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Paul Klee - Erro em verde 1939

Contribuo para a reflexão pré-eleitoral que os portugueses hoje vivem, com a pintura alegórica de Paul Klee (1879-1940) que segue. Nela observamos de um lado o gigante liberal, à direita, enfrentando outros animais de corpulência diversa arrumados mais ou menos entre o centro e o lado esquerdo.

Paul Klee - O concerto dos partidos 1907

Os tempos correm perigosamente para o que Jorge Luis Borges (1899-1986) escreveu em 1976 no prólogo ao seu livro A Moeda de Ferro:

Sei-me de todo indigno de opinar em matéria política, mas talvez me seja perdoado acrescentar que descreio da democracia, esse curioso abuso da estatística (destaque meu).

Olhamos a campanha eleitoral na televisão, ouvimos quem se propõe governar-nos, cá ou em Estrasburgo, e ocorre-nos o fabuloso Pacheco inventado por Eça de Queiroz (1845-1900) (carta VIII de A Correspondência de Fradique Mendes).

O personagem é uma caricatura da inanidade parlamentar e pública que, infelizmente, e ainda hoje, vai ao encontro de exemplares vivos.

 

Vale a pena a transcrição da primeira intervenção parlamentar de Pacheco:

De pé, com o dedo espetado (jeito que foi sempre muito seu), Pacheco afirmou num tom que traía a segurança do pensar e do saber íntimo: “Que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!” Era pouco, decerto:— mas a Câmara compreendeu bem que, sob aquele curto resumo, havia um mundo, todo um formidável mundo, de ideias sólidas. Não volveu a falar durante meses — mas o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto mais invisível e inacessível se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu ser. O único recurso que restou então aos devotos desse imenso talento (que já os tinha, incontáveis) foi contemplar a testa de Pacheco — como se olha para o céu pela certeza que Deus está por trás, dispondo. A testa de Pacheco oferecia uma superfície escanteada, larga e lustrosa. E muitas vezes, junto dele, conselheiros e directores-gerais balbuciavam maravilhados: “Nem é necessário mais! Basta ver aquela testa!”

Ficaria por aquí, não fora Pacheco, o da testa, ter inspirado um mais pungente que sarcástico poema a Alexandre O’Neill (1924-1986): No Reino do Pacheco:

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos,

E a vida? Não a vivemos.

Na verdade, vivemos a vida, não o nosso sonho dela.

Sou pai de um desses jovens qualificados que procuram no mundo a vida que cá não há, e quando surge a chamada de decidir do futuro(?) dentro das regras, interrogo-me sobre o como destes últimos quarenta anos nos trouxe até aqui, sem esquecer o país em que nasci e cresci. Não foi feito o melhor. Mas foi feito o possível? E agora, será diferente?

Pensava no que nos angustía, na vida que temos e não queremos e dei de olhos num poema de um jovem do Uganda, Peter Kagayi (1986).

 

Em 2065

Nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos

As estradas serão iguais

Os políticos serão iguais

Kampala será igual

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos

 

E irei a Mulago para tratar o meu reumatismo e os médicos dirão que não há cura

E o homem do taxi-bicicleta irá recomendar-me um curandeiro da zona Oeste do Nilo

E irei para a escola do meu neto assim como o meu avô fez

E irei ser mandado embora por excesso de idade

 

O presidente vai ser o mesmo que temos hoje, e desde uma cadeira de rodas irá proferir o seu Discurso Nacional

Só que o filho dele, feito entretanto Marechal, irá lê-lo no lugar dele

E falará no seu lugar

E mandará no seu lugar

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos.

 

E Makerere estará mexida por motins e o General-Major “Não-sei-quantos”

Ordenará abrir fogo contra os estudantes que reivindicam feijões fritos

Pois isso será um perigo para a segurança nacional

E U.R.A. irá taxar o ar que respiramos, as vezes que os casais se beijam,

Os nossos excrementos, as palavras que proferimos e a maneira como morremos

E determinará quem vai para o céu e quem vai para o inferno e irá taxar os seus corpos de modo diferente

 

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos.

 

E os professores estarão a pedir nas ruas para alimentarem as suas famílias

As suas esposas irão dormir com turistas para conseguirem levar uma vida decente

As leis serão a mesma sombra que os colonialistas deixaram atrás

Com sistemas demasiado arcaicos e demasiado alheados para proporcionarem alguma coisa de essencial

E os estudantes ficarão reduzidos a couves e batatas assim como se encontram hoje em dia

E a proporção entre os desempregados e os aspirantes a trabalho será de nove a um assim como é hoje

E assim a vida irá avançar

E assim nada mudará

 

E nós seremos as pessoas desse futuro

Construídas num presente que não promete assim tanto

Excepto envelhecer

Estaremos aí com a esperança de morrer em breve.

 

Depois da transcrição parcial deste terrível poema, deixo-vos com o Reino do Pacheco em véspera de ganhar novo fôlego democrático. Amanhã regresso ao mundo harmonioso do amor feliz.

 

No Reino do Pacheco

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos,

E a vida? Não a vivemos.

 

Querer viver (deixai-me rir!)

seria muito exigir…

Vida mental? Com certeza!

Vida por detrás da testa

será tudo o que nos resta?

Uma ideia é uma ideia

— e até parece nossa! —

mas quem viu uma andorinha

a puxar uma carroça?

 

Se à ideia não se der

o braço que ela pedir,

a ideia, por melhor

que ela seja ou queira ser,

não será mais que bolor,

pão abstracto ou mulher

sem amor!

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos.

E a vida? Não a vivemos.

 

Neste reino de Pacheco

— do que era todo testa,

do que já nada dizia,

e só sorria, sorria,

do que nunca disse nada

a não ser prá galeria,

que também não o ouvia,

do que, por detrás da testa,

tinha a testa luzidia,

neste Reino de Pacheco,

ó meus senhores que nos resta

senão ir aos maus costumes,

às redundâncias, bem-pensâncias,

com alfinetes e lumes,

fazer rebentar a besta,

pô-la de pernas pró ar?

 

Por isso, aqui, acolá

tudo pode acontecer,

que as ideias saem fora

da testa de cada qual

para que a vida não seja

só mentira, só mental…

 

Publicado pela primeira vez em Poemas com Endereço,1962. Transcrito de Poesias Completas 1951/1986, INCM, 3ªedição revista e aumentada, Braga, 10 de Junho, Dia de Portugal, 1980.

 

O poema de Peter Kagayi foi transcrito de Próximo Futuro, nº14, Outubro 2013, publicação em formato de jornal editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Termino com o que poderá ser uma imagem da angústia portuguesa ao votar, pintura também de Paul Klee.

Paul Klee - Ensimesmamento 1919