Etiquetas
Transcrevo a seguir uma canção de amor do cancioneiro goliárdico Carmina Cantabrigiencia.
Estes cancioneiros, escritos em latim medieval, e acompanhados da forma de os cantar, gozam de uma aura de licença decorrente da suposta vida dos seus autores, ainda que em muitos poemas não fujam à sátira sobre vícios e desmandos da época. São na sua maioria canções anónimas, e seriam cantadas por estudantes universitários da Europa medieval, que, não exactamente diminuídos de posses, circulariam de universidade em universidade, levando uma vida de estúrdia, repartida entre comes e bebes, mulheres, e jogo, a atender ao teor de algumas das canções conhecidas.
Talvez o mais conhecido destes cancioneiros seja Carmina Burana, do qual noutro artigo falei. O cancioneiro onde se encontra o poema de hoje é mais antigo e conhecido como Carmina Cantabrigiencia — Canções Cantabrigenses ou de Cambridge, assim chamado por pertencer à universidade de Cambridge.
Iam, Dulcíssima Amica, Venito
Vem agora, doce amiga,
a meu coração tão cara!
Vem agora a minha casa,
para ti toda enfeitada…
Há véus que pendem do tecto;
e há cadeiras, e almofadas;
e também não faltam flores,
por entre ervas perfumadas…
A mesa já está servida,
de iguarias carregada;
e haverá límpido vinho,
e tudo o que mais te agrada…
Ouvirás, ao som da flauta,
doces músicas tocadas;
por um moço e uma donzela
belas canções entoadas…
Ele canta ao som da cítara,
ela na lira embalada…
E os servos trazem taças
com bebidas aromáticas…
—”Agrada-me mais que a mesa,
A agradável sobremesa;
Mais que a rica pitança,
A amorosa confiança.”
Vem agora, minha irmã,
acima de tudo amada,
ó clara luz dos meus olhos,
parte maior da minh’alma!
—”Sempre vivi na floresta,
Não amei lugares de festa;
Evitei sempre o gentio,
E das gentes me desvio.”
Meu amor não queiras tardar
Empenhemos-nos em amar.
Sem ti viver é bem duro,
O nosso amor está maduro.
Porquê, amiga, entreter,
Se por fim se irá fazer?
O teu que fazer acelera,
Pois eu já não tenho espera.
Carmina Cantabrigiencia, tradução de David Mourão-Ferreira versos 1-20, 25-28 in Vozes da Poesia Europeia – I.
Os restantes versos do poema são tradução minha a partir de versão castelhana, e apresentam-se em itálico no poema.
Para os leitores curiosos, tanto do original latino do poema, como de outra poesia goliardica, desde que leiam castelhano, encontram um manancial na edição Poesia Goliardica, tradução de Miguel Requena, edição Alcantilado, Barcelona, 2003 .
A abrir, a imagem de A alcova, pintura de Arpad Szenes (1897-1985).