Etiquetas
Contrariamente à voz corrente, guardei do estudo de Os Lusíadas no Liceu, a memória de longos trechos e um gosto pelo poema, sempre renovado de cada vez que nele me perco.
Em Os Lusíadas, poema épico à maneira dos clássicos Ilíada, Odisseia e Eneida, conta Camões (1524(?)-1580) a história de Portugal até à sua época e o detalhe da aventura da descoberta do caminho por mar até à Índia.
Como dispositivo narrativo para descrever a história passada de Portugal ao rei de Calecute nos Cantos III e IV, coloca o poeta o relato na boca de Vasco da Gama, o chefe da armada que descobriu o caminho maritImo para a Índia:
Canto III
III
Prontos estavam todos escutando
O que o sublime Gama contaria,
Quando depois de um pouco estar cuidando,
Alevantado o rosto, assim dizia:
– “Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
Da minha gente a grã genealogia;
Nao me mandas contar estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a glória.
Ao longo do Canto III assistimos ao relato dos acontecimentos respeitando à formação de Portugal e consolidação geográfica do território até final da primeira dinastia. É nesse canto que encontramos o episódio de Inês de Castro
Estava linda Inês …
No Canto IV são relatadas as peripécias das conquistas e derrotas no norte de África até à preparação e partida das naus que viriam a descobrir o caminho para a Índia através do oceano Atlântico.
Como é sabido, as matérias primas e artigos de luxo produzidos no Oriente e sumamente apreciados pelos poderosos ocidentais, o equivalente da alta costura francesa, perfumes e champanhe, etc, de hoje, chegavam às cortes e sociedades europeias por terra, vendidas através da Republica de Veneza, à qual aportavam por demoradas e perigosas viagens através de territórios em grandes parte desérticos. A descoberta de uma via marítima para a realização deste comércio, controlada por Portugal, deu ao país a riqueza e o esplendor de que ainda não se refez no século XXI.
Mas voltando a Camões e ao seu poema, no final do canto IV encontra-se a mais intemporal e por isso mesmo eterna, formulação poética da ambivalência entre ambição humana e gosto pela aventura e risco, conhecida como a fala do Velho do Restelo. Por tal modo famosa que passou para o imaginário popular o epíteto de Velho do Restelo para todo aquele que perante desafios repletos de riscos, aconselham prudência e tento na ambição.
Antes de se ouvir o velho, é ainda Vasco da Gama quem fala, relatando como a população de Lisboa acorreu à praia do Restelo, onde hoje se encontra a famosa Torre de Belém, precisamente a assinalar esta partida, despedindo-se de quem partia.
São versos de uma pungência e actualidade tais que voltaram a ser sentidos e chorados quando do cais da Rocha em Lisboa partiam os navios carregados de soldados para combater nas guerras de África nos anos 60 do século XX.
Feita a descrição nas estrofes LXXXVIII a XCIII, segue-se a entrada na narrativa do velho do Restelo e a sua intemporal reflexão sobre a gloria de mandar, a vã cobiça, por tal forma que
Nenhum cometimento alto e nefando, / Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração! / Mísera sorte! Estranha condição!”
As imagens que acompanham o artigo são de pinturas de Turner (1755-1851): Naufrágio de navio de escravos e O grande canal de Veneza.
Pingback: Doutor Allan Roberto inventa boato da própria morte para ressuscitar na mídia –