Etiquetas
Hoje, qualquer manual prático de sedução que se leve a sério refere a importância de um ambiente aprazível e de conforto, onde a música e o que comer e beber têm importância fundamental para o sucesso do embate amoroso.
Isto que a moderna psicologia da sexualidade recomenda, vamos encontrar num poema de quase mil anos num cancioneiro pertença da Universidade de Cambridge, conhecido como Carmina Cantabrigiencia.
O poema cujo primeiro verso é Iam, dulcis amica, venito, em latim medieval, relata o aparato de sedução montado por alguém que pretende convencer ao acto amoroso uma donzela:
1
Vem já, doce amiga, vem
só a ti amo, meu bem.
Vem, entra em meus aposentos,
já repletos de ornamentos.
2
Tenho divãs preparados,
há soberbos cortinados;
Enchem a casa as flores
e seus delicados odores.
3
Já está a mesa posta,
de belos manjares composta;
De famosos vinhos forrada
e tudo o mais que te agrada.
E o poema prossegue enunciando outros prazeres até apresentar o argumento amoroso:
…
7
Vem já amiga e amada,
sobre todas estimada;
És de meus olhos a luz,
na vida o que me seduz.
Estando a donzela talvez reticente ao assédio, o poeta remata, abrindo o jogo:
…
10
Porquê, amiga, entreter
se por fim o hás-de fazer?
O que farás acelera,
pois já não aguento a espera.
Os Carmina Cantabrigiencia são uma colecção medieval de poemas da tradição goliárdica à semelhança dos famosos Carmina Burana embora em muito menor número.
Apresento uma versão total e rimada deste poema, com o número 33 na colecção dos Carmina Cantabrigiencia, chamado pelo editor do manuscrito Karl Breul, INVITATIO AMICE. Nesta minha versão, confrontada com versões rimadas em espanhol e inglês, na impossibilidade óbvia da tradução palavra a palavra, procurei captar na rima o balanço do original, respeitando o desenvolvimento do poema e a equivalência possível nos argumentos da sedução.
David Mourão-Ferreira traduz 6 quadras do poema (Quadras 1-5 e 7) em Imagens da Poesia Europeia I, as quais transcrevo no final.
Carmina Cantabrigiencia poema 33
Convite à amiga
1
Vem já, doce amiga, vem
só a ti amo, meu bem.
Vem, entra em meus aposentos,
já repletos de ornamentos.
2.
Tenho divãs preparados,
há soberbos cortinados;
Enchem a casa as flores
e seus delicados odores.
3
Já está a mesa posta,
de belos manjares composta;
De famosos vinhos forrada
e tudo o mais que te agrada.
4
Soam doces sinfonias
e ouvem-se as charamelas.
Donzel e douta donzela
entoam músicas belas.
5
Ele a viluela afeiçoa,
ela a lira tange e soa;
Cálices servem criados
com licores apreciados.
6
— Agrada-me, mais que a mesa,
a agradável sobremesa;
Mais que a rica pitança
a amorosa esperança.
7
Vem já amiga e amada,
sobre todas estimada;
És de meus olhos a luz,
na vida o que me seduz.
8
— Sempre vivi na floresta,
nunca amei lugares de festa;
Evitei sempre o gentio
e das gentes me desvio.
9
Amor meu, não queiras tardar;
entreguemo-nos a amar.
Sem ti viver é bem duro,
e o nosso amor está maduro.
10
Porquê, amiga, entreter
se por fim o hás-de fazer?
O que farás acelera,
pois já não aguento a espera.
Versão de Carlos Mendonça Lopes
Original do poema em latim medieval incluído em Carmina Cantabrigiencia com o número 33:
INVITATIO AMICE
1
lam, dulcis amica, venito,
quam sicut cor meum diligo
Intra in cubiculum meum,
ornamentis cunctis onustum.
2
Ibi sunt sedilia strata
et domus velis ornata,
Floresque in domo sparguntur
herbeque fragrantes miscentur.
3
Est ibi mensa apposita
universis cibis onusta
Ibi clarum vinum abundat
et quidquid te, cara, delectat.
4
Ibi sonant dulces simphonie,
inflantur et altius tibie;
Ibi puer et docta puella
pangunt tibi carmina bella
5
Hie cum plectro citharam tangit,
ilia melos cum lira pangit
Portantque ministri pateras
pigmentatis poculis plenas.
6
Non me iuvat tantum convivium
quantum post dulce colloquium,
Nec rerum tantarum ubertas
ut dilecta familiaritas.
7
Jam nunc veni, soror electa
et pre cunctis mihi dilecta.
Lux mee clara pupille
parsque maior anime mee.
8
Ego fui sola in silva
et dilexi loca secreta;
Frequenter effugi tumultum
et vitavi populum multum.
9
Karissima, noli tardare;
studeamus nos nunc amare,
Sine te non potero vivere:
iam decet amorem perficere.
10
Quid iuvat differre, electa,
que sunt tamen post facienda?
Fac cita quod eris factura,
in me non est aliqua mora.
in The Cambridge Songs, A Goliard’s Song Book of the XII century, edited by Karl Breul, Cambridge, at the University Press, 1915.
Leia-se a terminar, a versão parcial do poema por David Mourão-Ferreira (quadras 1-5 e 7) incluída em Imagens da Poesia Europeia I:
Vem agora, doce amiga,
a meu coração tão cara!
Vem agora a minha casa,
para ti toda enfeitada…
Há véus que pendem do tecto;
e há cadeiras, e almofadas;
e também não faltam flores,
por entre ervas perfumadas…
A mesa já está servida,
de iguarias carregada;
e haverá límpido vinho,
e tudo o que mais te agrada…
Ouvirás, ao som da flauta,
doces músicas tocadas;
por um moço e uma donzela
belas canções entoadas…
Ele canta ao som de cítara,
ela na lira embalada…
E os servos trazem taças
com bebidas aromáticas…
Vem agora, minha irmã,
acima de tudo amada,
ó clara luz dos meus olhos,
parte maior da minh’alma.
in Imagens da Poesia Europeia I, Colóquio Letras 166/167, FCG, Lisboa, 2004.
Na imagem da miniatura persa do séc. XVI que abre o artigo podemos bem imaginar, pelas expressões de relutante prazer da rapariga e firmeza prazenteira e polida do rapaz, o casal protagonista do poema de caminho para o cenário de prazer que o poema antecipa: Vem já, doce amiga, vem / só a ti amo, meu bem. / Vem, entra em meus aposentos, / já repletos de ornamentos. / … / Porquê, amiga, entreter / se por fim o hás-de fazer? / O que farás acelera, / pois já não aguento a espera.