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o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos

 

O eco de um verso de António Nobre [Ó suaves e frescas raparigas,](1) no início do poema Orla marítima de Ruy Belo (1933-1978) leva-me a abrir o artigo com a imagem de uma pintura de Claude Monet (1840-1926), evocativa de um tempo de harmonia e encanto que à uma atravessam tanto este poema como o soneto nº4 do livro de António Nobre (1867-1900).

 

Orla marítima conduz-nos por uma densa reflexão sobre a vida, o que deixámos para trás,  meditado … / ao sol dos solitários dias de dezembro / .
Repleto de belos versos, … / Ali fica o retrato destes dias / gestos e pensamentos tudo fixo / …, dando-nos conta de como … / Sabemos agora em que medida merecemos a vida.

Melhor que qualquer comentário, são as palavras do poeta para o dizer.

 

Orla marítima

O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios da vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão* solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

 

* Tenho dúvidas que a palavra impressa na edição que possuo seja a correcta no contexto do poema. Inclino-me para que em vez de pagão a palavra correcta seja pregão e os versos seriam:
[Manhã dos outros não nossa manhã / pregão* solar de uma alegria calma].
Poema transcrito de Ruy Belo, Todos os Poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

 

 

(1) Para quem o não conheça, deixo o soneto nº4 do livro de António Nobre:

Soneto nº4
Ó virgens que passais, ao sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
Que me transporte ao meu perdido Lar.

Cantai-me, nessa voz omnipotente,
O Sol que tomba, aureolando o Mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a Graça, a formosura, o luar!

Cantai! cantai as límpidas cantigas!
Das ruínas do meu Lar desaterrai
Todas aquelas ilusões antigas

Que eu vi morrer num sonho como um ai…
Ó suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me nessa voz… Cantai!
Porto 1896

in António Nobre, Poesia Completa, Círculo de Leitores, 1987.

 

 

A imagem da pintura de Claude Monet que abre o artigo, Jardim em Sainte-Adresse, feita em 1867, num tempo em que a pincelada brusca que caracterizou a sua última pintura começava a surgir, pertence à colecção do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque.

 

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