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Viagens no séc.XIX — Até Madrid com Júlio César Machado

02 Segunda-feira Maio 2016

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Goya, Júlio César Machado

Goya 1779 450pxFizeram e farão parte das memórias de várias gerações com algumas posses que foram jovens até aos anos 50 do século XX, as viagens entre Lisboa e Madrid no comboio Lusitânia. Lugar de encontros e namoricos, a tal ponto que uma canção espanhola de sucesso à época dá disso conta: El chachachá del tren  cantado pelas Hermanas Fleta (pode ouvir-se no youtube).

A viagem até Madrid que Júlio César Machado (1835-1890) nos conta é quase cem anos anterior. Ainda o comboio chegava tão só a Badajoz, o resto do percurso era feito em carruagem.

Levados pelo saboroso da prosa entrego-vos à descoberta de um Portugal e Espanha antigos, e às peripécias da viagem.

 

…

Parto no comboio de Badajoz às oito e meia da noite de 26 de Março. Tenho por companheiro o meu amigo o conde d’Óbidos. A nossa entrada na carruagem produz longo murmúrio entre os membros de uma família dos Olivais, de quem temos o prazer de ser companheiros até à segunda estação; dá motivo a isto a nossa toilette um tanto complicada; o conde num copioso traje do touriste, capote à espanhola, bolsa a tiracolo, saco numa das mãos, bengala rija na outra, e uma almofada de vento debaixo de cada braço; eu, quasi em estilo de peregrino, chapéu desabado, jaqueta felpuda, uma almofada de vento pendurada a um saco-mala, um saco-mala pendurado a um chapéu de sol, um chapéu de sol pendurado a mim; — sensação no público. Os guardas contemplam-nos como a dois homens que partem para a Terra Santa.

Conversámos até às onze horas: nenhum de nós quer dormir; à meia-noite já dormimos ambos. Badajoz surpreende-nos pela madrugada; é logo bastante bom um dos habitantes desta capital de província para passar em costume espanhol àquela hora, e dar-me uma forte dose de cor local! A cidade cercada de muralhas, estende-se por uma colina coroada com as ruinas de um castelo velho. Cai uma chuvinha que lisonjeia a providência do meu chapéu de chuva, entramos num carro que nos obriga a bailar sentados o bolero, saltando de barranco para barranco, num caminho atroz que conduz da estação à cidade durante meia hora. Hospeda-nos a fonda das Tres Naciones, coio ignóbil, sem luz, sem roupa, sem criados, e onde se vive mais caro que em Londres ou em S. Petersburgo.

Miguel Beriol, o antigo e inteligente chefe do movimento na estação de Santa Apolónia tinha-me dado o Itinerario da Hespanha e Portugal, uma carta de recomendação, e um charuto bom; fumo o charuto, guardo a carta, e olho para o livro… fechado: é que tem oitocentas e oito paginas! e a mim assustam-me os livros volumosos; não me atrevo a principia-los com medo de não os poder acabar. Estou em preferir uma estrofe de Horácio à Ilíada ou a Odisseia, e qualquer breve linha do Tácito ao mais belo período de Cícero. Dava-me por feliz se pudesse encerrar a historia numa página, meter a filosofia numa frase, e apertar toda a poesia humana nalguns versos. Agora por exemplo que é Abril, não respiramos nós toda a Primavera numa só flor? Se pudesse ser assim com os livros, por alguma arte mágica!

Fumei o charuto durante estas considerações — e passo a entregar a carta de recomendação, que é para mr. De Varenne, chefe da estação de Badajoz. Ao subir a escada, encontro uma gentil espanhola de dezasseis anos, que a desce cantando, pulando, e rindo; cumprimenta-me com um ar cintilante de alegria, e precipita-se no jardim, chilreando sozinha como um bando de aves. Que saltinhar gracioso! À proporção que se afasta do solo, rouba o que quer que seja aos céus, aonde parecia querer chegar; desabrocha-lhe nos lábios uma trova andaluza, como flores proféticas de Espanha: paro um instante a escutá-la; larga a voz numa maviosa canção de amores, em que a ideia desprende as asas e a alma se eleva em toda a luz como o passarinho que no voo deixa brilhar as cores!

Subo. De Varenne está num gabinete ao lado da sala onde espero algum tempo. Algumas vozes de mulheres, brincando, cercam, interrompem e sufocam a dele; aí me aparece de novo a desconhecida do jardim, e vai misturar-se ao coro. Que casa é esta? Instantes depois, em conversação, fico sabendo que De Varenne é casado, que a visão que me surpreendeu à entrada é uma vizinha, e que as outras vozes são as de suas três irmãs, todas bonitas, todas de feição ardente e peninsular como ela, cabelos negros, olhos de longas pestanas que lhes resguardam a luz para nos não cegar, figura esbelta, sorriso límpido, voz melodiosa e sedutora. De Varenne é casado com uma compatriota nossa, linda filha de Coimbra que o destino enviou a Badajoz para glória da formosura portuguesa. A ruidosa galhofa das vizinhas, em visita ali, visita íntima, visita de toda a hora, explicou-se-me pois: eram espanholas em vida familiar — o que significa que eram o que pode haver de maior viveza, jovialidade e travessura sob o tecto de uma casa. Que graça, que animação, que ardor galante! No teatro, essa noite, — porque em Badajoz há teatro, por sinal que o chão é de ladrilho! — estiveram essas meninas explicando-me quem eram as pessoas que eu via nos diferentes camarotes.

— E aquele? perguntei, indicando um deles. — Um proprietário.

— Riquíssimo?

— Não!

— Pobríssimo?

— Tão pouco. Regularíssimo!

A vida em Badajoz é de uma insipidez honesta: de manhã trata-se dos negócios; à tarde vai-se para o campo de São João, praça onde está a catedral, o teatro, a melhor farmácia, o melhor botequim, — que botequim, Deus meu! — e, ao centro muitos embuçados como nos melodramas, desde o elegante com a sua capa de bandas de veludo carmesim, até ao maltrapilho que se embrulha com o maior garbo nos farrapos de um capote paradoxal; e à noite, as donzelas vão falar com os seus namorados da janela baixa de grades, enquanto os serenos entoam o seu pregão de hora em hora: Ave Maria puríssima, son las diez, y está sereno, ou Ave Maria puríssima, son las onze y lhove!

Depois de esperarmos dois dias que houvesse lugares na mala-posta, partimos para Madrid. O conde d’Óbidos, que em todo o tempo de Badajoz esteve dirigindo apóstrofes ao destino, encontra-me cheio de cabelos brancos, ao passo que eu o observo transparente: atribuímos estes fenómenos aos dois dias que passámos na funda das Tres Naciones! A mala-posta consta de uma serie de caixas, uma para guardar o correio, outra para guardar as bagagens, e outra para guardar os passageiros, — tudo velho, tudo a desabar, tudo seguro por cordas, puxado por sete mulas que voam por campos e vales com uma orquestra de pragas, gritos e chicotadas do cocheiro! Já vai fugindo o sol, as casas ficam lá ao longe, alargam-se os horizontes, tudo é charneca e montanhas. Vamos em Espanha. Ó longas contemplações, ó sonhos poéticos, ó saudosa lembrança dos contos e lendas deste país encantado, tenho-vos eu bem presente e não irei perder-vos pelo caminho?

A estrada vai trepando sempre, e gira, e volta, e sobe, e redemoinha em inumeráveis séries de vales, montes, colinas silenciosas e desertas. A fresca madrugada desprende depois o seu acento de tímida luz por aqueles campos sem habitantes, sem casas, sem árvores. À esquerda, estende-se a majestosa serra de Guadarrama em ondulações rápidas e imprevistas que nos mergulham o espírito nas mesmas meditações austeras que o mar suscita porque flutua a mesma ideia do infinito naquelas curvas magníficas que parecem a superfície inquieta das vagas cortadas ao longe pelo vento; e a impressão é mais irresistível ainda, porque, na calma ou na tormenta, tem vozes o mar que não se calam e ondas que não descansam, e a serra está sempre muda, sem movimento e sem vida, confundindo nas nuvens a sua coroa de neve!

Principia para nós outro extenso dia e outra longa noite de mala-posta, alimentando-nos apenas de chocolate que tomamos a ferver, com uma pressa ímpia, nas localidades em que há muda. Em Tragillo há um teatro e um casino em frente mesmo da venta; este esmero de civilização leva-me a pedir manteiga à locandeira; traz-me manteiga de porco e diz-me:

— Si usted la quiere, és de cierdo: no hay de otra!

Fulminado pela descoberta de que em Espanha não há manteiga, continuo recorrendo ao pão seco para acompanhar o chocolate de cada dia. Do Carrascal até Almaraz, quatorze léguas, temos o luxo de possuir um postilhão, de chapéu na orelha, jaqueta arruinada, grandes botas fanfarrans, esporas compridas, olhos de uma mobilidade extrema, voz vibrante, cabelos à mercê do vento. Já dançam os guizos, e, ao ruído desse acompanhamento caprichoso, a imaginação do viajante vai também trotando, retendo-se às vezes com o andar indeciso da pesada mala-posta, de outras deixando-se ir ao acaso das suaves e cambiantes ondulações do horizonte. O postilhão é um aragonez, que anda há vinte e seis anos neste serviço improbo de cavalgar todos os dias quatorze horas, a cair neve no inverno, e no verão sob um sol que abrasa, — para ganhar duas pesetas, dezasseis vintens!

Jantamos em Talaverra de la Reina. Tremo que me dêem sopas de chocolate, e interrogo timidamente o cocheiro sobre o género de refeição que nos espera nessa cidade tão ansiosamente desejada pelo meu estômago inquieto: — «Una comida formal!» responde esse excelente espanhol, a quem eu houvera querido presentear com um par de castanholas pela sua resposta consoladora. A comida formal em Espanha consta de uma sopa bastante nutriente, um prato de grãos cozidos com chouriço, toucinho e carne de vaca, coelho guisado, e quase sempre um assado de carneiro; o vinho é excelente, e tive repetidas ocasiões de fazer saúdes à minha pátria com um Valdepenas digno do brinde.

Partimos de novo. É ao cair da tarde. Há apenas uma claridade indecisa e descontente. Avistam-se ainda nas pastagens alguns bois pequenos, de um amarelo vivíssimo, que contemplam com uma espécie de ironia a capoeira em que vamos, e seguem brandamente o seu caminho, por uns campos pardacentos onde obstinados arqueólogos iriam debalde esgravatar a relva sem poderem encontrar os restos dos famigerados castelos da Espanha; alguns nos aparecem ainda, a grandes distâncias, visivelmente enfastiados de estarem para ali no esquecimento, ocupados apenas em sustentarem conforme podem as tradições do país.

Ainda uma longa noite de mala-posta, acompanhados unicamente por montes que se confundem com a serra em transições tão insensíveis como as da serra a confundir-se no céu, e sem encontrarmos senão algum raro viandante, de carabina ao ombro, lenço atado na cabeça, chapéu de abas largas, manta traçada, e polainas altas, e, de légua em légua, os soldados que patrulham de vigia à estrada.

Vai amanhecendo. Os cavalos fatigados encontram enfim alamedas magníficas. Por entre árvores de todos os lados, avista-se ao longe a casaria. Passa-me no espírito um turbilhão de ideias que se combatem, umas a falarem-me de feudalismo, de inquisição, de fanatismo, outras de castanholas, de pandeiros, de cachuchas, de serenatas, de costumes poéticos e pitorescos. Já se erguem no horizonte as grandes torres escuras. É Madrid! Ah! É Madrid enfim!…

Goya - O Guarda-sol 1776-78 500px

 

Nota bibliográfica

 

Este texto foi publicado numa crónica da Revista Contemporanea de Portugal e Brasil e posteriormente reescrito no livro Em Hespanha, Cenas de Viagem, 1865.

 

As imagens mostram pinturas de Goya (1746-1828).

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TARDE VOS AMEI — Agostinho de Hipona

18 Sexta-feira Abr 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Prosas

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Rogier van der Weyden, Santo Agostinho

Rogier van der WEYDEN - Deposição 9São ínvios os caminhos entre a razão e a crença. Matéria de fé e reserva de cada um, a Paixão de Cristo que o calendário cristão assinala faz-me trazer ao blog a evocação de Santo Agostinho (364-430) sobre a sua conversão cristã e a necessidade de Deus; e arquivar no blog as prodigiosas imagens da pintura de  Rogier van der Weyden (1400-1464), Deposição de Cristo, do Museu do Prado, pintada cerca de 1435.

Rogier van der WEYDEN - Deposição 2

TARDE VOS AMEI

 

Tarde Vos amei, Ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei.

Habitáveis longamente dentro de mim, e eis-me lá fora a procurar-Vos.

Dispersava-me entre as formosuras que criastes.

Estáveis já comigo, sem que eu estivesse convosco!

Demorava-me naquilo que não existiria se não existisse por Vós.

Até que rompestes minha surdez, chamando por mim com voz tão forte.

Brilhastes, cintilastes por dentro da minha cegueira.

Exaltastes perfume: respirei-o e desejei-Vos com todas as forças.

Saboreei-Vos, e agora padeço de fome, morro de sede.

Tocastes-me, e sem a Vossa paz, sei que nunca mais terei paz!

 

Agostinho de Hipona

Rogier van der WEYDEN - Deposição 5

Rogier van der WEYDEN - Deposição 6

Rogier van der WEYDEN - Deposição 7

Rogier van der WEYDEN - Deposição 8

 

Rogier van der WEYDEN - Deposição 3

Rogier van der WEYDEN - Deposição 1

 

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Sopa da pedra – a lenda recontada por Júlio César Machado

29 Sábado Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Prosa, Prosas

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Júlio César Machado

 

Aertsen_Pieter-Market_Woman_with_Vegetable_Stall

Por um mecanismo informático cujo segredo estará ao alcance de poucos, o Facebook insiste em mostrar-me, na minha qualidade de administrador da página viciodapoesia, páginas dedicadas à culinária moderna, com o pretexto de que têm, o que chamam, um desempenho igual à minha.
Não é coisa que me preocupe ou incomode, e sobretudo trouxe-me a ideia de mostrar aos leitores do vicio da poesia não culinária moderna, mas a antiquíssima sopa da pedra ou sopa de pedra.
A sopa da pedra é, para quem não sabe, uma sopa de sustancia, com hortaliças e carne, tradicional da culinária portuguesa, sobretudo no Ribatejo, e em Almeirim em particular, onde a pedra é de lei; e presença literária num dos contos tradicionais portugueses.
Esta sopa da pedra terá sido expediente de um frade mendicante para obter alimento junto dos mais renitentes, tal como a tradição a conta. A lenda mereceu a Júlio César Machado (1835-1890) um ligeiro reenquadramento, voltando a contá-la num dos seus livros de prosas avulsas.
A graça e frescura do estilo com que esta arqui-conhecida estória está contada, leva-me à sua transcrição, em ortografia modernizada.

Sopa de pedra por Júlio César Machado

Foram dois rapazes, da tropa, dois pobres moços, dois tristes soldados, aboletados para casa de um grande somítico, em Peniche.
Apressou-se logo em lhes ir dizendo o homem:
—Ó filhos, vocemecês vêem para cá! Ora, que ideia! Não lhes posso dar senão água e lume.
—Água e quê?
—E lume.
—Já não é mau.
—Está visto, que não é mau. Mas advirto-os desde já, para saberem a tempo com o que podem
contar, e não me azoinarem depois com pedidos…
—Diz bem.
—Tenho razão ou não tenho?
—Tem, tem razão.
—Cada um dá o que pode.
—Está bem de ver!
—Não é assim!?
—É.
—Pois aí está. Água e lume têm vocês aqui. O mais arranjem-o.
—Sim, senhor
—Estamos entendidos.

Puseram água ao lume. Depois, disse um para o outro:
—Ó Rufino, vai buscar a coisa, hein?
—A água já ferve ?
—Não, mas para haver tempo de se lavar.
—Ah ! Isso, sim. E para o dono da casa:
—Com licença!
—Você vai sair?
—É um instante. Faz favor de não fechar a porta.
—Não fechar a porta! Deus me livre disso! A porta quer-se sempre fechada.
—Vou ali buscar uma coisa, e já volto.
Dali a nada voltou com uma pedra.
—Vá, disse-lhe o outro; lava-a, que a água já principia a ferver.
O soldado lavou a pedra muito bem lavada, em três águas, como se faz ao arroz, depois escorreu-a, limpou-a, e meteu-a na panela.
O somítico estava pasmado. E mais pasmado ficou, quando os viu deitarem sal na panela e provarem.
—Que tal está? perguntou um dos aboletados.
—Não está má.
—Não o deve estar, porque a pedra parece boa.
—Ah! Isso é ela. De boa qualidade.
—Precisa ferver.
—É o que precisa. E se tivesse uma hortaliça qualquer, uma cabecinha de nabo, umas cenouras, estava obra
—Homens, lá por isso não seja a dúvida! Ponderou o dono da casa. Tomem vocês lá duas cenouras, e duas cabeças de nabo, e mesmo também a rama, se querem.
—Pois venha lá isso.
Meteram os vegetais para dentro da panela.
Daí a bocado provaram.
—Que tal vai?
—Vai bem. Está mesmo boa. Por mais um nadinha, ficaria óptima!
—Que nadinha é? perguntou o avarento.
—Um bocadinho de toucinho, ou banha de porco … respondeu um dos soldados.
—Pois, tire lá: mas, hão de dar-me a provar, porque tenho curiosidade de vêr o que sai daí.
—Sai uma sopa só fina!
—Mas, isso, é sopa de pedra?
—É sim, senhor. Também se faz de seixos. Mas, esta, é mais corda.
—E a primeira vez que tal vejo!
—Há-de gostar.
Foi-se o soldado ao toucinho, cortou-lhe um naco, deitou-o no caldo da hortaliça e deixou ferver.
—Cheira, cheira, isso já.
—E bem
—Cheira bem, cheira bem.
—Ora! pois é pitéu. E então em levando um anexim, que lhe falta, é de uma pessoa lamber o prato…
—O que é que falta?
—Um pedacinho de chouriço, ou mesmo linguiça. Isso então fica maravilha!
—Homem, disse o somítico, lá por causa de um apêndice tão fácil de achar á mão, não deixe essa extraordinária comida de chegar a ser o que se diga perfeita …
Juntou-se-lhe o chouriço.
Coseu, coseu…
Deitava um cheiro …
—Ó senhores, que cheiro! disse o unhas de fome.
—Cheira muito bem, meu senhor, e melhor há-de saber! redarguiu um dos aboletados.
E o outro aboletado:
—Está pronta. Está na conta própria. Agora, em querendo, vamos a ela… Isto com pão, é melhor ainda, se é possível; mas, mesmo sem pão é boa!
O somitico foi buscar um pão.
—Vamos já a isto… Estou com vontade de saborear essa historia…
—Esta historia é mais bonita que a da carochinha, e com isto se diz tudo! Ora, muito bem . .
Uma vez partido o pão à mão …
—Sim! ponderou o outro soldado. Isso é que é de preceito para este caso. Há-de ser por força à mão…
—Sim, sim … Pois seja à mão.
—Mas por força.
—Acredito! basta vocês dizerem!
—Agora despeja-se-lhe o caldo em cima, guardando de reserva o pão suficiente para machucar no toucinho, acompanhado com as ervas… Que tal?! Boa?
—Está óptima! exclamava o homem. Eslá excelente. Vocês são o diabo! Não à gente como são os soldados, para estas coisas! Como vocês fazem sopa de um pedregulho, e fica uma delícia por esta maneira! Não se acredita! Parece bruxaria!
—E para vocemecê vêr
—Cá me fica!…

Bom apetite!

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Alvaro de Campos – O Binómio de Newton

04 Segunda-feira Mar 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas, Prosas

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Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, Newton

Venus de Milo - Louvre

A uns causa estranheza, a outros, onde me incluo, a comparação feita no poema de Alvaro de Campos entre a Vénus de Milo (escultura grega da colecção do museu do Louvre), arquétipo da beleza feminina pelos séculos, e o binómio de Newton, (solução matemática para um problema de cálculo descoberta pelo físico e matemático inglês, Sir Isaac Newton (1643-1727)), parece justíssima e um golpe de génio poético, a sua formulação.

O binomio de Newton é tão bello como a Venus de Milo.
O que ha é pouca gente para dar por isso.

(Alvaro de Campos)

óóóó—óóóóóó óóó—óóóóóóó óóóóóóóó

(O vento lá fóra)

Acompanho o poema com os seus protagonistas: a abrir, uma foto da Vénus de Milo, da colecção do museu do Louvre, e a seguir, a explicitação matemática do binómio de Newton.

A formulação do binómio de Newton escreve-se  da seguinte forma:
onde os coeficientes  são chamados coeficientes binomiais e definem-se como: onde  e  são inteiros,  e  é o fatorial de x.
O coeficiente binomial  traduz, em análise combinatória, o número combinações de n elementos agrupados k a k.

Quando atacado de insónias, leitor(a), é bom remédio manualmente desenvolver o cálculo arbitrando o x e y da vida, e escolher n e k à medida da insónia. (Deixo à vossa imaginação a matemática da coisa). Rapidamente chega o sono repousante.

Bons sonhos!

Nota bibliográfica

Transcrevi a versão ortográfica de Teresa Rita Lopes na sua edição crítica do Livro de Versos de Álvaro de Campos, o heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935), Editorial Estampa, Lisboa, 1993.

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Confúcio – Analectos 7.26 e A Escola de Atenas de Raffaello Sanzio

29 Terça-feira Jan 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Chinesa, Prosas

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Confúcio, Raffaello Sanzio

Rafael - Fresco A escola de Atenas 1“Se considerarmos os grandes pais espirituais da humanidade—Buda, Confúcio, Sócrates, Cristo —, ficaremos impressionados por um curioso paradoxo: hoje, nenhum deles poderia obter sequer um modesto lugar de professor numa das nossas universidades. A razão é simples: as suas qualificações são insuficientes: não publicaram nada.”

Simone Leys na introdução à sua tradução de Analectos de Confúcio.

Abro com esta citação, talvez merecedora de reflexão, sobre o que todos os dias aceitamos não tanto como conhecimento, mas como saber.

Acompanho habitualmente a disposição psicológica com as leituras que de alguma forma me tranquilizam, e muitas vezes delas aqui dou conta. Hoje vem ao caso uma citação de Confúcio, pensador cujas máximas a espaços conforta saborear.

O Mestre disse: “Um santo é coisa que não ouso esperar encontrar. Dar-me-ia por satisfeito se pudesse encontrar um homem de bem.”
O Mestre disse: “Um homem perfeito é coisa que não ouso esperar encontrar. Dar-me-ia por satisfeito se pudesse encontrar um homem de princípios. Quando o Nada passa por Alguma coisa, o Vazio passa por Plenitude e a Penúria passa por Prosperidade, é difícil ter princípios.”

Analectos, 7.26

Tradução de António Gonçalves a partir das versões francesa e inglesa de Pierre Rickmans (Simone Leys).

Abre o artigo um detalhe do fresco de Raffaello Sanzio (1483-1520), Escola de Atenas, pintado na Stanza della Segnatura dos Palácios Pontifícios do Vaticano, representando Platão e Aristóteles.

Segue-se uma vista da totalidade do fresco e alguns detalhes deste, dando-nos uma visão idealizada da transmissão do saber no convívio de sábios e estudantes.

Rafael - Fresco A escola de Atenas 0

Rafael - Fresco A escola de Atenas 11

Rafael - Fresco A escola de Atenas 3

Rafael - Fresco A escola de Atenas 2

Rafael - Fresco A escola de Atenas 4

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Abelardo, o membro: uma fantasia

02 Quinta-feira Ago 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Prosas

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carlos mendonça lopes, Tom Wesselmann

Entra Agosto, chegam as férias, e neste sem-que-fazer vasculho papéis esquecidos, ou antes, vasculho ficheiros esquecidos. De entre o que encontrei surgiu esta história com Abelardo, o membro por protagonista, de que vos deixo uma versão curta.

Abelardo, o membro: uma fantasia

– Estou chateadíssima. Então não é que o Abelardo se estragou.
– Não me digas.
– Digo sim! Imagina tu que o Zé anda a ler uma história qualquer passada no Iraque. Encontrou lá descrita uma cena de sexo que o excitou e quis reproduzir. Então, quando estávamos na cama insistiu para que lhe enfiasse qualquer coisa no traseiro. Lembrei-me de lhe enfiar o Abelardo, mas qual quê? Eu bem o apertava, o esfregava e nada, o Abelardo ficava mole, fugia, escorregava, até parecia ter vida para se recusar a entrar ali. Nunca tinha acontecido comigo. Depois de tudo isto, o Zé desistiu e como calculas ficou furioso. Agora tenho bem umas semanas de jejum. E sem o Abelardo não sei como vai ser.
– Compra outro.
– Já não há. Fui à procura e desapareceu.
– Mas onde é que o compraste?
– Comprei na internet. Procurava um vibrador com o tamanho a que estava habituada e lá estava:
“Abelardo, o conforto das noites solitárias:
Dimensões: 18 x 4cm
Preço: 80 € + despesas de expedição
Fazem-se entregas em mão ou por correio em embalagem discreta.”
Decidi-me, e desde então tem sido do outro mundo. Até ao outro dia que se avariou. Como estava dentro da garantia, devolvi-o, mas responderam-me hoje dizendo que daquele modelo não havia mais. Fôra um sucesso e esgotara rapidamente. Poderiam enviar de outro tipo.
Não tenho esperança nenhuma. Este Abelardo era tão especial!
De repente pareceu-lhe ouvir uma voz dentro da cabeça:
– Pois é Alda, o vibrador que a consolou não era um vibrador qualquer, era não só especial, mas único. Guardava nele a essência da voluptuosidade desde tempos imemoriais.
– Hélia, parece-me que não me estou a sentir muito bem. Tenho a impressão de ouvir vozes na cabeça. Vou voltar para casa, tomo um chá e um Xanax e vou ver se acalmo.
– Queres que vá contigo?
– Não, não te incomodes. Apanho um táxi e vou. Táxi! Táxi!.
Parou um táxi, despediram-se e entrou. Sentada continuou a ouvir a voz. Era uma voz calma, pausada e deixava uma sensação de vir de fora do tempo: Esse vibrador, Alda, possui uma história que talvez goste de conhecer.
Indicou a morada ao taxista e encostou-se no banco. Pareceu-lhe até que adormecia.
Entretanto o taxi chegou a casa. Pagou e saiu. Sentia-se um pouco zonza, talvez por ter dormitado. Em casa tirou o casaco, descalçou-se, mudou de roupa e foi à cozinha. Pôs uma chávena com água no microondas para fazer chá. Ia buscar os comprimidos quando a voz de novo lhe apareceu:
– Não tome comprimidos, vão fazer-lhe mal. Sente-se no sofá com o chá e ouça-me.
Cada vez mais intrigada, e até um pouco assustada, sentou-se com a chávena e a saqueta do chá na mão.
– Sabe Alda, o Abelardo estragou-se porque o quis obrigar a penetrar um homem, a única coisa que nunca fez na vida e estava impedido de fazer. Agora que o devolveu ao fabricante irá certamente para o lixo e perder-se-ão, talvez para sempre, as suas virtualidades, a menos que o salve algum poder sobrenatural, o que nem será improvável a atender às vicissitudes por que passou ao longo dos séculos até lhe chegar às mãos.
– Que conversa tão estúpida. Só há vibradores há meia dúzia de anos, não conseguiu impedir-se de dizer em voz alta.
– É verdade, só há vibradores há meia dúzia de anos, mas a borracha com que este vibrador foi feito teve uma adição especial. Proveio de um lote de preservativos usados e recolhidos para reciclagem. Vai concerteza querer saber os pormenores.
– Talvez, pensou intrigada. E a voz prosseguiu:
– Nestes tempos de HIV, James Bond, em quem eu habitava, a conselho insistente do estúdio cinematográfico, resolveu adoptar o uso de preservativo nas suas actividades, e assim, num dia de distracção e grande azáfama, fui levado dentro de um preservativo usado. Foi um acidente sério. Diz-se até que por causa disso o próximo James Bond será casto. O caminho até James Bond foi acidentado e cheio de peripécias. Do que aconteceu ao preservativo conto mais à frente.
Cheguei a James Bond através de uma figurante do seu primeiro filme, e com ele permaneci até à fatídica distracção. Foram tempos bons, belas mulheres, hotéis de luxo, uma vida de correria à roda do mundo, enfim, do melhor que me recordo.
Mas voltando à rapariga, ela tinha sido modelo de Picasso, e num daqueles processos porque a providência me fez passar de geração em geração, a bela moça recebeu-me do pintor e passou-me ao James.
Foi já avançado na idade que Picasso, ao ter relações com a jovem modelo, depositou nela sem o saber a essência da virilidade masculina de que era no sec XX o guardião, numa cadeia que se transmitiu entre artistas e outros homens de génio desde há séculos. Tão infausto acontecimento foi o inicio da conhecida impotência do pintor no final da vida, com as consequências visíveis na sua obra pictórica.
– Começa a interessar-me a história, disse Alda de si para si.
E a voz continuou:
– O percurso desta essência através dos tempos tem despertado curiosidades, sobretudo num Sr. Borges, que se tem esforçado por a conhecer, mas não tem sido fácil de reconstruir, e o próprio tem ainda saltos e lacunas por preencher. Também já não serei de grande ajuda pois sinto a memória a esvair-se, agora que o principal de mim desapareceu. De alguma maneira a senhora é responsável por ter enviado para o lixo parte importante e essencial da virilidade masculina tal como tem sido conhecida até aos nossos dias.
Mas voltemos ao preservativo. Como as exigências explicitas no estúdio cinematográfico eram de reciclar tudo o que fosse reciclável, o preservativo que me continha foi incluído num lote de borracha para esse fim. O lote foi vendido a um fabricante de vibradores e assim me vi dentro de uma dessas peças infernais que só funcionam a pilhas. Eu nunca precisei de pilhas para funcionar pelo que transformei um banal vibrador na peça especial que conheceu.
Cada vez mais intrigada, Alda não resiste e pergunta-se:
– Abelardo, mas Abelardo porquê? Ainda se se chamasse Picasso ou James Bond, percebia-se. E aí a voz continuou:
– O fabricante de vibradores pretendia lançar num mercado tão competitivo como é o dos acessórios de sexo, onde todos são iguais parecendo diferentes, mais um produto que, sendo igual, chamasse sobre si as atenções. Contratou os serviços de uma agência de publicidade da qual recebeu diversas propostas insatisfatórias, até que uma noite lhe ocorreu: pois é, a diferença está no nome. Tinha visto na televisão um programa de um grupo de rapazes a dar pelo nome de Gato Fedorento.
Vibrador com nome era de facto um pouco estranho mas permitia ao possuidor criar uma relação afectiva com o objecto sem precisar estar a imaginar mais nada. Entre os nomes que lhe iam surgindo nenhum parecia suficientemente apelativo até que lhe segredei:
– Abelardo.
– Abelardo? É nome de gente? Ah pois é! É aquele que foi castrado por seduzir a aluna Heloísa, e a família não gostou. É isso mesmo!
Ao outro dia deu instruções ao departamento de promoção. A nova linha de vibradores teria nome e chamar-se-ia “Abelardo, o membro”.
– Podem começar a ter ideias sobre o aspecto gráfico da embalagem, ordenou.
Embalado e anunciado, fui posto à venda na internet com outros vibradores do mesmo lote de borracha, mas os outros não me continham. Ao que sei venderam-se depressa, sem que o nome de baptismo tivesse qualquer interferência nisso. Eu fui comprado pela senhora e tivemos as alegrias de que se recorda. Entretanto aconteceu a desgraça com o seu marido, e agora acabou-se de vez Abelardo.
Alda com um estremecimento, levantou-se e disse alto:
– Vou mesmo tomar um Xanax e ver se durmo. Já ouço vozes na cabeça há tempo de mais, devo estar a ficar maluca.

Epílogo

Devolvido o vibrador ao fabricante, como não funcionava foi separado para reciclagem.
Acabou incluído num lote que serviu para fabricar o boneco E.T. do filme de Spielberg do mesmo nome.
Provavelmente, e a acreditar no filme, a essência do nosso Abelardo estará agora no espaço sideral, quem sabe se ganhando nova vida entre os extra-terrestres.

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Do banho como fonte de pecado: Leandro de Sevilha (537-600)

01 Sexta-feira Jun 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Prosas

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Escola de Fontainebleau, Henri Cartier-Bresson, Leandro de Sevilha

Escreveu o Bispo Leandro de Sevilha (537-600) o livro “A instrução das virgens” para oferecer a sua irmã Florentina quando esta entrou como monja para um convento.

Vasto acervo de ensinamentos a transmitir por um homem conhecedor do mundo a uma jovem mulher prestes a ser entregue à contemplação do Todo-poderoso, nele respigo um aspecto que hoje talvez passe desapercebido, mas foi matéria de controvérsia por séculos: o banho ou antes, o prazer do próprio corpo decorrente da caricia do banho. São estas, considerações sobre o banho privado, e para sentirem como o bispo tinha provavelmente razão, o artigo vai ilustrado com 2 pinturas da Escola de Fontainebleau de entre o final do século XV e principio do século XVI, quando estas coisas já podiam se pintadas para gáudio e contemplação real.

Vamos então às considerações bispais:

…

Não te hás-de banhar por gosto ou para dar formosura ao corpo, senão apenas como remédio para a saúde. Quer dizer, usarás o banho quando a doença o exija, não quando o prazer o apeteça. Se o tomas quando não seja preciso, pecarás, pois está escrito: Não ponhais a vossa solicitude na concupiscência da carne.

A solicitude carnal que provém da concupiscência conceptua-se como vicio; não, por outro lado, os cuidados necessários para restabelecer a saúde. Por tal motivo, que não te arraste a banhar-te com frequência o prazer corporal, senão somente as exigências da enfermidade, e estarás livre de culpa se unicamente actuares por imperativo da necessidade.

(solicitude é aqui empregue no sentido de “afã ou diligencia em tratar ou conseguir algum fim”, de acordo com o Dicionário De Morais)

Sabeis agora, vós, leitor, que não te arraste a banhar-te com frequência o prazer corporal, e provavelmente é o que acontece com alguns nossos contemporâneos a ajuizar pela atmosfera em hora de ponta no metro ou em certas carreiras de autocarros.

No entanto, os conselhos do bispo não devem ter tido generalizada aplicação, ainda que o espectro do pecado lá estivesse, e o prazer do banho terá continuado a desfrutar-se, falam-nos dele as pinturas aqui mostradas.

Para final de conversa deixo o leitor com a contemplação do visível prazer do banho captado por Cartier-Bresson algures nos anos 30 ou 40.

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O Manuel Narciso pela pena de Brito Camacho (1862-1934) em terça-feira de Carnaval

21 Terça-feira Fev 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à fotografia, Prosas

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Aquilino Ribeiro, Brito Camacho, Henri Cartier-Bresson

Com o sabor e valores de uma época recuada, trago hoje um naco de prosa do esquecido Brito Camacho (1862-1934) a quem Aquilino Ribeiro (1885-1963) dedica um notável estudo no livro De Meca a Freixo de Espada à Cinta (1960).

O Manuel Narciso, maricas dos quatro costados, era ruim trabalhador e detestável pessoa; só para os trabalhos mulherengos tinha jeito e só para os seus amásios tinha demonstrações de estima. Era o pior dos criados, dizia o meu pai; era a melhor das criadas, dizia a minha mãe, e um pouco por esse motivo, mas principalmente por ser irmão da comadre Narcisa, conservou-se na casa até ser velho, muito velho, sempre resmungão, sempre maldizente, escandaloso nos seus actos, que por fim estadeava, provocando a indignação e o nojo. Dizia o compadre Rosa, erudito analfabeto:

– Este diabo é como as sereias, que da cintura para baixo são uma coisa, e da cintura para cima são outra.

Todos os anos, na terça-feira de carnaval, se mascarava de mulher, e era como se a um preso dessem liberdade, abrindo-lhe a porta da cadeia. O compadre João Catarino, quando o via de saias, lenço na cabeça, um xaile pelos ombros, padejando as ancas como as marafonas, não se dispensava de lhe dizer:

– Ó ladrão, tu hoje devias fingir de homem, para te não conhecerem!

 Para o curioso leitor deixo uma ligação onde encontra informação sobre Brito Camacho.

http://www.vidaslusofonas.pt/bcamacho.htm

A fotografia é de Henri Cartier-Bresson, de 1932, tirada em Alicante, Espanha

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Entre Almada (Negreiros) e Bicesse, memória de Carnaval

21 Terça-feira Fev 2012

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poetas e Poemas, Prosas

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Almada negreiros

Tive na vida, até hoje, duas paixões de coup de coeur. A primeira, vão mais de quarenta anos.

Era o Carnaval de 1971. Nesses anos Marcelistas as pessoas abriam as casas a desconhecidos com a maior afabilidade, e as festas privadas de fim-de-semana eram parte integrante do quotidiano de qualquer jovem. Chegado o Carnaval os grupos transformavam-se em multidão.

Naquele sábado combináramos encontrar-nos no atelier de um pintor na baixa. O boca-a-boca: onde vais sábado de Carnaval? transformou o pequeno grupo inicialmente previsto numa multidão que extravasava pela escada da mansarda. Quando chegámos, à entrada  e indiferente a multidão que cirandava, acotovelando-se, encostava-se a mulher dos meus sonhos, embora à data eu não soubesse exactamente como era. Foi o baque da paixão, ali, a iluminar-me a alma.

O caos em redor e a falta de espaço não iam permitir qualquer festa, era preciso encontrar solução alternativa àquela barafunda. Festa tinha que haver. Conferenciámos sobre as alternativas e sugeriu-se a casa da Paula.

– Mas é em Bicesse, alguém lembrou.

– Não faz mal, quantos carros há?

 Havia apenas 2.

– Quem couber vai de carro, quem não couber vai de comboio e vou buscá-los à estacão do Estoril, propôs uma amiga com quem eu ia. E assim se fez. A minha descoberta paixão foi connosco e a festa decorreu com quem quis ir. Durou até bem avançada a manhã. O meu coup de coeur deu em namoro e casamento.

A casa era de Almada Negreiros, e a partir dela  escreveu o poeta AQUI PORTUGAL, poema com que termino esta evocação.

Com ela pretendo lembrar a amiga que, com o seu carro e disponibilidade, permitiu que a festa acontecesse e a paixão de um olhar me fizesse feliz por muitos anos. Lembro-a no éter da net agora que faleceu vitima de cancro da mama.

AQUI PORTUGAL

Aqui Portugal

Bicesse

O Fim-do-Mundo mais perto de

Lisboa a da boa flôrdelis

e

Entre a Serra da Lua (Sintra)

As grutas e necrópole daqueles

Que nascidos em Creta

Passaram em Homero

Em Cristo

E a vista de Roma

Saíram do Mediterrâneo

E aqui ficaram e passaram

Trazendo consigo para toda a parte

A civilização da Liberdade individual

Do Homem

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Nasci duas vezes e o peso da fé: dois textos de Danilo Harms (1905-1942)

29 Quinta-feira Dez 2011

Posted by viciodapoesia in Prosas

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Danilo Harms

Não tendo existido surrealismo na União Soviética, os textos de Danilo Harms (1905-1942) possuem características que para o surrealismo remetem.

O deslocamento da realidade e da lógica surgem eivados de um sarcasmo, mais que de ironia, empurrando a imaginação para o inesperado de associações que subvertem o mundo conhecido ou esperado.

Os textos, situando-se muitas vezes na fronteira da prosa com a sua descrição detalhada de um mundo imaginado, e da poesia onde a arte da síntese se move, levam-nos por caminhos de interrogação sobre o real e o absurdo, questionando a lógica associada à concatenação dos acontecimentos e factos.

Nesta pequena escolha, começo com o nascimento do poeta narrado pelo próprio.

Agora vou contar-vos como nasci, como cresci e como se revelaram em mim os primeiros indícios de génio. Nasci duas vezes. Eis como tudo aconteceu.

O meu papá estava com a minha mamã em 1902, mas os meus progenitores trouxeram-me  à luz do dia apenas em finais de 1905 porque o papá exigia que o seu filho nascesse obrigatoriamente na passagem do ano. O papá calculou que a concepção tinha de acontecer no dia 1 de Abril e, por isso, apenas nesse dia abordou a mamã no sentido de conceberem juntos uma criança.

A primeira vez que o papá abordou a mamã foi no dia1 de Abril de 1903. Havia muito que a mamã esperava este momento e ficou muito contente. O papá, porém, estava numa disposição jocosa e não se conteve que não dissesse à mamã:”Ah, ah, primeiro de Abril!”
A mamã ficou terrivelmente ofendida e, nesse dia, não permitiu que o papá a conhecesse. Foi obrigado a esperar pelo ano seguinte.

Em1904, no dia 1 de Abril, o papá voltou a abordar a mamã com a mesma proposta. A mamã, porém, não se esquecera do caso do ano anterior e disse que não estava interessada em ficar numa situação estúpida e não acedeu, de novo, às pretensões do papá. Por mais que o papá se enfurecesse, nada feito.

Somente um ano depois o meu papá conseguiu exortar a minha mamã a conceber-me.
Por conseguinte, a minha concepção deu-se a 1 de Abril de 1905.

Apesar disso, todos os cálculos do papá saíram furados porque nasci prematuro, quatro meses antes do prazo.

O papá encrespou-se de tal maneira que a parteira que assistia ao parto se atrapalhou e se pôs a enfiar-me de volta para donde tinha saído.

Um conhecido nosso que estava presente, estudante da Academia Médica Militar, declarou que não seria possível enfiar-me de volta. No entanto, apesar das palavras do estudante, acabaram por me enfiar e, como de resto viria a verificar-se mais tarde, enfiar enfiaram, mas à toa, no sítio errado.

Nisto, armou-se uma balbúrdia terrível. A parturiente grita: “Dêem-me o meu filho!” Respondem-lhe: “O seu filho está dentro de si!” ” Como? – grita a parturiente. – Como é que o meu filho pode estar dentro de mim se acabei de o parir?!” “Mas – dizem à parturiente -, se calhar está enganada, não?” “Como?! – grita a parturiente. – Como é que posso enganar-me? Ainda agora vi a criança com os meus próprios olhos, aqui em cima do lençol!” “É verdade – dizem à parturiente -, mas talvez ele tenha rastejado para algum lado.” Em resumo, nem sequer sabiam o que dizer à parturiente.

Ora a parturiente grita e exige ali o seu filho.

Foram obrigados a chamar um médico experiente. O médico experiente examinou a parturiente e, abrindo os braços de espanto, encontrou no entanto uma solução e deu à parturiente uma boa dose de magnésia. A parturiente defecou e, deste modo, saí à luz pela segunda vez.

Nisto o papá voltou e enfureceu-se, dizendo que era impossível considerar nascimento uma coisa destas, que eu ainda não era um ser humano mas um semi-embrião e que era necessário voltar a enfiar-me para qualquer lado ou, então, colocar-me na incubadora.

E colocaram-me na incubadora.

Não nos esclarecendo sobre quando saiu da incubadora, nunca saberemos se no próximo domingo haverá ou não que assinalar um aniversário do escritor. Continuemos mais um pouco na sua companhia, e depois de termos travado conhecimento com o poeta à nascença, leia-se um curto texto, talvez metafísico, sobre o peso da fé, nesta quadra em que ela nos acompanha.

Um homem deitou-se crente e acordou descrente.

Felizmente, havia no quarto deste homem uma balança decimal médica, e ele tinha o habito de se pesar todos os dias, de manhã e à noite. Assim, pesara-se na véspera, ao deitar, e a balança marcava 4 puds e 21 libras. Na manhã seguinte, ao acordar descrente, o homem voltou a pesar-se e a balança marcava 4 puds e 13 libras. “Daqui a conclusão: a minha fé pesava aproximadamente 8 libras”, disse o homem.

Depois desta pequena amostra poderá o leitor descobrir mais onde estes textos se encontram.

Os textos transcritos pertencem a A VELHA E OUTRAS HISTÓRIAS de Danilo Harms, publicado por Assírio & Alvim em tradução de Filipe Guerra e Nina Guerra, em 2007.

Esta edição contém uma esclarecedora Introdução de Filipe Guerra sobre a vida e a obra do autor.

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