Etiquetas

,

Entra Agosto, chegam as férias, e neste sem-que-fazer vasculho papéis esquecidos, ou antes, vasculho ficheiros esquecidos. De entre o que encontrei surgiu esta história com Abelardo, o membro por protagonista, de que vos deixo uma versão curta.

Abelardo, o membro: uma fantasia

– Estou chateadíssima. Então não é que o Abelardo se estragou.
– Não me digas.
– Digo sim! Imagina tu que o Zé anda a ler uma história qualquer passada no Iraque. Encontrou lá descrita uma cena de sexo que o excitou e quis reproduzir. Então, quando estávamos na cama insistiu para que lhe enfiasse qualquer coisa no traseiro. Lembrei-me de lhe enfiar o Abelardo, mas qual quê? Eu bem o apertava, o esfregava e nada, o Abelardo ficava mole, fugia, escorregava, até parecia ter vida para se recusar a entrar ali. Nunca tinha acontecido comigo. Depois de tudo isto, o Zé desistiu e como calculas ficou furioso. Agora tenho bem umas semanas de jejum. E sem o Abelardo não sei como vai ser.
– Compra outro.
– Já não há. Fui à procura e desapareceu.
– Mas onde é que o compraste?
– Comprei na internet. Procurava um vibrador com o tamanho a que estava habituada e lá estava:
“Abelardo, o conforto das noites solitárias:
Dimensões: 18 x 4cm
Preço: 80 € + despesas de expedição
Fazem-se entregas em mão ou por correio em embalagem discreta.”
Decidi-me, e desde então tem sido do outro mundo. Até ao outro dia que se avariou. Como estava dentro da garantia, devolvi-o, mas responderam-me hoje dizendo que daquele modelo não havia mais. Fôra um sucesso e esgotara rapidamente. Poderiam enviar de outro tipo.
Não tenho esperança nenhuma. Este Abelardo era tão especial!
De repente pareceu-lhe ouvir uma voz dentro da cabeça:
– Pois é Alda, o vibrador que a consolou não era um vibrador qualquer, era não só especial, mas único. Guardava nele a essência da voluptuosidade desde tempos imemoriais.
– Hélia, parece-me que não me estou a sentir muito bem. Tenho a impressão de ouvir vozes na cabeça. Vou voltar para casa, tomo um chá e um Xanax e vou ver se acalmo.
– Queres que vá contigo?
– Não, não te incomodes. Apanho um táxi e vou. Táxi! Táxi!.
Parou um táxi, despediram-se e entrou. Sentada continuou a ouvir a voz. Era uma voz calma, pausada e deixava uma sensação de vir de fora do tempo: Esse vibrador, Alda, possui uma história que talvez goste de conhecer.
Indicou a morada ao taxista e encostou-se no banco. Pareceu-lhe até que adormecia.
Entretanto o taxi chegou a casa. Pagou e saiu. Sentia-se um pouco zonza, talvez por ter dormitado. Em casa tirou o casaco, descalçou-se, mudou de roupa e foi à cozinha. Pôs uma chávena com água no microondas para fazer chá. Ia buscar os comprimidos quando a voz de novo lhe apareceu:
– Não tome comprimidos, vão fazer-lhe mal. Sente-se no sofá com o chá e ouça-me.
Cada vez mais intrigada, e até um pouco assustada, sentou-se com a chávena e a saqueta do chá na mão.
– Sabe Alda, o Abelardo estragou-se porque o quis obrigar a penetrar um homem, a única coisa que nunca fez na vida e estava impedido de fazer. Agora que o devolveu ao fabricante irá certamente para o lixo e perder-se-ão, talvez para sempre, as suas virtualidades, a menos que o salve algum poder sobrenatural, o que nem será improvável a atender às vicissitudes por que passou ao longo dos séculos até lhe chegar às mãos.
– Que conversa tão estúpida. Só há vibradores há meia dúzia de anos, não conseguiu impedir-se de dizer em voz alta.
– É verdade, só há vibradores há meia dúzia de anos, mas a borracha com que este vibrador foi feito teve uma adição especial. Proveio de um lote de preservativos usados e recolhidos para reciclagem. Vai concerteza querer saber os pormenores.
– Talvez, pensou intrigada. E a voz prosseguiu:
– Nestes tempos de HIV, James Bond, em quem eu habitava, a conselho insistente do estúdio cinematográfico, resolveu adoptar o uso de preservativo nas suas actividades, e assim, num dia de distracção e grande azáfama, fui levado dentro de um preservativo usado. Foi um acidente sério. Diz-se até que por causa disso o próximo James Bond será casto. O caminho até James Bond foi acidentado e cheio de peripécias. Do que aconteceu ao preservativo conto mais à frente.
Cheguei a James Bond através de uma figurante do seu primeiro filme, e com ele permaneci até à fatídica distracção. Foram tempos bons, belas mulheres, hotéis de luxo, uma vida de correria à roda do mundo, enfim, do melhor que me recordo.
Mas voltando à rapariga, ela tinha sido modelo de Picasso, e num daqueles processos porque a providência me fez passar de geração em geração, a bela moça recebeu-me do pintor e passou-me ao James.
Foi já avançado na idade que Picasso, ao ter relações com a jovem modelo, depositou nela sem o saber a essência da virilidade masculina de que era no sec XX o guardião, numa cadeia que se transmitiu entre artistas e outros homens de génio desde há séculos. Tão infausto acontecimento foi o inicio da conhecida impotência do pintor no final da vida, com as consequências visíveis na sua obra pictórica.
– Começa a interessar-me a história, disse Alda de si para si.
E a voz continuou:
– O percurso desta essência através dos tempos tem despertado curiosidades, sobretudo num Sr. Borges, que se tem esforçado por a conhecer, mas não tem sido fácil de reconstruir, e o próprio tem ainda saltos e lacunas por preencher. Também já não serei de grande ajuda pois sinto a memória a esvair-se, agora que o principal de mim desapareceu. De alguma maneira a senhora é responsável por ter enviado para o lixo parte importante e essencial da virilidade masculina tal como tem sido conhecida até aos nossos dias.
Mas voltemos ao preservativo. Como as exigências explicitas no estúdio cinematográfico eram de reciclar tudo o que fosse reciclável, o preservativo que me continha foi incluído num lote de borracha para esse fim. O lote foi vendido a um fabricante de vibradores e assim me vi dentro de uma dessas peças infernais que só funcionam a pilhas. Eu nunca precisei de pilhas para funcionar pelo que transformei um banal vibrador na peça especial que conheceu.
Cada vez mais intrigada, Alda não resiste e pergunta-se:
– Abelardo, mas Abelardo porquê? Ainda se se chamasse Picasso ou James Bond, percebia-se. E aí a voz continuou:
– O fabricante de vibradores pretendia lançar num mercado tão competitivo como é o dos acessórios de sexo, onde todos são iguais parecendo diferentes, mais um produto que, sendo igual, chamasse sobre si as atenções. Contratou os serviços de uma agência de publicidade da qual recebeu diversas propostas insatisfatórias, até que uma noite lhe ocorreu: pois é, a diferença está no nome. Tinha visto na televisão um programa de um grupo de rapazes a dar pelo nome de Gato Fedorento.
Vibrador com nome era de facto um pouco estranho mas permitia ao possuidor criar uma relação afectiva com o objecto sem precisar estar a imaginar mais nada. Entre os nomes que lhe iam surgindo nenhum parecia suficientemente apelativo até que lhe segredei:
– Abelardo.
– Abelardo? É nome de gente? Ah pois é! É aquele que foi castrado por seduzir a aluna Heloísa, e a família não gostou. É isso mesmo!
Ao outro dia deu instruções ao departamento de promoção. A nova linha de vibradores teria nome e chamar-se-ia “Abelardo, o membro”.
– Podem começar a ter ideias sobre o aspecto gráfico da embalagem, ordenou.
Embalado e anunciado, fui posto à venda na internet com outros vibradores do mesmo lote de borracha, mas os outros não me continham. Ao que sei venderam-se depressa, sem que o nome de baptismo tivesse qualquer interferência nisso. Eu fui comprado pela senhora e tivemos as alegrias de que se recorda. Entretanto aconteceu a desgraça com o seu marido, e agora acabou-se de vez Abelardo.
Alda com um estremecimento, levantou-se e disse alto:
– Vou mesmo tomar um Xanax e ver se durmo. Já ouço vozes na cabeça há tempo de mais, devo estar a ficar maluca.

Epílogo

Devolvido o vibrador ao fabricante, como não funcionava foi separado para reciclagem.
Acabou incluído num lote que serviu para fabricar o boneco E.T. do filme de Spielberg do mesmo nome.
Provavelmente, e a acreditar no filme, a essência do nosso Abelardo estará agora no espaço sideral, quem sabe se ganhando nova vida entre os extra-terrestres.