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Pelos caminhos volto / à procura de Sancho / para de novo Sancho / saber-me e conferir-me / com dobrado prazer.
Assim termina o Solilóquio da Renúncia , uma das 21 glosas poéticas de Carlos Drummond de Andrade a um conjunto de 21 desenhos de Cândido Portinari sobre cenas do Dom Quixote de Cervantes.
Foram leitores do Brasil os últimos a visitar o blog ontem. Do Brasil foram hoje os primeiros leitores a chegar. E lembrando o Brasil me chegou como prenda de Natal este belo livro. Mais que falar dele, o melhor é mostrá-lo. Eis o conjunto dos desenhos, em reproduções de fraca qualidade, infelizmente, e algumas das glosas poéticas de Carlos Drummond de Andrade.
Na ambivalência que me habita, umas vezes Sancho, outras Quixote, vejamos se Volto pelos caminhos / à procura de mim / que de mim se perdera / …
Sagração
Rocinante
pasta a erva do sossego.
A Mancha inteira é calma.
A chama oculta arde
nesta fremente Espanha interior.
De giolhos e olhos visionários
me sagro cavaleiro
andante, amante
de amor cortês a minha dama,
cristal de perfeição entre perfeitas.
Daqui por diante
é girar, girovagar, a combater
o erro, o falso, o mal de mil semblantes
e recolher, no peito em sangue,
a palma esquiva e rara
que há-de cingir-me a fronte
por mão de Amor-amante.
A fama, no capim
que Rocinante pasta,
se guarda para mim, em tudo a sinto,
sede que bebo, vento que me arrasta.
Exdruxularias de Amor Penitente
Neste só, nestas brenhas
Aonde não chega a música
da voz de Dulcinéia
que por mim não suspira
e mal sabe que existo,
vou fazendo penitência
de amor.
Vou carpir minhas penas,
vou comover as rochas
com lavá-las de lágrimas,
vou rompê-las a grito,
ensandecer as águias,
cativar hipogrifos
e acarinhar serpentes,
vou
arrancar minhas vestes
de ferro e de grandeza
Esacar os calções
e de gâmbias de fora,
documentos do sexo
cinicamente à mostra,
para que aves e plantas
desfrutem o espectáculo,
farei micagens mil,
plantarei bananeiras
e darei cambalhotas,
saltos mortais vitais
de amor
de amor
de amor.
Disquisição na Insónia
Que é loucura ser cavaleiro andante
ou segui-lo, como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco,
e me sabendo tal, sem grão de siso,
sou – que doideira – um louco de juizo.
Solilóquio da Renúncia
Volto pelos caminhos
à procura de mim
que de mim se perdera
ao me sentir governo.
Governar, que besteira,
afrouxelado cárcere
de insónias e cuidados.
Que vale policiar
o interesse dos homens,
puni-los ou premiá-los,
se do poder, escravo
se tornou Sancho, o livre
lavrador de outros tempos,
que em seu boi, seu rafeiro,
suas roças meninas
e tudo que cabia
num alqueire de terra
fundara seu império
e nele
governava a si mesmo?
Pelos caminhos volto
à procura de Sancho
para de novo Sancho
saber-me e conferir-me
com dobrado prazer.
Noticia bibliográfica.
O conjunto de desenhos de Cândido Portinari, a lápis de cor sobre papel, foi feito na sequência do conselho médico ao pintor, de abandonar as tintas por correr risco de intoxicação fatal.
As glosas poéticas de Carlos Drummond de Andrade foram publicadas no livro com o título D. Quixote: Cervantes, Portinari, Drummond, em 1º edição no Brasil, em 1972, pela editora Diagraphis, numa edição de 200 exemplares, assinada, e hoje raridade bibliográfica.
As transcrições dos poemas e a reprodução dos desenhos foram feitas a partir da 1ªedição portuguesa, Publicações D. Quixote, Lisboa, 2005.