• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Tag Archives: José Régio

Ricardo Reis — Nunca a alheia vontade, inda que grata, cumpras por própria

21 Domingo Fev 2016

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Curvo Semedo, Fernando Pessoa, Filinto Elísio, George de La Tour, José Régio, La Fontaine, Ricardo Reis

George de La Tour (1593-1652)- Ler a Sina (1632-1635) 600pxDe vez em quando Pessoa: hoje um convite assinado Ricardo Reis para a afirmação do eu independente.

Num mundo amplamente condicionante das escolhas de cada um por modas, juízos sociais e pressões afectivas, afirmar o eu é uma tarefa que só na aparência se tem por conseguida. Antes de escolher, olhamo-nos no espelho dos outros, por mais que nos confortemos com a ilusão da nossa singularidade.

 

 

116

Nunca a alheia vontade, inda que grata,

Cumpras por própria. Manda no que fazes,

Nem de ti mesmo servo.

Ninguém te dá quem és. Nada te mude.

Teu íntimo destino involuntário

Cumpre alto. Sê teu filho

 

19-11-1930

 

 

Diz-se neste poema o mesmo que José Régio (1901-1969) exclamava em 1925 no poema Cântico Negro:

 

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

 

…

 

Não sei por onde vou,

 

Não sei para onde vou

 

–  Sei que não vou por aí!

 

 

No tempo em que as fábulas eram prezadas como veículos de aprendizagem de valores e comportamentos, era popular uma versão simplificada da fábula de La Fontaine sobre O velho, o rapaz, e o burro, dando exactamente conta do sem sentido de governarmos o nosso comportamento pela opinião dos outros.

 

O velho, o rapaz, e o burro

 

O mundo ralha de tudo,

Tenha ou não tenha razão,

Quero contar uma história

Em prova desta asserção.

 

Partia um velho campónio

Do seu monte ao povoado;

Levava um neto que tinha,

No seu burrico montado.

 

Encontra uns homens que dizem:

“Olha aquela que tal é!

Montado o rapaz, que é forte,

E o velho, trôpego, a pé!

 

— Tapemos a boca ao mundo,

O velho disse; — rapaz,

Desce do burro, que eu monto,

E vem caminhando atrás.”

 

Monta-se, mas dizer ouve,

“Que patetice tão rata!

O tamanhão, de barrinha,

E o pobre pequeno à pata!

 

— Eu me apeio, diz, prudente,

O velho de boa fé;

Vá o burro sem carrego,

E vamos ambos a pé.”

 

Apeiam-se, e outros lhes dizem:

“Toleirões, calcando a lama!

De que lhes serve o burrinho?

Dormem com ele na cama?

 

— Rapaz, diz o bom do velho,

Se de irmos a pé murmuram,

Ambos no burro montemos,

A ver se inda nos censuram.”

 

Montam, mas ouvem de um lado:

“Apeiem-se almas de breu,

Querem matar o burrinho?

Aposto que não é seu!

 

— Vamos ao chão, diz o velho,

Já não sei que hei-de fazer!

O mundo está de tal sorte,

Que se não pode entender.

 

É mau se monto no burro,

Se o rapaz monta, mau é;

Se ambos montamos é mau,

E é mau se vamos a pé!

 

De tudo me têm ralhado;

Agora que mais me resta?

Peguemos no burro às costas,

Façamos inda mais esta!

 

Pegam no burro; o bom velho

Pelas mãos o ergue do chão,

Pega-lhe o rapaz nas pernas,

E assim caminhando vão.

 

“Olhem dois loucos varridos!

Ouvem com grande sussurro, —

Fazendo mundo às avessas,

Tornados burros do burro!”

 

O velho então pára, e exclama:

“Do que observo me confundo!

Por mais que a gente se mate,

Nunca tapa a boca do mundo.

 

Rapaz, vamos como dantes,

Sirvam-nos estas lições:

É mais que tolo quem dá

Ao mundo satisfações.”

 

Nota bibliográfica e iconográfica

 

Ricardo Reis (nascimento fictício em 19 de Setembro de 1887), Poesia, edição de Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000. O número do poema é o da edição mencionada.

O poema de José Régio foi publicado em Poemas de Deus e do Diabo (1925), e pode ser encontrado no blog acompanhado de uma sua retumbante leitura por João Villaret.

A versão da fábula de La Fontaine, transcrita de uma edição das suas fábulas recreadas em português (Ed. Minerva, Lisboa, s/d), vem atribuída a Curvo Semedo (1766-1838). Infelizmente, nas edições das obras deste poeta que conheço, não encontrei tal versão.

A fábula de La Fontaine (1621-1695) abre o Livro III das Fábulas e chama-se O Moleiro, o Filho e o Burro. Filinto Elísio (1734-1819) traduziu a fábula integralmente em verso branco e consta da edição das suas Obras Completas, Vol VI, Paris, 1818.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de George de La Tour (1593-1652), A Cartomante.

Jogo de olhares e manifestação simultânea de crendice e velhacaria: enquanto a cartomante prende a atenção do rapaz, ávido de saber o que o espera na vida, as duas jovens aproveitam para o roubar. A composição desenvolve-se de forma magistral entre a linguagem dos olhares e a linguagem das mãos, devolvendo todas as cambiantes do significado da cena. Cena de costumes e armadilha exemplar do jovem aprendiz das ratoeiras da vida.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Cântico Negro de José Régio

05 Segunda-feira Mar 2012

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

≈ 2 comentários

Etiquetas

José Régio

Imagem

Desde que foi escrito, Cântico Negro  de José Régio (1901-1969) permanece como o grito da juventude à procura de si e da sua singularidade:

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

…

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

–  Sei que não vou por aí!

O poeta publicou-o no seu primeiro livro Poemas de Deus e o do Diabo   em 1925.

Lembro-me de ter quinze anos e ter balbuciado em delíquio poético um

Corro,

Corro,

porquê, para onde?

Não sei!

…

É desta dúvida que assalta cada adolescente quando começa a ter consciência de si, que o poema superiormente nos fala e grita:

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos…

Segue-se a recusa de um mundo que insiste em fazer-nos todos iguais:

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: “vem por aqui!”?

As dúvidas, as incertezas, os sonhos, todos os sonhos, lá estão:

Eu amo o Longe e a Miragem,

E na fúria de tudo começar de novo, fazendo tábua rasa do que encontrou no mundo ao chegar, proclama:

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tectos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…

Eu tenho a minha Loucura !

…

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.

Depois destes pequenos comentários vamos ao poema lido por João Villaret na memorável sessão de 1958 no Teatro S. Luís em Lisboa.

  https://s3-eu-west-1.amazonaws.com/viciodapoesiamedia/Jo%C3%A3o+Villaret+no+S%C3%A3o+Lu%C3%ADs+-+C%C3%A2ntico+Negro.mp3

Transcrevo a versão definitiva do poema publicada na edição de 1951 de Poemas de Deus e o do Diabo, a qual difere ligeiramente da versão lida apaixonadamente de João Villaret.

 Cântico Negro

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces,

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: “vem por aqui”!

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali…

    

A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

    

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos…

      

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,

Por que me repetis: “vem por aqui”?

 

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí…

    

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

    

Como, pois, sereis vós

Que me dareis machados, ferramentas, e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?…

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

 

Ide! tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tectos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

      

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

    

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

 

É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou…

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

–  Sei que não vou por aí!

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Portas em Tavira e um poema de José Régio

21 Segunda-feira Mar 2011

Posted by viciodapoesia in Convite à fotografia, Crónicas, Poesia Portuguesa do sec. XX

≈ 1 Comentário

Etiquetas

José Régio, Tavira

Razões familiares ligam-me a Tavira especialmente nas oitenta e duas Primaveras decorridas desde 21 de Março de 1928. É um pouco da história deste período que estas portas contam.

Enquanto acesso à entrada num mundo, qualquer que ele seja, a porta marca um corte entre um antes e um depois.

Entre o eterno e o efémero decorrem os dias de uma vida, no silencioso suceder das estações, qual fluir do rio que corre na minha cidade, ia dizer aldeia como Pessoa, ainda que a ligação do poeta a Tavira seja através de Álvaro de Campos e não do seu mestre Caeiro.

Afinal é em José Régio e no seu livro Música Ligeira que encontro o poema adequado a transmitir esta serenidade primaveril, satisfeita de uma vida vivida sem deliberadamente prejudicar ninguém:

Viver à beira da morte

No gosto de mais um dia,

Nem eu diria

Que tão pouco me conforte.

 

Mas para quem

Não tem senão esse pouco,

Seria louco

Perder o pouco que tem.

 

Gozar o que, sem futuro,

Perdura uns breves instantes,

Não era dantes,

Mas hoje, é o bem que procuro.

 

Mais uma vez brilha o Sol!

E é de prever que à tardinha

Desponte a Lua, vizinha

Do resplendor do arrebol.

 

Talvez que a noite comprida

Traga outra manhã, depois.

Um dia e outro, são dois.

Não são dois dias a vida?

 

Nem eu diria

Que tão pouco me conforte:

Viver à beira da morte

No gosto de mais um dia.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

A mão e o prazer – 2 poemas de José Régio

27 Sábado Fev 2010

Posted by viciodapoesia in Erótica, Poetas e Poemas

≈ 1 Comentário

Etiquetas

José Régio

Homem, mulher, e mão, são a substância para a inspiração poética de José Régio (1901-1969) na escolha poética de hoje.

Temos para inicio da história, a aventura da mão “Sábia talvez inconsciente” que se passeia “Ali onde o desejo mais me dói”, “doseando com volúpia, uma ancestral sofreguidão” levando-o até “àquele auge em que todo, em alma e corpo vou morrer…”.


Monólogo a dois

Sábia talvez inconsciente,

Doseando com volúpia, uma ancestral sofreguidão,

Ali onde o desejo mais me dói, mais exigente,

Me acaricia a tua mão.

De olhos fechados me abandono, ouvindo

Meu coração pulsar, meu sangue discorrer,

E sob a tua mão, na asa do sonho, eis-me subindo

Àquele auge em que todo, em alma e corpo, vou morrer…


Isto que a mão faz pelo prazer masculino tem a contrapartida no prazer feminino. E é acariciar com um dedo médio e um polegar, sabiamente manipulados, aquelas regiões onde o potencial erótico se esconde, para fazer uma mulher percorrer todo o alfabeto do prazer e não apenas de C a G, levando-nos com ela, à decifração daquele mistério feminino que cada mulher guarda em si para oferecer apenas a quem o souber merecer.

O conhecimento deste mistério  o poeta não desdenha quando nos conta: “crispou-se a minha mão sobre o teu sexo / …e a minha mão sondava/ … o teu mistério de mulher.”.

 

Poema

Crispou-se a minha mão sobre o teu sexo,

Fecharam-se-me os olhos sem querer…

De que abismos voava até ao fundo?

E a minha mão sondava

E Triturava

Aquele mundo

Tão pequenino e tão complexo:

O teu mistério de mulher.

 


De comum aos dois poemas temos os olhos fechados não em sentido figurado de alheamento ou não querer ver, nem numa qualquer deslocada reacção de pudor, mas no sentido físico de potenciação do prazer.

No primeiro poema, para na asa do sonho melhor ir subindo, e assim gozar o prazer até à última gota, enquanto no segundo poema se lhe fecham os olhos no gesto involuntária ditado pela volupia da mão sobre o teu sexo. Em ambos temos a verdade da vida dita na forma superior da poesia.


Publicados estes poemas ao virar os 60 anos, tempo bastante para fruir da vida os seus segredos e deles nos dar conta na sintese adequada à poesia, pertencem ambos ao ciclo “O Amor e a Morte” incluído no livro FILHO DO HOMEM publicado em 1961.


Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Corpo de ânsia, eu sonhei … poema de José Régio

19 Sexta-feira Fev 2010

Posted by viciodapoesia in Erótica, Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

José Régio

A poesia de José Régio (1901-1969), ainda que pretenda exprimir o universal da condição humana, e com isso ser profundamente apelativa ao leitor, a matriz cristã em que esse universal radica cria alguma desconfiança nestes tempos incréus.

Acontece que em José Régio, entre as angustias e dúvidas próprias ao humano, e que a sua poesia aborda, surgem poemas de uma carnalidade avassaladora em que a forma poética nos deixa sem fôlego. São algumas dessas poesias as escolhas próximas.


Canção cruel

Corpo de ânsia,

Eu sonhei que te prostrava,

E te enleava

Aos meus musculos!


Olhos de êxtase,

Eu sonhei que em vós bebia

Melancolia

De há séculos!


Boca sôfrega,

Rosa brava,

Eu sonhei que te esfolhava

Pétala a pétala!


Seios rígidos,

Eu sonhei que os mordia

Até que sentia

Vómitos!


Ventre de mármore,

Eu sonhei que te sugava,

E esgotava

Como a um cálice!


Noticia bibliográfica:

O poema pertence a um ciclo “O Amor e a Morte” publicado por José Régio no livro FILHO DO HOMEM editado pela primeira vez em Maio de 1961. É dos livros menos populares do poeta.


Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

História para Crianças Grandes – Adão e Eva – A versão de José Régio

27 Quarta-feira Jan 2010

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

José Régio

Ainda que o romance “O Príncipe com Orelhas de Burro” de José Régio tenha sido sub-titulado História para crianças grandes, não é sobre ele que trato.

Com este título de “História para Crianças Grandes” fechou o poeta a 2ª edição do seu livro “Poemas de Deus e do Diabo”.

É um poema em 25 quartetos rimados com rima aabb, numa mestria técnica prodigiosa, em que a fluencia da musica das palavras nunca se perde. A cadência da rima aproxima-nos da mais pura tradição portuguesa.

O poema, contando a história primeira dos homens na sua versão cristã, deixa ver o calor do desejo no moço poeta, que em poemas da maturidade arricou tornar mais explícito.

História para Crianças Grandes

Estava um homem sentado,

Nu, inocente e enlevado,

Com o seu sorriso mais lindo,

E leões aos pés dormindo.

 

Havia em roda arvoredos,

Roseirais sobre rochedos,

Mansinhos tigres reais

– E outras maravilhas mais.

 

O homem nu que sorria

Sentia-se de harmonia

Com essa doçura toda

De tudo o que estava em roda.

 

E, fitos nos horizontes,

Os seus olhos eram fontes

De água bem pura – água virgem

Nunca distante da origem …

 

Mas, em tudo o que lá estava,

Certo Senhor governava,

Um senhor de barbas claras

Ondulando como as searas.

 

Este Senhor disse um dia

Ao Homem nu que sorria:

– “Há um fruto singular

Que nunca deves provar…”

 

O homem de riso brando

Ouviu, e ficou pensando,

Sim, que nunca provaria

Do estranho fruto que havia.

 

Dias depois a seu lado,

O Homem viu assombrado,

Erguer-se uma Mulher nua

Branca e cheia como a lua.

 

Amaram-se os dois, gozando

Os dias que iam passando

Entre os aromas e os hinos,

– Candidos como meninos…

 

Mas a mulher duma vez,

Não sei que contratos fez

Com um bicho que ia de-rastros,

De olhos a arder como os astros…

 

Sei que, na palma da mão,

Trouxe ao seu amigo Adão

Um belo fruto, bem belo!,

Vermelho, branco, amarelo…

 

Sorrindo disse-lhe: “Come!”

E o Homem, que tinha fome,

Viu um Bicho vir ao lado,

Sobre si mesmo deitado…

 

(Tudo o que vivia fôra

Criação de Deus … E agora,

Tendo isto bem na memória,

Sigamos a Velha História: )

 

O Homem lembrou-se então

Do que dissera o Papão:

“- Há um fruto singular

Que nunca deves provar…”

 

Mas o tal Bicho de-rastros

Que tinha nos olhos astros

Já ensinara à Mulher

O modo de o convencer.

 

E os dois comeram do fruto,

Com o mesmo olhar impoluto

Com que ali tinham vivido

Do seu Amor sem sentido.

 

Mas logo que o acabaram,

Brancos e frios, notaram

Que logo tudo mudara

Num segundo que passara…

 

E o Homem sentiu-se mal

Pelo facto natural

De estar sempre vestido

Tal como tinha nascido!

 

E a vergonha, o espanto, o medo,

Deixaram-no mudo e qêdo,

Enquanto a Mulher pensava

No Bicho mau que os olhava…

 

Então, de espada de fogo,

Certo Arcanjo surgiu logo,

E essa espada flamejante

Os mandou seguir adiante.

 

E o Homem viu-se acusado

Do que assim se tinha dado,

Quando isso tudo só era

– Porque assim acontecera.

 

Ao seu lado, a Companheira

Chorava de tal maneira

Que pedras, feras e céus

Lhe respondiam: Adeus…!

 

E os dois míseros rolaram

Nas trevas que os arrastaram

Para mundos inclementes

Onde há o ranger dos dentes…

 

Outra História então começa

Que não tenho na cabeça;

Mas em tudo o que eu disser

Se pode reconhecer

 

Que a tragédia continua

Entre o Bicho, a Mulher nua,

O Homem nu, o Papão,

E o Tal de espada na mão…

E assim, a criança que ainda exista em cada leitor, sente em si o renascer do mistério do amor por descobrir, seja ou não uma tragédia entre Bicho, Homem, Mulher, e Papão, mais o Tal de espada na mão.


 

 

Noticia bibliográfica:

Esta versão do poema foi transcrita da 2ª edição de “POEMAS DE DEUS E DO DIABO”. Não sei se terá sido a última versão publicada em vida pelo poeta, uma vez que poemas houve em que sucessivas edições trouxeram alterações. Esta é a que possuo.

Esta 2ªedição publicada em 1943, diferente da 1ª edição, vem corrigida e seguida de um posfácio. Das correcções em relação à 1ª edição não posso dar conta, pois trata-se de raríssima edição que não possuo e pertence ao restrito numeros de livros da bibliografia portuguesa do século XX que atinge em leilão valores astronómicos.

Não sei por isso, que correcções contém esta 2ªedição. No entanto existe a menção de que vem acrescentada de pelo menos um  poema. Foi este História para Crianças Grandes o poema acrescentado no final do livro, ou foi originalmente publicado na 1ªedição?

A duvida justifica-se porque o livro traz outro poema sobre o mesmo assunto, Adão e Eva chamado, e talvez, em livro de estreia, o poeta não tivesse arriscado publicar dois poemas sobre o mesmo assunto.

Neste Adão e Eva varia a forma, mas as preocupações são as mesmas, ainda que uma vez por outra o desenvolvimento do assunto peque por alguma retórica, p. ex.:

Assim as almas se entregaram, / Como os corpos se tinham entregado. /

Assim duas metades se amoldaram / Ante as barbas, que tremeram, /

Do velho Pai desprezado!

Adão e Eva

Olhámo-nos um dia,

E cada um de nós sonhou que achara

O par que a alma e a carne lhe pedia.

– E cada um de nós sonhou que o achara…

E entre nós dois

Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,

.. Se deu, e se dará continuamente:

Na palma da tua mão,

Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.

– O meu nome é Adão…

E em que furor sagrado

Os nossos corpos nus e desejosos

Como serpentes brancas se enroscaram,

Tentando ser um só!

Ó beijos angustiados e raivosos

Que as nossas pobres bocas se atiraram

Sobre um leito de terra, cinza e pó!

Ó abraços que os braços apertaram,

Dedos que se misturaram!

Ó ansia que sofreste, ó ansia que sofri,

Sêde que nada mata, ânsia sem fim!

– Tu de entrar em mim,

Eu de entrar em ti.

Assim toda te deste,

E assim todo me dei:

Sobre o teu longo corpo agonizante,

Meu inferno celeste,

Cem vezes morri, prostrado…

Cem vezes ressuscitei

Para uma dor mais vibrante

E um prazer mais torturado.

E enquanto as nossas bocas se esmagavam,

E as doces curvas do teu corpo se ajustavam

Às curvas fortes do meu,

Os nossos olhos muito perto, imensos

No desespero desse abraço mudo,

Confessaram-se tudo!

… Enquanto nós pairávamos, suspensos

Entre a terra e o céu.

Assim as almas se entregaram,

Como os corpos se tinham entregado.

Assim duas metades se amoldaram

Ante as barbas, que tremeram,

Do velho Pai desprezado!

E assim Eva e Adão se conheceram:

Tu conheceste a força dos meus pulsos,

A miséria do meu ser,

Os recantos da minha humanidade,

A grandeza do meu amor cruel,

As veias de oiro que o meu barro trouxe…

Eu os teus nervos convulsos,

O teu poder,

A tua fragilidade,

Os sinais da tua pele,

O gosto do teusangue doce…

Depois…

Depois o quê, amor? Depois, mais nada,

– que Jeová não sabe perdoar!

O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada…

Continuaremos a ser dois,

E nunca nos pudemos penetrar!

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Visitas ao Blog

  • 2.061.333 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 874 outros subscritores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • A valsa — poema de Casimiro de Abreu
  • Camões - reflexões poéticas sobre o desconcerto do mundo
  • Escultura votiva da pré-história mediterrânica

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Create a free website or blog at WordPress.com.

  • Seguir A seguir
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 874 outros seguidores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Personalizar
    • Seguir A seguir
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    %d bloggers gostam disto: