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E vós varinas que sabeis a sal
e trazeis o mar no vosso avental!
(Almada Negreiros)

 

Mulheres esbeltas de língua afiada e resposta pronta, tanto quanto a memória infantil mo permite recordar, foram por séculos presença assídua nas ruas de Lisboa.
Levando à cabeça a cesta de peixe fresco, ecoavam pelas manhãs da cidade os pregões a anunciá-lo, rivalizando com outras vendedeiras, como o recorda Gomes Leal (1948-1921) no soneto Pregões matinais:


De manhã é que passa a leiteirinha,
Com seu pregão chilrado de andorinha,
Passam varinas de gargantas sãs…

 

Imagem de propaganda de uma Lisboa popular durante o Estado Novo, surgiram na arte pública por aqui e por ali na sua elegância, decorando entradas e fachadas de prédios na nova Lisboa dos anos 40, transmitindo a imagem sensual que o imaginário popular a pouco e pouco incorporou, e os poetas deram voz, sobretudo David Mourão-Ferreira com Maria Lisboa, tornada famosíssima pelo fado na voz de Amália Rodrigues.
Vinham sobretudo de Alfama, e hoje são apenas uma ténue memória, mesmo para os mais velhos que ainda lá vivem. Encontramos imagens deste mundo urbano nas prosas de cidade de Irene Lisboa (1892-1958), contadas com o pudor e empatia que atravessa toda a sua escrita.
Hoje recordo varinas em dois poemas: Varina de Carlos Queiroz (1909-1949) e Varina de Almada Negreiros (1893-1970).
Se no poema de Carlos Queiroz lemos a mitificação de um tipo humano, com Almada Negreiros estamos no mundo da brincadeira (séria) recusando tal tipo, como matéria para lá do desejo que o mito induz.

 

Varina — poema de Carlos Queiroz

Ó Varina, passa,
passa tu primeiro…
que és a flor da raça,
a mais séria graça
do país inteiro!

Teu orgulho seja
sonora fanfarra,
zimbório igreja!
Que logo te veja
quem entra na Barra.

Lisboa, esquecida
que é porto-de-mar,
fica esclarecida
e reconhecida
se te vê passar.

Dá-lhe a tua graça
clássica e sadia.
Ó varina passa…
na noite da raça
teu pregão faz dia!

Vê que toda a gente
ao ver-te, sorri.
Não sabe o que sente,
mas fica contente
de olhar para ti.

E sobre o que pensa
quem te vê passar,
eterna, suspensa,
acena a imensa
presença do mar!

1929

A Varina — poema de Almada Negreiros

Lá na Ribeira Nova
onde nasce Lisboa inteira
na manhã de cada dia
há uma varina
e se não fosse ela
ai não sei
não sei que seria de mim!
Por ela
fiz dois versos a todas as varinas:
E vós varinas que sabeis a sal
e trazeis o mar no vosso avental!
Acho parecidos estes versos
com as varinas de Portugal.

Uma vez falei-lhe
para ouvi-la
e vê-la
ao pé.
A voz saborosa
os olhos de variar
castanhos de variar
castanhos-escuros de variar
com reflexos de variar
desde o rosa
até ao verde
desde o verde
até ao mar.

Num reflexo refleti:
não dar aquele destino
ao meu destino aqui.

Escrito em 1926

 

Termino com a nota humana do sofrimento que esta dura vida popular consigo trazia, evocada no poema Desenho, também de Carlos Queiroz.

 

Desenho — poema de Carlos Queiroz

Varina
sentada
na areia:
— Que sina
te é dada,
na manhã chegada
com a maré cheia?

— “Canastra vazia,
Barqueiro morrido…”
— Vem da maresia
teu pensar dorido.

Não penses tão claro;
vai à tua lida.
Pensar, é amaro
padecer da vida.

E a vida é sonhada
viagem incerta…
— Varina sentada
na praia deserta!

 

Poemas de Carlos Queiroz transcritos de Desaparecido e Outros Poemas, Livraria Bertrand, Lisboa, 1950.

Poema de Almada Negreiros transcrito de Obras Completas, vol.I, INCM, Lisboa, 1990.

O poema Pregões matinais (citado em fragmento) foi publicado em Gomes Leal, Mefistófeles em Lisboa, 1907.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Jorge Barradas (1894-1971), Varinas de 1930, da coleção do Museu do Chiado.

Antes do poema de Almada Negreiros surge a variação digital sobre um desenho do artista que acompanha a edição referida da sua poesia.