Etiquetas

Arpad Sczenes -Conversação IV 1949Quem tem de amores o tempo e da razão o tormento, esquece quanto o pensamento se engana em questões de coração. Vem isto a propósito de um famoso soneto de Camões onde o poeta reflecte sobre o amor idealizado e de como só pensar não satisfaz um coração amante.

Nestas coisas do amor parece-me que o muito analisar, conversar, reflectir e esmiuçar, complica mais do que esclarece. Saber deixar o tempo pulir a aspereza que a vida em nós eriça, acaba por ser a mais sábia forma de equilibrar o amor imaginado com a realidade que ele oferece. Mas voltando a Camões, como nos fala então o poeta?

Começa por afirmar: Transforma-se o amador na cousa amada, / Por virtude do muito imaginar, e a certa altura interroga-se: Que mais deseja o corpo de alcançar? Certamente não será rebolar-se apenas com ideias, diria eu, o que afinal o poeta confirma ao concluir o poema afirmando: [E] o vivo e puro amor de que sou feito, / Como a matéria simples busca a forma.

Calo-me e deixo o poeta falar.

Transforma-se o amador na cousa amada,

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho, logo, mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada.

 

Se nela está minha alma transformada,

Que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si somente pode descansar,

Pois consigo tal alma está liada.

 

Mas esta linda e pura semideia,

Que, como o acidente em seu sujeito,

Assim co’a alma minha se conforma,

 

Está no pensamento como ideia;

[E] o vivo e puro amor de que sou feito,

Como a matéria simples busca a forma.

 

Luís de Camões, edição Lobo Soropita, 1595.

 

Num outro soneto igualmente famoso — Pede o desejo, Dama, que vos veja — dá-nos Camões  exactamente a contraparte do imaginado, na manifestação do desejo de ver a quem se ama.

 

Pede o desejo, Dama, que vos veja:

Não entende o que pede; está enganado.

É este amor tão fino e tão delgado,

Que quem o tem não sabe o que deseja.

 

Não há cousa a qual natural seja,

Que não queira perpétuo seu estado.

Não quer logo o desejo o desejado,

Porque não falte nunca onde sobeja.

 

Mas este puro afeito em mim se dana:

Que, como a grave pedra tem por arte

O centro desejar da natureza,

 

Assim meu pensamento (pela parte

Que vai tomar de mim, terrestre [e] humana)

Foi, Senhora, pedir esta baixeza.

 

Luís de Camões, edição Lobo Soropita, 1595.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Arpad Sczenes (1897-1985), Conversação IV, de 1949.