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Quem tem de amores o tempo e da razão o tormento, esquece quanto o pensamento se engana em questões de coração. Vem isto a propósito de um famoso soneto de Camões onde o poeta reflecte sobre o amor idealizado e de como só pensar não satisfaz um coração amante.
Nestas coisas do amor parece-me que o muito analisar, conversar, reflectir e esmiuçar, complica mais do que esclarece. Saber deixar o tempo pulir a aspereza que a vida em nós eriça, acaba por ser a mais sábia forma de equilibrar o amor imaginado com a realidade que ele oferece. Mas voltando a Camões, como nos fala então o poeta?
Começa por afirmar: Transforma-se o amador na cousa amada, / Por virtude do muito imaginar, e a certa altura interroga-se: Que mais deseja o corpo de alcançar? Certamente não será rebolar-se apenas com ideias, diria eu, o que afinal o poeta confirma ao concluir o poema afirmando: [E] o vivo e puro amor de que sou feito, / Como a matéria simples busca a forma.
Calo-me e deixo o poeta falar.
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co’a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
Luís de Camões, edição Lobo Soropita, 1595.
Num outro soneto igualmente famoso — Pede o desejo, Dama, que vos veja — dá-nos Camões exactamente a contraparte do imaginado, na manifestação do desejo de ver a quem se ama.
Pede o desejo, Dama, que vos veja:
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.
Não há cousa a qual natural seja,
Que não queira perpétuo seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Porque não falte nunca onde sobeja.
Mas este puro afeito em mim se dana:
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da natureza,
Assim meu pensamento (pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre [e] humana)
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.
Luís de Camões, edição Lobo Soropita, 1595.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Arpad Sczenes (1897-1985), Conversação IV, de 1949.
e um poema lindo
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