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Aparte algumas aventuras galantes de que deixou eco na sua poesia, terá Paulino Cabral de Vasconcelos (1719-1789), Abade de Jazento  tido paixão por uma Nize, cujas vicissitudes podemos seguir através de variados sonetos reunidos na sua obra.

 

Sendo Nize um nome convencional na poesia portuguesa do século XVIII, os variados poemas dedicados a uma Nize podem sê-lo às mais variadas mulheres. Lendo os sonetos dedicados pelo Abade de Jazente a Nize, estes parecem ser dedicados sempre à mesma mulher. Acrescenta esta convicção a carta onde explicitamente menciona esta sua paixão ao amigo a quem escreve num momento de melancolia.

 

Nestes sonetos seguimos as vicissitudes de uma relação, desde o ardor inicial da paixão à indiferença e despedida.

 

Os sonetos encontram-se disseminados ao longo da obra publicada, sem indicação de data. Apenas o assunto permite introduzir alguma cronologia, o que vamos tentar na sequência da sua transcrição.

O elevado número de sonetos com Nize como pretexto, torna incomportável com o formato do blog a transcrição da totalidade. Vejamos, por isso, algumas etapas principais desta paixão:

 

*

Eu como, eu bebo, eu durmo, e sem receio

Do que há de vir a ser, a vida passo,

Ora de Nize no gentil regaço,

Ora das Musas no sonoro enleio.

 

Às vezes pesco, às vezes jogo, ou leio,

E torres vãs também no vento faço;

Depois me vou meter naquele espaço,

Onde Descartes tinha o seu passeio.

 

De lá mil orbes vejo, e de improviso

Soltando ao pensamento as vagas velas,

Turbilhões de cristal sem medo piso.

 

E pondo-me por cima das estrelas,

Descubro a terra em baixo, e me dá riso

Contemplando do mundo bagatelas.

 

**

Enxuga o pranto ó Nize; e sossegado

Afouta mostra o rosto belo à gente;

Que um sucesso no mundo tão frequente,

Não deve ser por ti tão lamentado.

 

Tinha de ser: torne-se a culpa ao fado:

Tudo se esqueça, e viva-se contente;

Que em parte se confessa delinquente,

Quem não sabe ocultar o seu cuidado.

 

Não tens que recear; que à mocidade

Se perdoa um descuido; e sendo bela,

Até se lhe disfarça uma maldade.

 

A honra é nome vão, que só disvela

As rústicas vilãs: e a Nize idade

Toma os casos de amor por bagatela.

 

***

Vinde cá doces musas, que somente

Divertir-me convosco agora intento,

Pois neste solitário apartamento

Não é fácil sem vós viver contente.

 

Ao doce som da cítara cadente

Daremos aos penhascos sentimento,

Pulsando vós harmónico instrumento,

E eu cantando o mal, que o peito sente.

 

Tocai qu’eu principio: uma saudade

Expressada nas frases d’harmonia,

Compaixão às montanhas persuade.

 

Mas ah! Quanto me engana a fantasia;

Pois movendo os penedos à piedade,

Mover não sei de Nize a rebeldia.

 

****

Eu que cantei na verde mocidade

Essa ardente paixão, que amor se chama;

Que a tanto homem de bem, que a tanta Dama,

Tira o repouso, e rouba a liberdade:

 

Que cantei desse Nume sem piedade

As setas, o carcás, e aquela chama,

Que abrasa aos Sábios, que os heróis inflama;

Que acende até no trono à Magestade:

 

Eu que da bela Nize o génio inquieto

Quis me servisse no verdor dos anos

Aos versos meus de principal objecto;

 

Eu, conduzido enfim dos próprios danos,

Mudei de assunto, e em vez de um louco afecto

Canto agora as lições dos desenganos.

 

Poemas transcritos de Poesias, texto integral da 1ªedição, INCM, Lisboa 1985.

 

A imagem de abertura respeita a uma pintura de Jean Frederic Schall (1752-1825).