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Desde que foi escrito, Cântico Negro de José Régio (1901-1969) permanece como o grito da juventude à procura de si e da sua singularidade:
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!
O poeta publicou-o no seu primeiro livro Poemas de Deus e o do Diabo em 1925.
Lembro-me de ter quinze anos e ter balbuciado em delíquio poético um
Corro,
Corro,
porquê, para onde?
Não sei!
…
É desta dúvida que assalta cada adolescente quando começa a ter consciência de si, que o poema superiormente nos fala e grita:
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Segue-se a recusa de um mundo que insiste em fazer-nos todos iguais:
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
As dúvidas, as incertezas, os sonhos, todos os sonhos, lá estão:
Eu amo o Longe e a Miragem,
E na fúria de tudo começar de novo, fazendo tábua rasa do que encontrou no mundo ao chegar, proclama:
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
…
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Depois destes pequenos comentários vamos ao poema lido por João Villaret na memorável sessão de 1958 no Teatro S. Luís em Lisboa.
Transcrevo a versão definitiva do poema publicada na edição de 1951 de Poemas de Deus e o do Diabo, a qual difere ligeiramente da versão lida apaixonadamente de João Villaret.
Cântico Negro
“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: “vem por aqui”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!
Poesia FILOSóFICA !!!!
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Lindoo0….
Realmente um GRITO!
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