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— e é mais fácil discutir, alimentar, estimular uma ideia comum, do que pensar—, o “sentimento europeu” não existe; assim como a humanidade não é exactamente nenhuma cousa, …
É do lado das mulheres que muito do melhor de Portugal surge. Hoje vou a uma dessas guardiãs do país na língua que aqui se fala: Agustina Bessa-Luís (1922). Não escreveu poesia stritu senso, mas quase toda a sua prosa é um admirável poema onde na curva de cada frase paramos embevecidos e meditativos sobre a beleza que a escrita em português pode ter. E em simultâneo lemos a prosa reflexiva de alguém que pensa a grandeza do comezinho de todos os dias e o revela nos gestos da sua banalidade.
Deixo-lhe, leitor, um mínimo cheiro em meia dúzia de frases entre os milhares que escreveu, e temos, vívidas, gentes e paisagens, e a reflexão densa onde uma ancestral sabedoria se revela.
De um relato de viagem nos anos 50, o livro Embaixada a Calígula, transcrevo um curto fragmento do percurso entre o Escorial e Madrid:
Até Madrid, a planície é pobre, mascarada por construções e pomares que não chegam a fazê-la pitoresca. Os ciganos acampam sob as árvores, passam carros de turismo e excursões de escolas com um padre zelador e algumas jovens mestras vestidas alegremente de Verão. As crianças usam vestidos curtos e gritam, desembrulhando as suas tortilhas e pão com chouriço picante. São vivas e tímidas, com um sorriso grave e independente, essas crianças que continuam uma raça que, com alguns povos euro-orientais, mantêm em belo conflito o sentimento da vida e da morte. Até chegar a Madrid pensamos naquilo que nos leva nesta viagem, isso a que de modo gesticulante e plástico chamam “o sentimento europeu”
Como acontece com os pensamentos que não são de ninguém, que se desenvolvem numa época simplesmente porque se fazem propriedade comum — e é mais fácil discutir, alimentar, estimular uma ideia comum, do que pensar —, o “sentimento europeu” não existe; assim como a humanidade não é exactamente nenhuma cousa, …
Outra prosa há: efabulação sobre o país e a gente que somos, nas raízes que uma modernidade emprestada raramente consegue esconder.
Pensar, como Agustina fez, fora das ideias comuns, faz-nos falta, tanto mais falta quanto pressentimos a vertiginosa mudança deste mundo onde ainda vivemos, e escolher por onde ir está a tornar-se vital.
Excelente escolha, comentário muito bom de ler, bem escrito, bem fundamentado, reapresentando uma das mais notáveis escritoras do nosso século vinte…gostei imenso deste fim de tarde, enquanto também a tarde vai caindo sobre ela…li os seus primeiros romances aos dezoito anos…uma escola de pensamento e de escrita.
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Obrigado pelo comentário, e pelo estímulo que ele representa para continuar. Até breve.
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