvez falte a elegância de Lubitsch, Hawks leva-nos entre o efémero e o eterno na mestria da sua realização.
Embora seja um hitchcockiano entusiasmado, a quem os filmes de John Ford lavam a alma, acabam por ser alguns filmes de Hawks que prefiro acima de todos. E desde logo aquele Rio Bravo, retrato absoluto da amizade entendida no companheirismo solidário, no respeito pelas opções de cada um, e onde o desafio da morte revela o valor de cada ser humano.
Fez Hawks alguns filmes para a minha ilha deserta além destes, onde atrizes, mulheres maiores, brilharam: Katharine Hepburn (A Grande) e Lauren Bacall (A Mulher-Desafio) para quem um dia escrevi este texto:
A voz está lá
num esplendor de assombro
capaz de sussurrando ao ouvido
desencadear cascatas de orgasmos.
E o resto?
continua perfeito.
A boca,
a lamina do olhar,
a pose,
apenas embrulhados nas rugas do tempo.
A idade na evidência dos seus sinais.
Há mulheres que não imaginamos no dia seguinte
são apenas o motor do antes
desencadeiam o desejo e a paixão.
No entanto,
fazem-nos sonhar com o depois.
Como foi?
Como será?
Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir. (Ruy Belo)
A escolha iconográfica de uma mulher mutilada pelo cancro da mama, num artigo que passeia pela beleza da mulher, desafia-me sobre a perenidade e o efémero, e sobretudo sobre o valor das escolhas que fazemos.
Deixo-o agora, leitor, com a superior leitura da beleza feita por Ruy Belo.
O poema foi inicialmente publicado no livro TRANSPORTE NO TEMPO, em 1973.
Transcrevo a versão incluída na reedição num volume de TODOS OS POEMAS publicada por Assírio & Alvim em 2000.
NA MORTE DE MARILYN
Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispõs do direito
ao uso e ao abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse à governanta não me acorde amanhã
estou cansada e necessito de dormir
estou cansada e é preciso eu descansar
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
a mão da solidão é pedra em nosso peito
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sozinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjectivar
mesmo que seja bela o adjectivo a empregar
que em vez de ver um todo se decida dissecar
analisar partir multiplicar em partes
Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou
quis ser até ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só estender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou
Por alturas da crise de 2010 publiquei no blog este artigo que agora trouxe ao encontro de novos leitores.