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A amizade é coisa séria, que em tempos de Facebook tanta gente trata com volubilidade, mas é no vai-vem da vida que a sua verdadeira qualidade se vê:

 

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.

Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

 

Isto escreveu Camilo Castelo-Branco no soneto que à frente transcrevo.

 

 

Já antes trouxe ao blog uma curta reflexão de Aristóteles (384 a.C.-322a.C.) sobre a amizade, que em parte aqui retomo:


Os que têm a amizade com base na utilidade gostam uns dos outros pelo bem que os outros lhes fazem; os que têm uma amizade com base no prazer, gostam uns dos outros pelo próprio prazer que lhes dá.

 

Estas formas de amizade são, portanto, meramente acidentais. E são, sobretudo, as formas que frequentemente a amizade reflecte. Há, no entanto, relações de amizade bem mais profundas, sobre as quais Aristóteles reflecte na sua Ética a Nicómaco, as quais frequentemente surgem nos romance com o tempo qualificados de juvenis, e por vezes vemos plasmadas no cinema, ainda que na nossa vida pessoal delas não tenhamos a experiência.

No outro dia, de passagem, referi como em minha opinião Howard Hawks filmou a amizade como ninguém. No anterior artigo com Aristóteles, foram outros os filmes onde de amizade se tratava, o pretexto da reflexão. Hoje é um soneto irónico e amargo de Camilo Castelo-Branco (1825-1890) que reflecte sobre este sentimento precioso.

 

No soneto, a abrir, o poeta embala-se na multidão de amigos que tem, e em como tal facto o faz feliz. Segue-se a evidência de algum cansaço decorrente das exigências de alimentar tal fluxo de amizades (e como isto espelha tanto do comportamento de hoje em relação aos amigos do Facebook, e a quase obrigação de comentar frequentes inanidades). Infelizmente, ao autor aconteceu a tragédia que põe à prova as amizades verdadeiras. E de tantos amigos glorificados, apenas restou um, como o soneto refere em amarga e irónica conclusão.

 

 

Os Meus Amigos

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
 
Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.
 
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

— Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver…
Que cento e nove impávidos marotos!

 

 

Para o Luis que além do mais, me ajudou a localizar a publicação original do soneto.

 

 

Notícia bibliográfica

 

O soneto, inédito à data da morte de Camilo (1 de Junho de 1890), teve publicação póstuma nesse ano, na Revista Illustrada, (vol I, ano 1890, nº 11 de 15 Setembro, pág. 123).
A revista, quinzenal, iniciou publicação em Abril de 1890.
Informação do Camilianista Henrique Marques, Camilliana, ed. 1894.

 

 

Abre o artigo a imagem de um pormenor da pintura de Goya (1746-1828), A merenda à beira do Manzanares.