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Vem já, doce amiga, vem — um poema de Carmina Cantabrigiencia

08 Domingo Set 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Medieval

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Carmina Cantabrigiencia

Hoje, qualquer manual prático de sedução que se leve a sério refere a importância de um ambiente aprazível e de conforto, onde a música e o que comer e beber têm importância fundamental para o sucesso do embate amoroso.

Isto que a moderna psicologia da sexualidade recomenda, vamos encontrar num poema de quase mil anos num cancioneiro pertença da Universidade de Cambridge, conhecido como Carmina Cantabrigiencia. 

O poema cujo primeiro verso é Iam, dulcis amica, venito, em latim medieval, relata o aparato de sedução montado por alguém que pretende convencer ao acto amoroso uma donzela:

1

Vem já, doce amiga, vem

   só a ti amo, meu bem.

Vem, entra em meus aposentos,

   já repletos de ornamentos.

 

2

Tenho divãs preparados,

   há soberbos cortinados;

Enchem a casa as flores

   e seus delicados odores.

 

3

Já está a mesa posta,

   de belos manjares composta;

De famosos vinhos forrada

   e tudo o mais que te agrada.

 

E o poema prossegue enunciando outros prazeres até apresentar o argumento amoroso:

…

7

Vem já amiga e amada,

   sobre todas estimada;

És de meus olhos a luz,

   na vida o que me seduz.

 

Estando a donzela talvez reticente ao assédio, o poeta remata, abrindo o jogo:

…

10

Porquê, amiga, entreter

   se por fim o hás-de fazer?

O que farás acelera,

   pois já não aguento a espera.

 

 

Os Carmina Cantabrigiencia são uma colecção medieval de poemas da tradição goliárdica à semelhança dos famosos Carmina Burana embora em muito menor número.

Apresento uma versão total e rimada deste poema, com o número 33 na colecção dos Carmina Cantabrigiencia, chamado pelo editor do manuscrito Karl Breul, INVITATIO AMICE. Nesta minha versão, confrontada com versões rimadas em espanhol e inglês, na impossibilidade óbvia da tradução palavra a palavra, procurei captar na rima o balanço do original, respeitando o desenvolvimento do poema e a equivalência possível nos argumentos da sedução.

David Mourão-Ferreira traduz 6 quadras do poema (Quadras 1-5 e 7) em Imagens da Poesia Europeia I, as quais transcrevo no final.

 

 

Carmina Cantabrigiencia poema 33

Convite à amiga

 

1

Vem já, doce amiga, vem

   só a ti amo, meu bem.

Vem, entra em meus aposentos,

   já repletos de ornamentos.

 

2.

Tenho divãs preparados,

   há soberbos cortinados;

Enchem a casa as flores

   e seus delicados odores.

 

3

Já está a mesa posta,

   de belos manjares composta;

De famosos vinhos forrada

   e tudo o mais que te agrada.

 

4

Soam doces sinfonias 

   e ouvem-se as charamelas.

Donzel e douta donzela

   entoam músicas belas.

 

5

Ele a viluela afeiçoa,

   ela a lira tange e soa;

Cálices servem criados

   com licores apreciados.

 

6

— Agrada-me, mais que a mesa,

   a agradável sobremesa;

 Mais que a rica pitança

   a amorosa esperança.

 

7

Vem já amiga e amada,

   sobre todas estimada;

És de meus olhos a luz,

   na vida o que me seduz.

 

8

— Sempre vivi na floresta,

   nunca amei lugares de festa;

Evitei sempre o gentio

   e das gentes me desvio.

 

9

Amor meu, não queiras tardar;

   entreguemo-nos a amar.

Sem ti viver é bem duro,

   e o nosso amor está maduro.

 

10

Porquê, amiga, entreter

   se por fim o hás-de fazer?

O que farás acelera,

   pois já não aguento a espera.

 

Versão de Carlos Mendonça Lopes

 

 

Original do poema em latim medieval incluído em Carmina Cantabrigiencia com o número 33:

 

 

INVITATIO AMICE

 

1

lam, dulcis amica, venito,

quam sicut cor meum diligo

Intra in cubiculum meum,

ornamentis cunctis onustum.

 

2

Ibi sunt sedilia strata 

et domus velis ornata,

Floresque in domo sparguntur

herbeque fragrantes miscentur.

 

3

Est ibi mensa apposita

universis cibis onusta

Ibi clarum vinum abundat

et quidquid te, cara, delectat.

 

4

Ibi sonant dulces simphonie,

inflantur et altius tibie;

Ibi puer et docta puella 

pangunt tibi carmina bella

 

5

Hie cum plectro citharam tangit,

ilia melos cum lira pangit

Portantque ministri pateras

pigmentatis poculis plenas. 

 

6

Non me iuvat tantum convivium

quantum post dulce colloquium,

Nec rerum tantarum ubertas

ut dilecta familiaritas.

 

7

Jam nunc veni, soror electa 

et pre cunctis mihi dilecta.

Lux mee clara pupille

parsque maior anime mee.

 

8

Ego fui sola in silva

et dilexi loca secreta; 

Frequenter effugi tumultum

et vitavi populum multum.

 

9

Karissima, noli tardare;

studeamus nos nunc amare,

Sine te non potero vivere:

iam decet amorem perficere.

 

10

Quid iuvat differre, electa,

que sunt tamen post facienda?

Fac cita quod eris factura,

in me non est aliqua mora.

 

in The Cambridge Songs, A Goliard’s Song Book of the XII century, edited by Karl Breul, Cambridge, at the University Press, 1915.

 

 

Leia-se a terminar, a versão parcial do poema por David Mourão-Ferreira (quadras 1-5 e 7) incluída em Imagens da Poesia Europeia I:

 

Vem agora, doce amiga,

a meu coração tão cara!

Vem agora a minha casa,

para ti toda enfeitada…

 

Há véus que pendem do tecto;

e há cadeiras, e almofadas;

e também não faltam flores,

por entre ervas perfumadas…

 

A mesa já está servida,

de iguarias carregada;

e haverá límpido vinho,

e tudo o que mais te agrada…

 

Ouvirás, ao som da flauta,

doces músicas tocadas;

por um moço e uma donzela 

belas canções entoadas…

 

Ele canta ao som de cítara,

ela na lira embalada…

E os servos trazem taças 

com bebidas aromáticas…

 

Vem agora, minha irmã,

acima de tudo amada,

ó clara luz dos meus olhos,

parte maior da minh’alma.

 

in Imagens da Poesia Europeia I, Colóquio Letras 166/167, FCG, Lisboa, 2004.

 

 

Na imagem da miniatura persa do séc. XVI que abre o artigo podemos bem imaginar, pelas expressões de relutante prazer da rapariga e firmeza prazenteira e polida do rapaz, o casal protagonista do poema de caminho para o cenário de prazer que o poema antecipa: Vem já, doce amiga, vem / só a ti amo, meu bem. / Vem, entra em meus aposentos, / já repletos de ornamentos. / … / Porquê, amiga, entreter / se por fim o hás-de fazer? / O que farás acelera, / pois já não aguento a espera.

 

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Canção de Amor — Anónimo séc X-XI

25 Domingo Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Raros/Curiosos

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Arpad Szenes, Carmina Cantabrigiencia, Poesia Goliárdica

Arpad Sczenes - A alcova 1935

Transcrevo a seguir uma canção de amor do cancioneiro goliárdico Carmina Cantabrigiencia.

Estes cancioneiros, escritos em latim medieval, e acompanhados da forma de os cantar, gozam de uma aura de licença decorrente da suposta vida dos seus autores, ainda que em muitos poemas não fujam à sátira sobre vícios e desmandos da época. São na sua maioria canções anónimas, e seriam cantadas por estudantes universitários da Europa medieval, que, não exactamente diminuídos de posses, circulariam de universidade em universidade, levando uma vida de estúrdia, repartida entre comes e bebes, mulheres, e jogo, a atender ao teor de algumas das canções conhecidas.

Talvez o mais conhecido destes cancioneiros seja Carmina Burana, do qual noutro artigo falei. O cancioneiro onde se encontra o poema de hoje é mais antigo e conhecido como Carmina Cantabrigiencia — Canções Cantabrigenses ou de Cambridge, assim chamado por pertencer à universidade de Cambridge.

 

 

Iam, Dulcíssima Amica, Venito

 

Vem agora, doce amiga,

a meu coração tão cara!

Vem agora a minha casa,

para ti toda enfeitada…

 

Há véus que pendem do tecto;

e há cadeiras, e almofadas;

e também não faltam flores,

por entre ervas perfumadas…

 

A mesa já está servida,

de iguarias carregada;

e haverá límpido vinho,

e tudo o que mais te agrada…

 

Ouvirás, ao som da flauta,

doces músicas tocadas;

por um moço e uma donzela

belas canções entoadas…

 

Ele canta ao som da cítara,

ela na lira embalada…

E os servos trazem taças

com bebidas aromáticas…

 

—”Agrada-me mais que a mesa,

A agradável sobremesa;

Mais que a rica pitança,

A amorosa confiança.”

 

Vem agora, minha irmã,

acima de tudo amada,

ó clara luz dos meus olhos,

parte maior da minh’alma!

 

—”Sempre vivi na floresta,

Não amei lugares de festa;

Evitei sempre o gentio,

E das gentes me desvio.”

 

Meu amor não queiras tardar

Empenhemos-nos em amar.

Sem ti viver é bem duro,

O nosso amor está maduro.

 

Porquê, amiga, entreter,

Se por fim se irá fazer?

O teu que fazer acelera,

Pois eu já não tenho espera.

 

Carmina Cantabrigiencia, tradução de David Mourão-Ferreira versos 1-20, 25-28 in Vozes da Poesia Europeia – I.

 

Os restantes versos do poema são tradução minha a partir de versão castelhana, e apresentam-se em itálico no poema.

 

Para os leitores curiosos, tanto do original latino do poema, como de outra poesia goliardica, desde que leiam castelhano,  encontram um manancial na edição Poesia Goliardica, tradução de Miguel Requena, edição Alcantilado, Barcelona, 2003 .

 

A abrir, a imagem de A alcova, pintura de Arpad Szenes (1897-1985).

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