• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Tag Archives: Almada negreiros

Varinas de Lisboa em poemas de Almada Negreiros e Carlos Queiroz

30 Segunda-feira Out 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Almada negreiros, Carlos Queiroz

E vós varinas que sabeis a sal
e trazeis o mar no vosso avental!
(Almada Negreiros)

 

Mulheres esbeltas de língua afiada e resposta pronta, tanto quanto a memória infantil mo permite recordar, foram por séculos presença assídua nas ruas de Lisboa.
Levando à cabeça a cesta de peixe fresco, ecoavam pelas manhãs da cidade os pregões a anunciá-lo, rivalizando com outras vendedeiras, como o recorda Gomes Leal (1948-1921) no soneto Pregões matinais:

…
De manhã é que passa a leiteirinha,
Com seu pregão chilrado de andorinha,
Passam varinas de gargantas sãs…
…

 

Imagem de propaganda de uma Lisboa popular durante o Estado Novo, surgiram na arte pública por aqui e por ali na sua elegância, decorando entradas e fachadas de prédios na nova Lisboa dos anos 40, transmitindo a imagem sensual que o imaginário popular a pouco e pouco incorporou, e os poetas deram voz, sobretudo David Mourão-Ferreira com Maria Lisboa, tornada famosíssima pelo fado na voz de Amália Rodrigues.
Vinham sobretudo de Alfama, e hoje são apenas uma ténue memória, mesmo para os mais velhos que ainda lá vivem. Encontramos imagens deste mundo urbano nas prosas de cidade de Irene Lisboa (1892-1958), contadas com o pudor e empatia que atravessa toda a sua escrita.
Hoje recordo varinas em dois poemas: Varina de Carlos Queiroz (1909-1949) e Varina de Almada Negreiros (1893-1970).
Se no poema de Carlos Queiroz lemos a mitificação de um tipo humano, com Almada Negreiros estamos no mundo da brincadeira (séria) recusando tal tipo, como matéria para lá do desejo que o mito induz.

 

Varina — poema de Carlos Queiroz

Ó Varina, passa,
passa tu primeiro…
que és a flor da raça,
a mais séria graça
do país inteiro!

Teu orgulho seja
sonora fanfarra,
zimbório igreja!
Que logo te veja
quem entra na Barra.

Lisboa, esquecida
que é porto-de-mar,
fica esclarecida
e reconhecida
se te vê passar.

Dá-lhe a tua graça
clássica e sadia.
Ó varina passa…
na noite da raça
teu pregão faz dia!

Vê que toda a gente
ao ver-te, sorri.
Não sabe o que sente,
mas fica contente
de olhar para ti.

E sobre o que pensa
quem te vê passar,
eterna, suspensa,
acena a imensa
presença do mar!

1929

A Varina — poema de Almada Negreiros

Lá na Ribeira Nova
onde nasce Lisboa inteira
na manhã de cada dia
há uma varina
e se não fosse ela
ai não sei
não sei que seria de mim!
Por ela
fiz dois versos a todas as varinas:
E vós varinas que sabeis a sal
e trazeis o mar no vosso avental!
Acho parecidos estes versos
com as varinas de Portugal.

Uma vez falei-lhe
para ouvi-la
e vê-la
ao pé.
A voz saborosa
os olhos de variar
castanhos de variar
castanhos-escuros de variar
com reflexos de variar
desde o rosa
até ao verde
desde o verde
até ao mar.

Num reflexo refleti:
não dar aquele destino
ao meu destino aqui.

Escrito em 1926

 

Termino com a nota humana do sofrimento que esta dura vida popular consigo trazia, evocada no poema Desenho, também de Carlos Queiroz.

 

Desenho — poema de Carlos Queiroz

Varina
sentada
na areia:
— Que sina
te é dada,
na manhã chegada
com a maré cheia?

— “Canastra vazia,
Barqueiro morrido…”
— Vem da maresia
teu pensar dorido.

Não penses tão claro;
vai à tua lida.
Pensar, é amaro
padecer da vida.

E a vida é sonhada
viagem incerta…
— Varina sentada
na praia deserta!

 

Poemas de Carlos Queiroz transcritos de Desaparecido e Outros Poemas, Livraria Bertrand, Lisboa, 1950.

Poema de Almada Negreiros transcrito de Obras Completas, vol.I, INCM, Lisboa, 1990.

O poema Pregões matinais (citado em fragmento) foi publicado em Gomes Leal, Mefistófeles em Lisboa, 1907.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Jorge Barradas (1894-1971), Varinas de 1930, da coleção do Museu do Chiado.

Antes do poema de Almada Negreiros surge a variação digital sobre um desenho do artista que acompanha a edição referida da sua poesia.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Pessoa e o mistério dos inéditos

07 Quarta-feira Jan 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas

≈ 2 comentários

Etiquetas

Almada negreiros, Fernando Pessoa

Fernando Pessoa 1964

Embora possa parecer redundante apresentar Fernando Pessoa, o universo alargado da web pode trazer ao blog leitores não familiarizados com a sua biografia, daí a pequena resenha em jeito de introdução.

Pessoa às vezes era uma pessoa muito deprimida e por vezes pensava:

Não sou nada/nunca serei nada

…

mas depois mudava, e mais alegre dizia:

Áparte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Isto acontecia quando julgava ser Álvaro de Campos, um engenheiro nascido em Tavira como eu, que escreveu coisas amargas. Outras vezes mais bem disposto o Sr. Pessoa vestia a pele de Alberto Caeiro e imaginava as coisas mais mirabolantes como Tive um sonho como uma fotografia / …, certamente conhecem o resto.

Andava sempre muito distraído com as poesias que tinha na cabeça. Ia a andar, parava, tirava um papelinho do bolso e escrevia o que lhe surgia na cabeça. Gostava de ser muitas pessoas já desde rapaz.

Um dia foi a casa do amigo Almada, pintor e poeta também. Depois de comer pouco porque era magrinho, e beber um bocado, desapareceu e nunca mais se viu.

Foi no outro dia, quando visitava o Museu, que olhando com atenção para a pintura de Almada representando Fernando Pessoa à secretária, o extraordinário aconteceu,

Ouço: Pst, pst, e nem percebo de onde vem. Olho em redor perplexo, pois a sala estava vazia a menos do segurança ao fundo, e então, virando-me para o quadro de novo, a figura de Fernando Pessoa piscou-me o olho, e quando o segurança pareceu ausentar-se, fez-me sinal para me aproximar, e diz-me ele à queima-roupa:

–        Já o tenho visto várias vezes a olhar-me atentamente e tenho tido vontade de lhe falar, mas os seguranças andam sempre por aí de nariz no ar e não me atrevi, mas hoje vi que o dali da porta foi à casa de banho e aproveitei para conversar um pouco.

Entabulámos conversa, e a primeira coisa que lhe perguntei foi porque tinha desaparecido sem dizer nada a ninguém.

–        Naquela festa em casa do Almada tinha bebido um bocado a mais e tive uma ideia fascinante que não queria perder. O meu bloco de bolso estava cheio e toda a gente estava mais ou menos alegre ou a dançar. Para não incomodar  ninguém fui à procura de papel. Abri uma porta e era o estúdio do Almada. Tinha uma tela grande no cavalete onde já estava pintada uma mesa. Devia ser uma natureza morta pois a mesa estava ali em posição com cadeira papel e tinta a servir de modelo. Sentei-me e comecei a escrever, mas devo ter adormecido pois quando acordei estava dentro desta tela onde tenho passado a vida. Não desgosto. As cores são alegres e há sempre muita gente aqui à volta a vê-la.

Continuámos a conversar e a certa altura disse-lhe quanto apreciava a poesia dele e de passagem referi:

– Sabe que andei a ler a sua correspondência?

– O senhor é um bisbilhoteiro, disse com um risinho.

– E encontrei uma carta enviada de Portalegre quando o senhor estava bem bebido, é o Sr. que o diz.

Venerável porção de existência terrena, escreve o senhor ao destinatário, para mais à frente referir: ”Portalegre é um lugar onde tudo quanto um forasteiro pode fazer é cansar-se de não fazer nada. As suas qualidades componentes parecem-me conter (depois de uma profunda e cuidada análise), em quantidades relativas e incertas, calor, frio, semi-espanholismo e nada. …” e acrescenta-lhe um poema para terminar. Bem injusto diga-se de passagem, no que ao Alentejo respeita:

O Alentejo (visto do comboio)

Nada, tendo nada em seu redor

E, de permeio, algumas árvores somente

Nenhuma delas verde claramente

onde nada aparece, rio ou flor.

Se acaso há um inferno, ele aqui está.

Pois, se não aqui, onde o Diabo estará?

O que me fartei de rir ao lê-lo. Gostei sobretudo da “Venerável porção de existência terrena”

– Devo tê-la escrito há muito tempo pois nem me lembro de ter ido ao Alentejo.

A conversa continuou e perguntei-lhe se nunca saía dali.

– Durante o dia, enquanto o museu está aberto, não saio senão as pessoas vinham ver-me e encontravam o quadro com um vazio no meu lugar. Depois de fechar, sobretudo no verão, gosto de ir até ao Chiado e fico dentro da estátua que me fizeram junto à Brasileira vendo quem passa. Sobretudo gosto quando as turistas fazem fotografias agarradas a mim. Estou sempre calado, nunca digo nada. Uma vez uma rapariga sentou-se-me no colo e segredou-me ao ouvido:

–        Gosto tanto de ti! Se fosses de carne e osso casava-me contigo. Quase me derreti com aquela declaração de amor. Era tal qual a a voz da Ofelinha naquela idade, e como eu gostava de ter casado com ela, sabe?

Também li as suas cartas de amor, disse-lhe. As que lhe escreveu e as que recebeu. E não concordo nada consigo nessa de que “Todas as cartas de amor são ridículas. / Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.”

– Não pode ser. Quem teve o atrevimento de as publicar? Isso não se faz. São coisas intimas, não são coisas para toda a gente saber. Mas já que são públicas, o que é que achou? Ela gostava de mim? Ainda não sei de deveria ter casado com ela. A certa altura pensei que podia casar com a filha da minha lavadeira, talvez fosse feliz …

Mas voltando aos passeios. No inverno não vou para o Chiado porque está frio e chove, o que não é nada bom para o reumático que já me vai aparecendo, não sei se da idade, se de estar tanto tempo aqui sentado a esta secretária. Vou então às vezes à estação do metro de Alto de Moinhos ver as pessoas. Mas à hora a que fico livre aqui do museu já há pouca gente a não ser nas noites de futebol e aí sim, é uma alegria. Por acaso não sabe quando é que são os jogos? Como eu aqui não leio jornais nem vejo televisão não sei as datas e só por acaso é que acerto nos dias dos jogos. Mas é um espectáculo que vale a pena. Ainda ontem aconteceu e foi uma festa. Comi e bebi com quem lá estava, o que não me acontecia há anos. E devo ter comido qualquer coisa que me fez mal. Parece-me até que estou a precisar de ir à casa de banho urgentemente. Importa-se de me substituir aqui um bocadinho no quadro?

Devo ter olhado para ele espantado e aterrorizado, pois gargalhou e disse-me:

– Não se assuste, estava só a brincar consigo. Continuando, na estação do metro aquele rapaz, o Julio Pomar, já não me conheceu, mas fez uns desenhos por fotografia, talvez, e saiu-se bem. Gosto de lá estar.

– Já que estamos nesta conversa tão franca posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?

– Claro que pode, se não me apetecer não respondo.

– Qual é o mistério da arca dos seus escritos em que os inéditos nunca mais acabam?

Riu-se com uma risadinha casquinada e respondeu:

– O que pensa que faço sentado a esta secretária? Que escrevo cartas comerciais em inglês? Isso já acabou. Agora quem as escreve é o Bernardo Soares, não sei se conhece.

– Conheço sim, é o do livro que o fez a si famoso no mundo, não é?

– Esse mesmo. Pois as cartas escreve-as ele, eu aqui escrevo, prosa, poesia, o que me passa pela cabeça. Quando tenho oportunidade pego no que escrevi que me agrada e vou até à arca. Ponho os papeis no fundo, remexo-os e no dia seguinte o pessoal que está a decifrar os papeis leva as mãos à cabeça por não saber o que fazer. Aparecem papeis sobre a mesma coisa ligeiramente diferentes pois eu ás vezes esqueço-me do que escrevi e volto a escrever a mesma coisa de forma parecida e eles não decidem qual escolher, o que é natural. O que eu me rio só de pensar na cara deles. Bem gostava de estar lá para ver. Sobretudo quando encontrarem o papel que lá deixei ontem, inspiração de fim de festa.

Olhe, o segurança já vem de volta, vou ter que me calar para não o confundir. Se me ouve a falar ainda toca o alarme assustado, pensando que enlouqueceu, coitado. Volte mais vezes para conversar um pouco.

E voltou à posição em que estava no quadro.

O segurança aproximou-se de mim e com bons modos perguntou:

– O senhor está a sentir-se bem?

– Estou óptimo, porquê?

– Ao longe vi-o fazer gestos e pareceu-me que estava até a falar com o quadro, pelo que pensei que talvez alguma coisa não estivesse bem.

– Está tudo bem, obrigado. Virei costas e continuei a visita.

Depois destes extraordinários acontecimentos fui surpreendido com a noticia de jornal sobre mais um inédito, e não resisti a uma enorme gargalhada. Rezava assim:

Entre os papeis do poeta foi descoberto um inédito.

Numa folha branca aparece, a um terço da altura, o poema descoberto.

Modelo de simplicidade, consiste tão só numa vírgula cortada pela metade. Alvoroçou especialistas com o seu significado.

Foi convocado um congresso. Podem até dia vinte entregar-se comunicações.

Nota iconográfica

A pintura de José de Almada Negreiros (1893-1970),  Retrato de Fernando Pessoa, 1964, pretexto desta conversa pertence à colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Nos 120 anos do nascimento de Almada Negreiros

14 Domingo Abr 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Almada negreiros

Auto-retrato

Entre documento e memória se tem feito a evocação da poesia de Almada Negreiros (1893-1970) aqui no blog.

No momento em que a atenção mediática, e com ela a dos leitores, se volta para a obra do genial mestre, encurto caminho aos interessados em ler o que por aqui há.

Desde logo um documento sonoro histórico: a leitura pelo próprio do Manifesto Anti-Dantas, acrescentado da revelação dos pormenores em torno da sua criação e edição.

almada-negreiros – manifesto anti-dantas lido pelo poeta

Depois, uma pagina de memória pessoal onde a sua presença se cruza.

Mulher sentada

Entre Almada Negreiros e Bicesse – Memória de Carnaval

Encontra-se também a associação entre o mestre e o génio de Camões, no tom brincado que é às vezes o seu, onde nos conta a aventura de Camões e da poesia em Portugal no poema LUÍS, O POETA SALVA A NADO O POEMA.

Luis de CamõesHomenagem de Almada Negreiros a Camões

De cada vez que a vida me leva à estação do Metro do Saldanha, em Lisboa, decorada com obras e frases de Almada Negreiros, paro sempre a pensar numa frase, escrita na parede, e na sua justeza sobre o que fazemos com o tempo, a única coisa que na verdade, nesta vida nos pertence, a qual abre o texto poético, A invenção do Dia Claro, e pode ser lida aqui.

Pausa

Fragmento de A Invenção do Dia Claro

É de novo sobre o tempo e o que com ele fazemos, a reflexão entre o serio e o irónico onde um cheiro de Pessoa surge, que nos traz este Momento de Poesia, com que termino.

Momento de Poesia

Se me ponho a trabalhar
e escrevo ou desenho,
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar pra diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado,
até que cansado me julgo satisfeito;
e o efeito da fadiga
é muito igual à ilusão da satisfação!
Em troca, se vou passear por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito,
sinto-me tão chefe do que é fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos
de uma aflição que não é minha,
dou-me tão perfeitamente conta do que
se passa fora das minhas muralhas
como sou cego ao ler-me ao espelho,
que, sinceramente não sei qual
seja melhor,
se estar sozinho em casa a dar à manivela do mundo,
se ir por aí a ser o rei invisível de tudo o que não é meu.

Escrito em 14 de Dezembro de 1941.

A Sesta

As imagens que acompanham este artigo são variações digitais sobre a obra do Mestre.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Entre Almada (Negreiros) e Bicesse, memória de Carnaval

21 Terça-feira Fev 2012

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poetas e Poemas, Prosas

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Almada negreiros

Tive na vida, até hoje, duas paixões de coup de coeur. A primeira, vão mais de quarenta anos.

Era o Carnaval de 1971. Nesses anos Marcelistas as pessoas abriam as casas a desconhecidos com a maior afabilidade, e as festas privadas de fim-de-semana eram parte integrante do quotidiano de qualquer jovem. Chegado o Carnaval os grupos transformavam-se em multidão.

Naquele sábado combináramos encontrar-nos no atelier de um pintor na baixa. O boca-a-boca: onde vais sábado de Carnaval? transformou o pequeno grupo inicialmente previsto numa multidão que extravasava pela escada da mansarda. Quando chegámos, à entrada  e indiferente a multidão que cirandava, acotovelando-se, encostava-se a mulher dos meus sonhos, embora à data eu não soubesse exactamente como era. Foi o baque da paixão, ali, a iluminar-me a alma.

O caos em redor e a falta de espaço não iam permitir qualquer festa, era preciso encontrar solução alternativa àquela barafunda. Festa tinha que haver. Conferenciámos sobre as alternativas e sugeriu-se a casa da Paula.

– Mas é em Bicesse, alguém lembrou.

– Não faz mal, quantos carros há?

 Havia apenas 2.

– Quem couber vai de carro, quem não couber vai de comboio e vou buscá-los à estacão do Estoril, propôs uma amiga com quem eu ia. E assim se fez. A minha descoberta paixão foi connosco e a festa decorreu com quem quis ir. Durou até bem avançada a manhã. O meu coup de coeur deu em namoro e casamento.

A casa era de Almada Negreiros, e a partir dela  escreveu o poeta AQUI PORTUGAL, poema com que termino esta evocação.

Com ela pretendo lembrar a amiga que, com o seu carro e disponibilidade, permitiu que a festa acontecesse e a paixão de um olhar me fizesse feliz por muitos anos. Lembro-a no éter da net agora que faleceu vitima de cancro da mama.

AQUI PORTUGAL

Aqui Portugal

Bicesse

O Fim-do-Mundo mais perto de

Lisboa a da boa flôrdelis

e

Entre a Serra da Lua (Sintra)

As grutas e necrópole daqueles

Que nascidos em Creta

Passaram em Homero

Em Cristo

E a vista de Roma

Saíram do Mediterrâneo

E aqui ficaram e passaram

Trazendo consigo para toda a parte

A civilização da Liberdade individual

Do Homem

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Almada Negreiros – Manifesto Anti-Dantas lido pelo poeta

19 Quinta-feira Jan 2012

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ 3 comentários

Etiquetas

Almada negreiros

https://s3-eu-west-1.amazonaws.com/viciodapoesiamedia/Almada+Negreiros+-+manifesto+Anti-Dantas.mp3

MANIFESTO ANTI-DANTAS e por extenso

por

José de Almada Negreiros Poeta d’Orpheu Futurista E Tudo

Todos os meus livros devem ser lidos pelo menos duas vezes para os muito inteligente e daqui para baixo é sempre a dobrar.
Basta pum basta!!!
Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!
Abaixo a geração!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!
Uma geração com um Dantas ao leme é uma canoa em seco!
O Dantas é um cigano!
O Dantas é meio cigano!
O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!
O Dantas pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquesas!
O Dantas é um habilidoso!
O Dantas veste-se mal!
O Dantas usa ceroulas de malha!
O Dantas especula e inocula os concubinos!
O Dantas é Dantas!
O Dantas é Júlio!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas fez uma soror Mariana que tanto o podia ser como a soror Inês ou a Inês de Castro, ou a Leonor Teles, ou o Mestre d’Avis, ou a Dona Constança, ou a Nau Catrineta, ou a Maria Rapaz!
E o Dantas teve claque! E o Dantas teve palmas! E o Dantas agradeceu!
O Dantas é um ciganão!
Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!
Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever!
O Dantas é um autómato que deita pra fora o que a gente já sabe o que vai sair… Mas é preciso deitar dinheiro!
O Dantas é um soneto dele-próprio!
O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum.
O Dantas nu é horroroso!
O Dantas cheira mal da boca!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas é o escárnio da consciência!
Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!
O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa!
O Dantas é a meta da decadência mental!
E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas!
E ainda há quem lhe estenda a mão!
E quem lhe lave a roupa!
E quem tenha dó do Dantas!
E ainda há quem duvide que o Dantas não vale nada, e que não sabe nada, e que nem é inteligente, nem decente, nem zero!
Vocês não sabem quem é a soror Mariana do Dantas? Eu vou-lhes contar:
A princípio, por cartazes, entrevistas e outras preparações com as quais nada temos que ver, pensei tratar-se de soror Mariana Alcoforado a pseudo autora daquelas cartas francesas que dois ilustres senhores desta terra não descansaram enquanto não estragaram pra português, quando subiu o pano também não fui capaz de distinguir porque era noite muito escura e só depois de meio acto é que descobri que era de madrugada porque o bispo de Beja disse que tinha estado à espera do nascer do Sol!
A Mariana vem descendo uma escada estreitíssima mas não vem só, traz também o Chamilly que eu não cheguei a ver, ouvindo apenas uma voz muito conhecida aqui na Brasileira do Chiado. Pouco depois o bispo de Beja é que me disse que ele trazia calções vermelhos.
A Mariana e o Chamilly estão sozinhos em cena, e às escuras, dando a entender perfeitamente que fizeram indecências no quarto. Depois o Chamilly, completamente satisfeito, despede-se e salta pela janela com grande mágoa da freira lacrimosa. E ainda hoje os turistas têm ocasião de observar as grades arrombadas da janela do quinto andar do Convento da Conceição de Beja na Rua do Touro, por onde se diz que fugiu o célebre capitão de cavalos em Paris e dentista em Lisboa.
A Mariana que é histérica começa a chorar desatinadamente nos braços da sua confidente e excelente pau de cabeleira soror Inês.
Vêm descendo pla dita estreitíssima escada, várias Marianas, todas iguais e de candeias acesas, menos uma que usa óculos e bengala e ainda toda curvada prá frente o que quer dizer que é abadessa.
E seria até uma excelente personificação das bruxas de Goya se quando falasse não tivesse aquela voz tão fresca e maviosa da Tia Felicidade da vizinha do lado. E reparando nos dois vultos interroga espaçadamente com cadência, austeridade e imensa falta de corda… Quem está aí?… E de candeias apagadas?
– Foi o vento, dizem as pobres inocentes varadas de terror… E a abadessa que só é velha nos óculos, na bengala e em andar curvada prá frente manda tocar a sineta que é um dó d’alma o ouvi-la assim tão debilitada. Vão todas pró coro, mas eis que, de repente, batem no portão sem se anunciar nem limpar-se da poeira, sobe a escada e entra plo salão um bispo de Beja que quando era novo fez brejeirices com a menina do chocolate.
Agora completamente emendado revela à abadessa que sabe por cartas que há homens que vão às mulheres do convento e que ainda há pouco vira um de cavalos a saltar pla janela. A abadessa diz que efectivamente já há tempos que vinha dando pela falta de galinhas e tão inocentinha, coitada, que naqueles oitenta anos ainda não teve tempo pra descobrir a razão da humanidade estar dividida em homens e mulheres. Depois de sérios embaraços do bispo é que ela deu com o atrevimento e mandou chamar as duas freiras de há pouco com as candeias apagadas. Nesta altura esta peça policial toma uma pedaço d’interesse porque o bispo ora parece um polícia de investigação disfarçado em bispo, ora um bispo com a falta de delicadeza de um polícia d’investigação, e tão perspicaz que descobre em menos de meio minuto o que o público já está farto de saber – que a Mariana dormiu com o Noel. O pior é que a Mariana foi à serra com as indiscrições do bispo e desata a berrar, a berrar como quem se estava marimbando pra tudo aquilo. Esteve mesmo muito perto de se estrear com um par de murros na coroa do bispo no que se mostrou de um atrevimento, de uma insolência e de uma decisão refilona que excedeu todas as expectativas.
Ouve-se uma corneta tocar uma marcha de clarins e Mariana sentindo nas patas dos cavalos toda a alma do seu preferido foi qual pardalito engaiolado a correr até às grades da janela gritar desalmadamente plo seu Noel. Grita, assobia e rodopia e pia e rasga-se e magoa-se e cai de costas com um acidente, do que já previamente tinha avisado o público e o pano cai e o espectador também cai da paciência abaixo e desata numa destas pateadas tão enormes e tão monumentais que todos os jornais de Lisboa no dia seguinte foram unânimes naquele êxito teatral do Dantas.
A única consolação que os espectadores decentes tiveram foi a certeza de que aquilo não era a soror Mariana Alcoforado mas sim uma merdariana-aldantascufurado que tinha cheliques e exageros sexuais.
Continue o senhor Dantas a escrever assim que há-de ganhar muito com o Alcufurado e há-de ver que ainda apanha uma estátua de prata por um ourives do Porto, e uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional do “Século” a favor dos feridos da guerra, e a Praça de Camões mudada em Praça Dr. Júlio Dantas, e com festas da cidade plos aniversários, e sabonetes em conta “Júlio Dantas” e pasta Dantas prós dentes, e graxa Dantas prás botas e Niveína Dantas, e comprimidos Dantas, e autoclismos Dantas e Dantas, Dantas, Dantas, Dantas… E limonadas Dantas- Magnésia.
E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões.
E fique sabendo o Dantas que se todos fossem como eu, haveria tais munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar.
Mas julgais que nisto se resume literatura portuguesa? Não Mil vezes não!
Temos, além disto o Chianca que já fez rimas prá Aljubarrota que deixou de ser a derrota dos Castelhanos pra ser a derrota do Chianca.
E as pinoquices de Vasco Mendonça Alves passadas no tempo da avózinha! E as infelicidades de Ramada Curto! E o talento insólito de Urbano Rodrigues! E as gaitadas do Brun! E as traduções só pra homem do ilustríssimos excelentíssimo senhor Mello Barreto! E o frei Matta Nunes Moxo! E a Inês Sifilítica do Faustino! E as imbecilidades do Sousa Costa! E mais pedantices do Dantas! E Alberto Sousa, o Dantas do desenho! E os jornalistas do Século e da Capital e do Notícias e do Paiz e do Dia e da Nação e da República e da Lucta e de todos, todos os jornais! E os actores de todos os teatros! E todos os pintores das Belas-Artes e todos os artistas de Portugal que eu não gosto. E os da Águia do Porto e os palermas de Coimbra! E a estupidez do Oldemiro César e o Dr. José de Figueiredo Amante do Museu e ah oh os Sousa Pinto hu hi e os burros de cacilhas e os menus do Alfredo Guisado! E o raquítico Albino Forjaz de Sampaio, crítico da Lucta a quem Fialho com imensa piada intrujou de que tinha talento! E todos os que são políticos e artistas! E as exposições anuais das Belas-Artes! E todas as maquetas do Marquês de Pombal! E as de Camões em Paris; e os Vaz, os Estrela, os Lacerda, os Lucena, os Rosa, os Costa, os Almeida, os Camacho, os Cunha, os Carneiro, os Barros, os Silva, os Gomes, os velhos, os idiotas, os arranjistas, os impotentes, os celerados, os vendidos, os imbecis, os párias, os ascetas, os Lopes, os Peixotos, os Motta, os Godinho, os Teixeira, os Câmara, os diabo que os leve, os Constantino, os Tertuliano, os Grave, os Mântua, os Bahia, os Mendonça, os Brazão, os Matos, os Alves, os Albuquerques, os Sousas e todos os Dantas que houver por aí!!!!!!!!!
E as convicções urgentes do Homem Cristo Pai e as convicções catitas do Homem Cristo Filho!…
E os concertos do Blanc! E as estátuas ao leme, ao Eça e ao despertar e a tudo! E tudo o que seja arte em Portugal! E tudo! Tudo por causa do Dantas!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mas atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia – se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!
Morra o Dantas, morra! Pim!
José de Almada Negreiros
Poeta d’Orpheu
Futurista E Tudo
1915

Nota

Na gravação aqui disponibilizada o poeta esclarece no final as circunstâncias da edição original do manifesto Anti-Dantas e os motivos da sua composição.

O auto-retrato do artista que acompanha o poema foi publicado no nº 2 da revista ATHENA editada por Fernando Pessoa em 1924.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Almada Negreiros — A invenção do dia claro (fragmento)

31 Sábado Dez 2011

Posted by viciodapoesia in Convite à fotografia, Poetas e Poemas

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Almada negreiros

Desejo aos leitores do blog, para 2012, toda a felicidade com que nem se atreveram a sonhar.

Entrei numa livraria. Puz-me a contar os livros que ha para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria.

Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido., e nesta convicção, resolvi fotografar gaivotas.

Deixo-vos com algumas dessas fotos e despeço-me deste 2011 com um fragmento de A INVENÇÃO DO DIA CLARO de Almada Negreiros (1893 – 1970).

A invenção do dia claro (inicio do texto)

Entrei numa livraria. Puz-me a contar os livros que ha para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria.

Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido.

No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito bem vestidas de quem precisa salvar-se.

* * * * *

Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a sciencia que trata da vida; era justamente do que eu necessitava–pôr sciencia na minha vida.

Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não ganhei nada.

Disseram-me que era necessario estar já iniciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo á imagem e semelhança de Deus. Não basta?

* * * * *

Imaginava eu que havía tratados da vida das pessoas, como ha tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o tratamento que ha para os animaes domesticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que ha!

Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como ha hostias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hostia. Um livro pequenino, com duas paginas, como uma hostia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.

* * * * *

Não achas, Mãe? Por exemplo. Ha um cão vadio, sujo e com fome, cuida-se deste cão e ele deixa de ser vadio, deixa de estar sujo e deixa de ter fome. Até as crianças já lhe fazem festas.

Cuidaram do cão porque o cão não sabe cuidar de si–não saber cuidar de si é ser cão.

Ora eu não queria que cuidassem de mim, mas gostava que me ajudassem, para eu não estar assim, para que fosse eu o dono de mim, para que os que me vissem dissessem: Que bem que aquele soube cuidar de si!

Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: olha uma arvore! quando ha uma arvore. Assim, inteiro, sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!

* * * * *

Mas eu andei a procurar por todas as vidas uma para copiar e nenhuma era para copiar.

Como o livro, as pessoas tinham principio, meio e fim. A principio o livro chamava-me, no meio o livro deu-me a mão, no fim fiquei com a mão suada do livro de me ter estendido a mão.

Talvez que nos outros livros… mas os titulos dos livros são como os nomes das pessoas–não quere dizer nada, é só para não se confundir…

* * * * *

Na montra estava um livro chamado «O lial conselheiro». Escrito antigamente por um Rei dos Portuguezes! Escrito de uma só maneira para todas as especies de seus vassalos!

Bemdito homem que foi na verdade Rei! O Mestre que quere que eu seja Mestre!

Eu acho que todos os livros deviam chamar-se assim: «O lial conselheiro»! Não achas, Mãe?

O Mestre escreveu o que sabia–por isso ele foi Mestre. As palavras tornaram presentes como o Mestre fazia atenção. Estas palavras ficaram escritas por causa dos outros tambem. Os outros aprendiam a ler para chegarem a Mestres–era com esta intenção que se aprendia a ler antigamente.

* * * * *

Sonhei com um paíz onde todos chegavam a Mestres. Começava cada qual por fazer a caneta e o aparo com que se punha á escuta do universo; em seguida, fabricava desde a materia prima o papel onde ia assentando as confidencias que recebia directamente do universo; depois, descia até ao fundo dos rochedos por causa da tinta negra dos chócos; gravava letra por letra o tipo com que compunha as suas palavras; e arrancava da arvore a prensa onde apertava com segurança as descobertas para irem ter com os outros. Era assim que neste país todos chegavam a Mestres. Era assim que os Mestres iam escrevendo as frases que hão-de salvar a humanidade.

* * * * *

Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa–salvar a humanidade.

 

———-   fim do extracto ————

Nota

Conservei  a ortografia da edição original de 1921

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Homenagem de Almada a Camões

10 Quinta-feira Jun 2010

Posted by viciodapoesia in Crónicas

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Almada negreiros, Camões, Faria e Sousa, Poesia


Comemorar Camões é ler-lhe a poesia, fazê-la nossa, brincar com ela.

Passam hoje 440 anos sobre a sua morte, e o poeta continua vivo, na nossa companhia, permitindo-nos o prazer quase quotidiano da sua poesia.

É de Almada Negreiros, esse português sem mestre como Augusto-França lhe chamou, que me socorro para assinalar a data.

No tom brincado que é ás vezes o seu, aqui temos a aventura de Camões e da poesia em Portugal.


LUÍS, O POETA

SALVA A NADO O POEMA


Era uma vez / um português / de Portugal.

O nome Luis / há-de bastar / toda a nação / ouviu falar.

Estala a guerra / e Portugal / chama Luis / para embarcar.

Na guerra andou / a guerrear / e perde um olho / por Portugal.

Livre da morte / pôs-se a contar / o que sabia / de Portugal.

Dias e dias / grande pensar / juntou Luis / a recordar.

Ficou um livro / ao terminar / muito importante / para estudar.

Ia num barco / ia no mar / e a tormenta / vá d’estalar.

Mais do que a vida / há-de guardar /o barco a pique / Luis a nadar.

Fora da água / um braço no ar / na mão o livro / há-de salvar.

Nada que nada / sempre a nadar / livro perdido / no alto mar.

– Mar ignorante / que queres roubar? / a minha vida / ou este cantar?

A vida é minha / ta posso dar / mas este livro / há-de ficar.

Estas palavras / hão de durar / por minha vida / quero jurar.

Tira-me as forças / podes matar / a minha alma / sabe voar.

Sou português / de Portugal / depois de morto / não vou mudar.

Sou português / de Portugal / acaba a vida / e sigo igual.

Meu corpo é Terra / de Portugal / e morto é ilha / no alto mar.

Há portugueses /a navegar / por sobre as ondas / me hão-de achar.

A vida morta / aqui a boiar / mas não o livro / se há-de molhar.

Estas palavras / vão alegrar / a minha gente / de um só pensar.

À nossa terra / irão parar / lá toda a gente / há-de gostar.

Só uma coisa / vão olvidar: / o seu autor / aqui a nadar.

É fado nosso / é nacional / não há portugueses / há Portugal.

Saudades tenho / mil e sem par / saudade é vida / sem se lograr.

A minha vida / vai acabar / mas estes versos / hão-de gravar.

O livro é este / é este o cantar / assim se pensa / em Portugal.

Depois de pronto / faltava dar / a minha vida / para o salvar.

Escrito em Madrid. Dezembro de 1931.


Como é sabido, a poesia lírica de Camões não foi publicada em livro em vida do autor, a menos de poucas peças incluídas em obras de terceiros, nem são conhecidos manuscritos autógrafos dos poemas.

Corre a lenda a partir de palavras de Diogo do Couto na Década VIII, que enquanto o poeta preparava Os Lusídas para edição, “foi escrevendo muito em um livro que ia fazendo, que intitulava Parnaso de Luis de Camões, livro que lhe furtaram e nunca pude saber no reino dela, por muito que inquiri, e foi furto notável …”.

Tal Parnaso … nunca foi encontrado. Os poemas circulavam de mão em mão e quando em 1595, 15 anos após a morte do poeta, Manuel de Lima preparou a 1ªedição das Rhythmas de Luís de Camões para o editor Estêvão Lopes, na ausência de manuscritos autógrafos, os editores socorreram-se das cópias que circulavam, sem segura atribuição de proveniência. Esta edição contemplou os poemas que à data conseguiram reunir.

A 2ªedição 3 anos depois, em 1598, acrescentou 63 novas composições e suprimiu 3. Uma 3ª edição em 1616 incluiu novas peças.

Na 4ª edição das Rimas em 1668 voltam a ser acrescentadas 60 obras poéticas de diversos géneros.

Faria e Sousa, em edição póstuma (1685-1689), acrescentou ao que era tomado pelo cânone da Lírica de Camões, 76 novas poesias. A novidade desta edição prende-se com o circunstanciado comentário que acompanha cada poesia, fazendo da obra, ainda hoje, uma aliciante experiência de leitura.

A admiração apaixonada de Faria e Sousa pela obra de Camões, levou-o a reconhecidos exageros de atribuição de autoria com o caso mais notável de erro em relação a Diogo Bernardes.

Não pararam aqui os acréscimos à obra do poeta.

A chamada edição Jorumenha no séc. XIX (1860-1869) duzentos anos depois da edição Faria e Sousa, traz mais 50 sonetos e 52 peças de géneros diversos.

A este conjunto sobre o qual se debruçam os especialistas questionando a autoria de algumas poesias, porque anteriormente publicadas em nome de outros, ou com características de estilo não atribuíveis a Camões, acrescentou-se o conhecimento público em 1922 do que é conhecido como Cancioneiro Fernandes Tomás, ainda hoje por estudar aprofundadamente e onde abundam composições atribuídas expressamente a Camões. Outros Cancioneiros têm sido entretanto estudados ao sabor das curiosidades e estratégias pessoais dos investigadores.

Passaram mais de 4 séculos sobre a morte de Luís de Camões e hoje está ainda longe de existir qualquer edição da Lírica que possa ser tomada como canónica. É uma vergonha que o país, para o seu poeta nacional, não tenha encontrado os meios, as vontades e recursos, para fixar de forma incontroversa o conjunto da obra do poeta, e que até hoje ninguém tenha conhecido e estudado tão profundamente a obra de Camões como Faria e Sousa no século XVII.

Que panorama triste para situação da obra do poeta com quem Portugal se comemora.

Algumas edições da Lírica surgiram ao longo de século XX. Nenhuma compulsou com critérios legitimados, a obra conhecida e as criações dispersas pelos Cancioneiros de mão que dormem nas bibliotecas do mundo, com vista a apurar o que é de Camões, o que não é de Camões e o que talvez seja.

Para o curioso leitor, em minha opinião de apaixonado pela Lírica camoneana, a mais proba das edições com grafia modernizada, é a LÍRICA COMPLETA DE LUÍS DE CAMÕES, em 3 volumes, publicada em 1980/81 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda e preparada por Maria de Lurdes Saraiva.

É uma edição inclusiva onde se publica tudo o que alguma vez foi atribuído a Camões, com excepções mínimas justificadas em prefácio. O conjunto vem separado e anotado entre o que tem sido considerado de autoria genuína, e aqueles poemas cuja autoria tem sido controvertida, independentemente da opinião da organizadora, deixando esta em  notas circunstanciadas as suas opiniões.

Esta edição apresenta pela primeira vez uma tentativa de organização cronológica das poesias, agrupadas estas por géneros líricos.

A edição estará provavelmente esgotada, como é costume, mas como teve tiragem elevada (10.000ex.) é talvez facil ao interessado encontrá-la em alfarrabista por módica quantia.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Visitas ao Blog

  • 2.038.715 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 873 outros subscritores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • A valsa — poema de Casimiro de Abreu
  • A separação num poema de Heinrich Heine e a paráfrase de Gonçalves Crespo
  • LISBOA por Sophia de Mello Breyner Andresen

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Site no WordPress.com.

  • Seguir A seguir
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 873 outros seguidores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Personalizar
    • Seguir A seguir
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    %d bloggers gostam disto: