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Tag Archives: Aristóteles

Camilo e os amigos

16 Quarta-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Aristóteles, Camilo Castelo-Branco, Goya

A amizade é coisa séria, que em tempos de Facebook tanta gente trata com volubilidade, mas é no vai-vem da vida que a sua verdadeira qualidade se vê:

 

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
…
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.
…

 

Isto escreveu Camilo Castelo-Branco no soneto que à frente transcrevo.

 

 

Já antes trouxe ao blog uma curta reflexão de Aristóteles (384 a.C.-322a.C.) sobre a amizade, que em parte aqui retomo:

…
Os que têm a amizade com base na utilidade gostam uns dos outros pelo bem que os outros lhes fazem; os que têm uma amizade com base no prazer, gostam uns dos outros pelo próprio prazer que lhes dá.
…

 

Estas formas de amizade são, portanto, meramente acidentais. E são, sobretudo, as formas que frequentemente a amizade reflecte. Há, no entanto, relações de amizade bem mais profundas, sobre as quais Aristóteles reflecte na sua Ética a Nicómaco, as quais frequentemente surgem nos romance com o tempo qualificados de juvenis, e por vezes vemos plasmadas no cinema, ainda que na nossa vida pessoal delas não tenhamos a experiência.

No outro dia, de passagem, referi como em minha opinião Howard Hawks filmou a amizade como ninguém. No anterior artigo com Aristóteles, foram outros os filmes onde de amizade se tratava, o pretexto da reflexão. Hoje é um soneto irónico e amargo de Camilo Castelo-Branco (1825-1890) que reflecte sobre este sentimento precioso.

 

No soneto, a abrir, o poeta embala-se na multidão de amigos que tem, e em como tal facto o faz feliz. Segue-se a evidência de algum cansaço decorrente das exigências de alimentar tal fluxo de amizades (e como isto espelha tanto do comportamento de hoje em relação aos amigos do Facebook, e a quase obrigação de comentar frequentes inanidades). Infelizmente, ao autor aconteceu a tragédia que põe à prova as amizades verdadeiras. E de tantos amigos glorificados, apenas restou um, como o soneto refere em amarga e irónica conclusão.

 

 

Os Meus Amigos

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
 
Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.
 
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

— Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver…
Que cento e nove impávidos marotos!

 

 

Para o Luis que além do mais, me ajudou a localizar a publicação original do soneto.

 

 

Notícia bibliográfica

 

O soneto, inédito à data da morte de Camilo (1 de Junho de 1890), teve publicação póstuma nesse ano, na Revista Illustrada, (vol I, ano 1890, nº 11 de 15 Setembro, pág. 123).
A revista, quinzenal, iniciou publicação em Abril de 1890.
Informação do Camilianista Henrique Marques, Camilliana, ed. 1894.

 

 

Abre o artigo a imagem de um pormenor da pintura de Goya (1746-1828), A merenda à beira do Manzanares.

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Da amizade segundo Aristóteles

08 Segunda-feira Set 2014

Posted by viciodapoesia in Prosa

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Aristóteles

jules-et-jim-poster do filme 600pxVoltei a ver um destes dias o filme de François Truffaut (1932-84), Jules e Jim (1962), que gira à volta de uma amizade entre dois homens onde uma mulher aparece.  

O filme de algum modo retoma com mais profundidade e outras implicações o assunto da deliciosa comédia de Ernst Lubitch (1892-1947), Uma mulher para dois (Design for Living, 1933): um acordo de “ménàge à trois” que não corre pelo melhor.

design for living poster 600pxNo filme de Truffaut, situado na Paris de ante 1ª guerra mundial, dois jovens amigos vagamente escritores, um francês, um alemão, vivem na boémia do tempo. Nas relações que se sucedem, surge uma mulher que com eles acaba a partilhar a amizade. Criatura peculiar, por quem os dois poderiam apaixonar-se, a certa altura o alemão pretende-a só para si. Casam. A guerra rebenta e coloca cada um dos homens em campo inimigo.

O filme passa ao lado deste conflito amizade/política, que fora admiravelmente retratado em A vida do coronel Blimp (The Life and Death of Colonel Blimp, 1943) da dupla britânica Michael Powell (1905-90) e Emeric Pressburger1902-88).

the-life-and-death-of-colonel-blimp-movie-poster-1943Ambos saídos ilesos da guerra, os amigos do filme de Truffaut retomam contacto. O alemão permanece casado numa relação quase em ruínas onde laivos de paixão permanecem. O que foi um casamento com amigo ao lado, transforma-se, com a chegada do francês, numa complexa relação de pertença onde a amizade entre os dois homens é posta à prova num conflito que a paixão atravessa. Mulher voluntariosa, a protagonista, vivia um entendimento da entrega ao amor ditada por uma exigente e continuada atenção à sua pessoa e aos seus caprichos, onde apenas a sua vontade reinasse como condição de harmonia. Termina o filme, e se nele encontramos uma elegia da amizade, fica-nos também o sabor do mistério da mulher nesta relação entre sexos.

 Amigos e amizade são relações afectivas que todos tomamos por conhecidas. A presença quase universal do Facebook no nosso quotidiano, e o seu apelo à formação de círculos de amigos, dá conta, na sua variedade de relações, de quanto o conceito de amizade hoje surge algo difuso.

Nem sempre todos entendemos por amizade o mesmo conteúdo de uma relação.

Com alguns fragmentos de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) onde o filósofo discorre sobre o conceito de amizade e as suas diversas formas, talvez consigamos articular com mais precisão e clareza a variedade do que nas relações humanas tomamos por amizade.

As transcrições vão semeadas de reticências, as quais respeitam ao desenvolvimento justificativo das afirmações transcritas, que pela sua extensão omiti.

Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro VIII, III

O desejo de amizade nasce depressa mas a amizade não.

…

Os motivos pelos quais a amizade nasce distinguem-se segundo três formas essenciais; de acordo com esses três motivos, assim também são as respectivas formas de amizade.

…

Os que definem a sua amizade com base na utilidade não são amigos por aquilo que eles próprios são, mas pelo bem que daí pode resultar para ambos. De modo semelhante, acontece com os que definem a sua amizade com base no prazer, pois não se gosta de pessoas divertidas pelas qualidades de carácter que têm mas por serem agradáveis.

Os que têm a amizade com base na utilidade gostam uns dos outros pelo bem que os outros lhes fazem; os que têm uma amizade com base no prazer, gostam uns dos outros pelo próprio prazer que lhes dá.

…

Estas formas de amizade são, portanto, meramente acidentais. Porque não se gosta do outro apenas por aquilo que ele é, mas por ser vantajoso ou ser agradável. Estes laços de amizade são os que mais facilmente se rompem, sobretudo se os que por eles estão envolvidos com outros, não ficarem os mesmos e se tiverem tornado diferentes ao longo do tempo. Isto é, deixam de ser amigos, quando o prazer acaba ou deixa de haver vantagem.

…

Mas a amizade perfeita existe entre os homens de bem e os que são semelhantes a respeito da excelência. … E por serem homens de bem são amigos dos outros pelo que os outros são. … Na verdade querem para os seus amigos o bem que querem para si próprios. E são desta maneira por gostarem dos amigos como eles são na sua essência, e não por motivos acidentais. A amizade entre eles permanece durante o tempo em que forem homens de bem;

…

Tais amizades são, de facto, raras, porque são poucos os homens desta estirpe. Além do mais, é preciso tempo e cumplicidade, pois, tal como diz o provérbio, não é possível que duas pessoas se conheçam uma à outra sem antes terem comido juntas a mesma quantidade de sal. Nem se pode reconhecer alguém como amigo antes de cada um se ter mostrado ao outro digno de amizade e merecedor de confiança. Pessoas que depressa produzem provas (exteriores) de amizade entre si querem ser amigos, mas não podem sê-lo logo. É preciso primeiro que se tornem dignos da amizade e se possa reconhecer neles essa mesma dignidade. O desejo de amizade nasce depressa, mas a amizade não.

Tradução do Grego e notas de António C. Caeiro, Quetzal Editores, Lisboa, 2004.

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