Etiquetas
Ainda que o romance “O Príncipe com Orelhas de Burro” de José Régio tenha sido sub-titulado História para crianças grandes, não é sobre ele que trato.
Com este título de “História para Crianças Grandes” fechou o poeta a 2ª edição do seu livro “Poemas de Deus e do Diabo”.
É um poema em 25 quartetos rimados com rima aabb, numa mestria técnica prodigiosa, em que a fluencia da musica das palavras nunca se perde. A cadência da rima aproxima-nos da mais pura tradição portuguesa.
O poema, contando a história primeira dos homens na sua versão cristã, deixa ver o calor do desejo no moço poeta, que em poemas da maturidade arricou tornar mais explícito.
História para Crianças Grandes
Estava um homem sentado,
Nu, inocente e enlevado,
Com o seu sorriso mais lindo,
E leões aos pés dormindo.
Havia em roda arvoredos,
Roseirais sobre rochedos,
Mansinhos tigres reais
– E outras maravilhas mais.
O homem nu que sorria
Sentia-se de harmonia
Com essa doçura toda
De tudo o que estava em roda.
E, fitos nos horizontes,
Os seus olhos eram fontes
De água bem pura – água virgem
Nunca distante da origem …
Mas, em tudo o que lá estava,
Certo Senhor governava,
Um senhor de barbas claras
Ondulando como as searas.
Este Senhor disse um dia
Ao Homem nu que sorria:
– “Há um fruto singular
Que nunca deves provar…”
O homem de riso brando
Ouviu, e ficou pensando,
Sim, que nunca provaria
Do estranho fruto que havia.
Dias depois a seu lado,
O Homem viu assombrado,
Erguer-se uma Mulher nua
Branca e cheia como a lua.
Amaram-se os dois, gozando
Os dias que iam passando
Entre os aromas e os hinos,
– Candidos como meninos…
Mas a mulher duma vez,
Não sei que contratos fez
Com um bicho que ia de-rastros,
De olhos a arder como os astros…
Sei que, na palma da mão,
Trouxe ao seu amigo Adão
Um belo fruto, bem belo!,
Vermelho, branco, amarelo…
Sorrindo disse-lhe: “Come!”
E o Homem, que tinha fome,
Viu um Bicho vir ao lado,
Sobre si mesmo deitado…
(Tudo o que vivia fôra
Criação de Deus … E agora,
Tendo isto bem na memória,
Sigamos a Velha História: )
O Homem lembrou-se então
Do que dissera o Papão:
“- Há um fruto singular
Que nunca deves provar…”
Mas o tal Bicho de-rastros
Que tinha nos olhos astros
Já ensinara à Mulher
O modo de o convencer.
E os dois comeram do fruto,
Com o mesmo olhar impoluto
Com que ali tinham vivido
Do seu Amor sem sentido.
Mas logo que o acabaram,
Brancos e frios, notaram
Que logo tudo mudara
Num segundo que passara…
E o Homem sentiu-se mal
Pelo facto natural
De estar sempre vestido
Tal como tinha nascido!
E a vergonha, o espanto, o medo,
Deixaram-no mudo e qêdo,
Enquanto a Mulher pensava
No Bicho mau que os olhava…
Então, de espada de fogo,
Certo Arcanjo surgiu logo,
E essa espada flamejante
Os mandou seguir adiante.
E o Homem viu-se acusado
Do que assim se tinha dado,
Quando isso tudo só era
– Porque assim acontecera.
Ao seu lado, a Companheira
Chorava de tal maneira
Que pedras, feras e céus
Lhe respondiam: Adeus…!
E os dois míseros rolaram
Nas trevas que os arrastaram
Para mundos inclementes
Onde há o ranger dos dentes…
Outra História então começa
Que não tenho na cabeça;
Mas em tudo o que eu disser
Se pode reconhecer
Que a tragédia continua
Entre o Bicho, a Mulher nua,
O Homem nu, o Papão,
E o Tal de espada na mão…
E assim, a criança que ainda exista em cada leitor, sente em si o renascer do mistério do amor por descobrir, seja ou não uma tragédia entre Bicho, Homem, Mulher, e Papão, mais o Tal de espada na mão.
Noticia bibliográfica:
Esta versão do poema foi transcrita da 2ª edição de “POEMAS DE DEUS E DO DIABO”. Não sei se terá sido a última versão publicada em vida pelo poeta, uma vez que poemas houve em que sucessivas edições trouxeram alterações. Esta é a que possuo.
Esta 2ªedição publicada em 1943, diferente da 1ª edição, vem corrigida e seguida de um posfácio. Das correcções em relação à 1ª edição não posso dar conta, pois trata-se de raríssima edição que não possuo e pertence ao restrito numeros de livros da bibliografia portuguesa do século XX que atinge em leilão valores astronómicos.
Não sei por isso, que correcções contém esta 2ªedição. No entanto existe a menção de que vem acrescentada de pelo menos um poema. Foi este História para Crianças Grandes o poema acrescentado no final do livro, ou foi originalmente publicado na 1ªedição?
A duvida justifica-se porque o livro traz outro poema sobre o mesmo assunto, Adão e Eva chamado, e talvez, em livro de estreia, o poeta não tivesse arriscado publicar dois poemas sobre o mesmo assunto.
Neste Adão e Eva varia a forma, mas as preocupações são as mesmas, ainda que uma vez por outra o desenvolvimento do assunto peque por alguma retórica, p. ex.:
Assim as almas se entregaram, / Como os corpos se tinham entregado. /
Assim duas metades se amoldaram / Ante as barbas, que tremeram, /
Do velho Pai desprezado!
Adão e Eva
Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a carne lhe pedia.
– E cada um de nós sonhou que o achara…
E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
.. Se deu, e se dará continuamente:
Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.
– O meu nome é Adão…
E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!
Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram
Sobre um leito de terra, cinza e pó!
Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!
Ó ansia que sofreste, ó ansia que sofri,
Sêde que nada mata, ânsia sem fim!
– Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.
Assim toda te deste,
E assim todo me dei:
Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado…
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.
E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às curvas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-se tudo!
… Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.
Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado.
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!
E assim Eva e Adão se conheceram:
Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
As veias de oiro que o meu barro trouxe…
Eu os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade,
Os sinais da tua pele,
O gosto do teusangue doce…
Depois…
Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
– que Jeová não sabe perdoar!
O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada…
Continuaremos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!