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O amor enquanto paixão avassaladora, sobrepondo-se a quaisquer considerações sociais, religiosas, ou outras, encontra na recriação da paixão de Heloísa por Abailard imaginada por Alexander Pope (1688-1744) no século XVIII, a desmesura adequada, e é ainda hoje de empolgante leitura:
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Eu te amei, e o prazer fiel seguindo
Fracas lembranças do meu Deus só tive.
Estimação, dever, honra, e prudência
Hei tudo por te amar sacrificado!
Eu te adorava, e em tão suave engano
Da terra o resto para mim perdido,
Meu Deus, meu universo em ti só via.
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A extensão do poema inviabiliza a sua transcrição na totalidade, pelo que escolho alguns fragmentos onde Heloísa dá conta da natureza e dimensão do seu amor por Abailard.
O poema, assumindo-se como carta, é escrito a partir do convento onde Heloísa foi obrigada a recolher depois da descoberta pelos seus familiares, dos amores clandestinos que mantinha, ainda adolescente, com o seu professor, e também clérigo, Abailard.
A tradução, em verso branco, é de José Anastácio da Cunha (1744-1787), feita no final do século XVIII.
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És tu, insano amor, que vens de novo
De um coração sensível tomar posse?
Ah! quanto me enganava!… Eu amo, eu ardo,
Eu ainda adoro… — Oh nome sempre caro!…
Abailard!… Oh querido!… quanto te amo!
Uma, e mil vezes leio a tua carta
Mil vezes minha boca amante beija
Da tua mão as conhecidas letras.
Caro Abailard, que horror!… Neste retiro
Como o teu nome articular me atrevo!…
…
Ah! que amor em teus braços me encantava
E amor longe de ti meu pranto excita!…
…
Ah! da nossa união, tão livre e pura,
A terra, e o mesmo céu têm feito um crime!
Quando o meu coração, e o teu ligados,
De amor e de amizade tu me davas
Em nome da virtude lições meigas;
Teus olhos sobre os meus nadando em gosto,
Com o fogo das paixões então brilhavam;
Minha alma foi com a tua confundida;
Um Deus em ti sem susto contemplava;
Um erro assim busquei, que me iludia.
Ah! e quão fácil te era o alucinar-me!
Tu falavas — minha alma obedecia;
Tu me pintaste amor, de encantos cheio,
E a doce persuasão de teus discursos
No já vencido peito insinuaste:
Ah! que da tua boca para a minha
Ela pelos teus lábios se passava!…
Eu te amei, e o prazer fiel seguindo
Fracas lembranças do meu Deus só tive,
Estimação, dever, honra, e prudência
Hei tudo por te amar sacrificado!
Eu te adorava, e em tão suave engano
Da terra o resto para mim perdido,
Meu Deus, meu universo em ti só via.
Quando a tua alma, enfim, à minha presa,
Cerrar me instava de himeneu os laços,
Eu te disse: — Querido, que pretendes?
Amor crime não é, mas sim virtude:
Para que é pois tiranas leis impôr-lhe
E de prisões políticas cingi-lo?
Amor não é escravo; — independente
No coração dos homens ele nasce,
Qual puro sentimento de alma pura:
Nosso prazer liguemos, sem que seja
Necessário também ligar as sortes.
Ah! — Pensa que himeneu prender só deve
Dos amantes sem fé vulgares almas.
Meus prazeres, meus bens no amor encontro.
O firme amor insídias não receia,
Basta amar, e seguir a natureza.
Aprendamos a amar-nos mutuamente,
E só no puro amor amor busquemos,
…
Os títulos, a gloria, a honra, a fama:
Todos os nomes que a fortuna inventa,
Rejeito altiva, e só me lisonjeia
De tua amante o nome: — e se ainda há outro
De mim mais digno, e que melhor explique
Meu terno amor, por ti vaidosa o tomo.
Oh! quanto é doce amar, e ser amado!…
Esta a primeira lei, o resto é nada.
Quem mais ditoso do que dois amantes,
Pela afeição, e pelo gosto unidos!
Eles pensam, e falam livremente;
A alegria confundem com seus gestos;
Gozando sempre, e sempre desejando,
Seus corações contentes não conhecem
Nojosos dias, e preside sempre
Uma doce ilusão à sua dita:
Por áureo copo a longos tragos bebem
Dos males, e dos não logrados gostos
Eterno esquecimento: — se há ditosos,
Seus corações decerto a dita gozam!
A bem aventurança, que buscamos,
Amor a dá, amor ao prazer guia,
E os mais perfeitos bens no amor existem:
Tal, querido Abailard, foi nossa sorte.
…
Belo poema. Uma picuinhice: não seria melhor colocar Abelardo em vez de Abailard?
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Lindo! Não pude deixar de me lembrar da Ode, de Camões.
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Republicou isto em O LADO ESCURO DA LUA.
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