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Não tendo existido surrealismo na União Soviética, os textos de Danilo Harms (1905-1942) possuem características que para o surrealismo remetem.
O deslocamento da realidade e da lógica surgem eivados de um sarcasmo, mais que de ironia, empurrando a imaginação para o inesperado de associações que subvertem o mundo conhecido ou esperado.
Os textos, situando-se muitas vezes na fronteira da prosa com a sua descrição detalhada de um mundo imaginado, e da poesia onde a arte da síntese se move, levam-nos por caminhos de interrogação sobre o real e o absurdo, questionando a lógica associada à concatenação dos acontecimentos e factos.
Nesta pequena escolha, começo com o nascimento do poeta narrado pelo próprio.
Agora vou contar-vos como nasci, como cresci e como se revelaram em mim os primeiros indícios de génio. Nasci duas vezes. Eis como tudo aconteceu.
O meu papá estava com a minha mamã em 1902, mas os meus progenitores trouxeram-me à luz do dia apenas em finais de 1905 porque o papá exigia que o seu filho nascesse obrigatoriamente na passagem do ano. O papá calculou que a concepção tinha de acontecer no dia 1 de Abril e, por isso, apenas nesse dia abordou a mamã no sentido de conceberem juntos uma criança.
A primeira vez que o papá abordou a mamã foi no dia1 de Abril de 1903. Havia muito que a mamã esperava este momento e ficou muito contente. O papá, porém, estava numa disposição jocosa e não se conteve que não dissesse à mamã:”Ah, ah, primeiro de Abril!”
A mamã ficou terrivelmente ofendida e, nesse dia, não permitiu que o papá a conhecesse. Foi obrigado a esperar pelo ano seguinte.
Em1904, no dia 1 de Abril, o papá voltou a abordar a mamã com a mesma proposta. A mamã, porém, não se esquecera do caso do ano anterior e disse que não estava interessada em ficar numa situação estúpida e não acedeu, de novo, às pretensões do papá. Por mais que o papá se enfurecesse, nada feito.
Somente um ano depois o meu papá conseguiu exortar a minha mamã a conceber-me.
Por conseguinte, a minha concepção deu-se a 1 de Abril de 1905.
Apesar disso, todos os cálculos do papá saíram furados porque nasci prematuro, quatro meses antes do prazo.
O papá encrespou-se de tal maneira que a parteira que assistia ao parto se atrapalhou e se pôs a enfiar-me de volta para donde tinha saído.
Um conhecido nosso que estava presente, estudante da Academia Médica Militar, declarou que não seria possível enfiar-me de volta. No entanto, apesar das palavras do estudante, acabaram por me enfiar e, como de resto viria a verificar-se mais tarde, enfiar enfiaram, mas à toa, no sítio errado.
Nisto, armou-se uma balbúrdia terrível. A parturiente grita: “Dêem-me o meu filho!” Respondem-lhe: “O seu filho está dentro de si!” ” Como? – grita a parturiente. – Como é que o meu filho pode estar dentro de mim se acabei de o parir?!” “Mas – dizem à parturiente -, se calhar está enganada, não?” “Como?! – grita a parturiente. – Como é que posso enganar-me? Ainda agora vi a criança com os meus próprios olhos, aqui em cima do lençol!” “É verdade – dizem à parturiente -, mas talvez ele tenha rastejado para algum lado.” Em resumo, nem sequer sabiam o que dizer à parturiente.
Ora a parturiente grita e exige ali o seu filho.
Foram obrigados a chamar um médico experiente. O médico experiente examinou a parturiente e, abrindo os braços de espanto, encontrou no entanto uma solução e deu à parturiente uma boa dose de magnésia. A parturiente defecou e, deste modo, saí à luz pela segunda vez.
Nisto o papá voltou e enfureceu-se, dizendo que era impossível considerar nascimento uma coisa destas, que eu ainda não era um ser humano mas um semi-embrião e que era necessário voltar a enfiar-me para qualquer lado ou, então, colocar-me na incubadora.
E colocaram-me na incubadora.
Não nos esclarecendo sobre quando saiu da incubadora, nunca saberemos se no próximo domingo haverá ou não que assinalar um aniversário do escritor. Continuemos mais um pouco na sua companhia, e depois de termos travado conhecimento com o poeta à nascença, leia-se um curto texto, talvez metafísico, sobre o peso da fé, nesta quadra em que ela nos acompanha.
Um homem deitou-se crente e acordou descrente.
Felizmente, havia no quarto deste homem uma balança decimal médica, e ele tinha o habito de se pesar todos os dias, de manhã e à noite. Assim, pesara-se na véspera, ao deitar, e a balança marcava 4 puds e 21 libras. Na manhã seguinte, ao acordar descrente, o homem voltou a pesar-se e a balança marcava 4 puds e 13 libras. “Daqui a conclusão: a minha fé pesava aproximadamente 8 libras”, disse o homem.
Depois desta pequena amostra poderá o leitor descobrir mais onde estes textos se encontram.
Os textos transcritos pertencem a A VELHA E OUTRAS HISTÓRIAS de Danilo Harms, publicado por Assírio & Alvim em tradução de Filipe Guerra e Nina Guerra, em 2007.
Esta edição contém uma esclarecedora Introdução de Filipe Guerra sobre a vida e a obra do autor.