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Afastamento e dor de ausência, amor, distância, beleza lembrada, mais que idealizada: Tais asas dá o desejo ao pensamento!
De tudo a que o amor aspira, contado no superlativo da singularidade da amada, se faz a mais bela das odes de Camões, [Pode um desejo imenso].
Ode VI da edição de 1598 das Rimas
Pode um desejo imenso
arder no peito tanto
que à branda e à viva alma o fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto,
e purifique em tanta alteza o esprito
com olhos imortais
que faz que leia mais do que vê escrito.
Que a flama que se acende
alto tanto alumia
que, se o nobre desejo ao bem se estende
que nunca viu, a sente claro dia;
e lá vê do que busca o natural,
a graça, a viva cor,
noutra espécie milhor que a corporal.
Pois vós, ó claro exemplo
de viva fermosura,
que de tão longe cá noto e contemplo
n’alma, que este desejo sobe e apura;
não creais que não vejo aquela imagem
que as gentes nunca vêem,
se de humanos não têm muita ventagem.
Que, se os olhos ausentes
não vêem a compassada
proporção, que das cores excelentes
de pureza e vergonha é variada;
da qual a Poesia, que cantou
até ‘qui só pinturas,
com mortais fermosuras igualou;
se não vêem os cabelos
que o vulgo chama de ouro,
e se não vêem os claros olhos belos,
de quem cantam que são do Sol tesouro,
e se não vêem do rosto as excelências,
a quem dirão que deve
rosa, cristal e neve as aparências;
vêem logo a graça pura,
a luz alta e severa,
que é raio da divina fermosura
que n’alma imprime e fora reverbera,
assi como cristal do Sol ferido,
que por fora derrama
a recebida flama, esclarecido.
E vêem a gravidade
com a viva alegria,
que misturada tem, de qualidade
que ūa da outra nunca se desvia;
nem deixa ūa de ser arreceada,
por leda e por suave,
nem outra, por ser grave, muito amada.
E vêem do honesto siso
os altos resplandores,
temperados co doce e ledo riso,
a cujo abrir abrem no campo as flores;
as palavras discretas e suaves,
das quais o movimento
fará deter o vento e as altas aves;
dos olhos o virar,
que torna tudo raso,
do qual não sabe o engenho divisar
se foi por artifício, ou feito acaso;
da presença os meneios e a postura,
o andar e o mover-se,
donde pode aprender-se fermosura.
Aquele não sei quê,
que aspira não sei como,
que, invisível saindo, a vista o vê,
mas para o compreender não acha tomo;
o qual toda a Toscana poesia,
que mais Febo restaura,
em Beatriz nem em Laura nunca via;
em vos a nossa idade,
Senhora, o pode ver,
se engenho e ciência e habilidade
igual à fermosura vossa der,
como eu vi no meu longo apartamento,
qual em ausência a vejo.
Tais asas dá o desejo ao pensamento!
Pois se o desejo afina
ūa alma acesa tanto
que por vós use as partes da divina,
por vós levantarei não visto canto,
que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante;
que o nosso claro Tejo
envolto um pouco vejo e dissonante.
O campo não o esmaltam
flores, mas só abrolhos
o fazem feio; e cuido que lhe faltam
ouvidos para mim, para vós olhos.
Mas faça o que quiser o vil costume;
que o sol, que em vós está,
na escuridão dará mais claro lume.
Transcrito de Lírica Completa III, edição de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, Lisboa, 1981.
Nota ortográfica
Substituí na transcrição vêm por vêem.
A 3ªpessoa do plural do presente indicativo do verbo Ver vem escrito vêm na edição referida acima, por razões que desconheço.
Que prazer ler algo assim durante uma tarde de trabalho! Abraços!
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“Aquele não sei quê,
que aspira não sei como”…
Obrigada pela paz e prazer que o seu blogue transmite.
Luna
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Comove-me o seu comentário, obrigado!
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