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O amor em acto com sonetos de Curvo Semedo

02 Terça-feira Out 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Portuguesa antiga

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Curvo Semedo, Jacob van Loo

Lília nos braços de Belmiro agora,
Quanto há doce em Amor, tanto disfruta.

 

Na poesia do século XVIII encontramos uma aproximação lúdica ao prazer e sua consumação, bem mais próxima do sentir dos nossos dias que na poesia produzida no século XIX. Nessa poesia romântica e pós-romântica do século XIX, no que ao desejo e paixão respeita, o estro poético masculino circula entre a idealização virginal da amada e as putas para as necessidades biológicas.
Na poesia neo-clássica da segunda metade do século XVIII, bebendo directamente a inspiração nos modelos da antiguidade greco-romana, chama-se ao desejo amor e por aí se segue dando conta da alegria da sua consumação, ou dos desgostos da sua perda.

Hoje são alguns sonetos de Curvo Semedo (1766-1838) que o ilustram:

 

Soneto p22
…
No meu pobre batel entro com ela:
Oh céus! desde que sulco o Tejo undoso,
Nunca vi, nem gozei noite mais bela.

 

Soneto p23

Já matizando o céu de vivas cores
Vinha a brilhante aurora apavonada,
E inda sobre os meus braços fatigada
Laura dormia, Laura os meus amores.
…

 

 

São variadas as situações de encontros amorosos que estes sonetos e mais alguns, na edição das Composições Poéticas de Curvo Semedo cobrem, e dos quais escolhi cinco. Vejamos em jeito de preâmbulo a perspectiva que cada um aborda.

 

No soneto a p17 um ansioso Alzeu suspira pela presença da amada Lília para se aperceber que entretanto ela goza as delícias de amor nos braços de outro:

 

Soneto p17

Lília enquanto não foge a fresca tarde
Desce às margens frondosas deste pego,
Vem ver quem de saudades louco, e cego
Pela doçura de teus olhos arde.

Atende aos rogos dum Amor cobarde,
Que te chama do rio em que navego:
Vem, ou pôr termo ao pranto a que me entrego,
Ou do teu desamor fazer alarde.

Assim clamava Alzeu, que a Lília adora,
Eis como entanto, duma algosa gruta
Ouve dizer com voz clara, e sonora:

Não chames, Pescador, quem não te escuta:
Lília nos braços de Belmiro agora,
Quanto há doce em Amor, tanto disfruta.

 

 

No soneto que segue, a p22 da colecção, é um pescador poeta que, na faina, sonha com ter a seu lado a amada Laura, e eis que subitamente ela lhe surge, proporcionando-se, assim, um inesquecível encontro: Nunca vi, nem gozei noite mais bela.

 

Soneto p22

Medonha corre a noite, a frouxa Lua
A furto mostra o rosto desmaiado,
Em mil volúveis serras levantado
Ruge raivoso o mar na praia nua;

Um só baixel nas ondas não flutua,
Os Nautas dormem, zune o vento irado;
Ah! doce Laura, Ah! doce objecto amado,
Quem vira agora a linda imagem tua!

Assim as vozes eu soltava ansioso,
Quando Laura, o meu bem , a minha estrela
Ao lado vejo, e vejo-me ditoso.

No meu pobre batel entro com ela:
Oh céus! desde que sulco o Tejo undoso,
Nunca vi, nem gozei noite mais bela.

 

 

Agora iremos ler no soneto a p23, o relato peculiar de um encontro derradeiro contado a partir da fruição dos momentos seguintes ao êxtase amoroso:
…
E inda sobre os meus braços fatigada
Laura dormia, Laura os meus amores.

 

Por se tratar de um encontro clandestino, e no receio de ver estes amores descobertos, o nosso poeta parte sem despertar a amada:
…
Sinto privar do sono a minha amada,
Temo vejam, que logro os seus favores.
…

 

E esta fuga põe fim, por muito tempo, ao encontro destas almas apaixonadas:
…
Vou-me, deixo o meu bem; desde esse instante
Cansados olhos, olhos sem ventura
Nunca mais vistes seu gentil semblante.

 

 

Soneto p23

Já matizando o céu de vivas cores
Vinha a brilhante aurora apavonada,
E inda sobre os meus braços fatigada
Laura dormia, Laura os meus amores.

De terna mágoa, de hórridos temores
Vejo minha alma a um tempo salteada,
Sinto privar do sono a minha amada,
Temo vejam, que logro os seus favores.

Enquanto pugna em mim susto, e ternura,
Vistos somos de espia vigilante,
Que o nosso afecto destruir procura.

Vou-me, deixo o meu bem; desde esse instante
Cansados olhos, olhos sem ventura
Nunca mais vistes seu gentil semblante.

 

 

Ainda outra perspectiva destes encontros clandestinos, agora no soneto a p32, encontramos o relato de uma paixão que em segredo se consumou:

Estes muros, que vês aos céus erguidos,
Tenho, alta noite, vezes mil trepado;
…
E ambos de amor num êxtase sagrado
Obtivemos prazeres nunca obtidos.
…

 

a qual termina para o nosso par com a entrega forçada da amada Jónia a outro:
… Monstros potentes
Dão Jónia ao meu rival, Jónia foi sua
Sem lhe valerem lágrimas ardentes.
…

 

Soneto p32

Estes muros, que vês aos céus erguidos,
Tenho, alta noite, vezes mil trepado;
Aqui Jónia viveu, tendo a seu lado
Velante escolta d’Argos pressentidos:

Pelas caladas trevas protegidos
Vencer pudémos nosso iníquo fado,
E ambos de amor num êxtase sagrado
Obtivemos prazeres nunca obtidos.

Mas voou tanto bem: Monstros potentes
Dão Jónia ao meu rival, Jónia foi sua
Sem lhe valerem lágrimas ardentes.

Meu peito em mares de aflição flutua:
Amor, se ímpio não és, como consentes,
Que uns braços, que eram meus, outro os possua?

 

 

Vai longo o artigo, termino com o soneto a p36 o qual dá conta de um namoro de mais de quatro anos em que milhões de vezes os amantes viveram horas furtivas de prazer gozado, iludindo a vigilância de quem tinha por função prevenir estes encontros (Expertos Argos temos iludido).
A paixão permanece, e o poeta conclui o soneto com o desejo que o casamento finalmente chegue, ou na linguagem codificada do poema … De alegres vermos que Himeneu sagrado / Nos doura os laços, que tramou Cupido.

 

Soneto p36

Quatro vezes na Eclíptica brilhante
Febo tem dado a fúlgida carreira,
Depois que, doce Anália, a vez primeira
Vi teu risonho, teu gentil semblante:

Desde tão grato, venturoso instante
Minha alma de teus olhos prisioneira,
Consagrando-te a fé mais verdadeira,
Colheu primicias de teu peito amante:

Milhões de vezes por mercê do Fado
Expertos Argos temos iludido
E horas furtivas de prazer gozado;

O céu nos chegue ao prazo apetecido
De alegres vermos que Himeneu sagrado
Nos doura os laços, que tramou Cupido.

 

Poemas transcritos de B. M. Curvo Semedo, Composições Poéticas, Lisboa, na Regia Oficina Tipográfica, 1803.
Modernizei a ortografia.
A numeração que antecede cada soneto identifica a página onde o mesmo se encontra nesta edição.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Jacob van Loo (1614-1670), Casal apaixonado de 1669, da colecção do Rijksmuseum de Amsterdão.

 

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Macaroni e um enigma setecentista em verso atribuído a Curvo Semedo

15 Quinta-feira Set 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Antiga

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Curvo Semedo

macaroni-ingles-2-500pxO reino das massas alimentícias, originárias de Itália, é, como se sabe, universo de paixão e de prodígios (culinários, evidentemente), onde até em Nápoles a pizza portuguesa pode ser considerada a melhor do mundo (noticia a imprensa).

Em massas, a infinita variação culinária é quase igual à diversidade de apresentação, e embora as massas frescas sejam de popularidade recente entre nós, algumas variedades de massa seca foram de longa data adoptadas pela culinária portuguesa, qual seja, por exemplo, o macarrão, indispensável para um bom feijão com massa.

Este macarrão já conhecido por cá no século XVIII, gozaria certamente de grande popularidade à época, a tal ponto que foi assunto de um sofisticado enigma poético atribuído a Belchior Curvo de Semedo (1766-1838), e que a seguir vos dou a conhecer.

 

Enigma
É grosso, longo, e furado,
Pinga, mas não se derrete,
Enxuto, e duro, se mete,
Tira-se mole, e molhado.
É à cobra assemelhado,
Mas tem seu quê com a espiga,
Penetra até à barriga,
Sacia a vontade à gente;
Porém ser cousa indecente
Não se creia, nem se diga.

 

E não se creia, não, senhores.

Tudo isto quer dizer mui simplesmente macarrão!

 

In Poesias Lyricas de Belchior Manuel Curvo de Semedo – Belmiro Transtagano, ed. 1890.

macaroni-ingleses-1-450pxEsta leitura do macarrão está longe do que sucedeu à palavra em terras de sua majestade britânica.

Por alturas da composição deste poema, ou um pouco antes (anos 60 do século XVIII), o macarrão, maccherone em italiano, transformou-se em Inglaterra num epíteto, acompanhando o sucesso local à época das massas italianas, macaroni.

macaroni-ingleses-sala-de-vestir-500pxAplicou-se em Inglaterra o epíteto de macaroni aos elegantes, sobretudo jovens aristocratas ou de posses, regressados da sua viagem cultural ao continente (Grand Tour), trajando  de forma original e espaventosa. A coisa ganhou proporção tal no espavento que foi motivo de retumbante sucesso em caricaturas da época, das quais alguns exemplos acompanham o artigo.

macaroni-ingles-1-450pxO amaneiramento em que a originalidade se tornou fez com que em alguns anos, o termo se tornasse sinónimo de efeminado. A vertigem da moda seguiu outros caminhos e por eles desapareceram os macaroni.

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Ricardo Reis — Nunca a alheia vontade, inda que grata, cumpras por própria

21 Domingo Fev 2016

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Curvo Semedo, Fernando Pessoa, Filinto Elísio, George de La Tour, José Régio, La Fontaine, Ricardo Reis

George de La Tour (1593-1652)- Ler a Sina (1632-1635) 600pxDe vez em quando Pessoa: hoje um convite assinado Ricardo Reis para a afirmação do eu independente.

Num mundo amplamente condicionante das escolhas de cada um por modas, juízos sociais e pressões afectivas, afirmar o eu é uma tarefa que só na aparência se tem por conseguida. Antes de escolher, olhamo-nos no espelho dos outros, por mais que nos confortemos com a ilusão da nossa singularidade.

 

 

116

Nunca a alheia vontade, inda que grata,

Cumpras por própria. Manda no que fazes,

Nem de ti mesmo servo.

Ninguém te dá quem és. Nada te mude.

Teu íntimo destino involuntário

Cumpre alto. Sê teu filho

 

19-11-1930

 

 

Diz-se neste poema o mesmo que José Régio (1901-1969) exclamava em 1925 no poema Cântico Negro:

 

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

 

…

 

Não sei por onde vou,

 

Não sei para onde vou

 

–  Sei que não vou por aí!

 

 

No tempo em que as fábulas eram prezadas como veículos de aprendizagem de valores e comportamentos, era popular uma versão simplificada da fábula de La Fontaine sobre O velho, o rapaz, e o burro, dando exactamente conta do sem sentido de governarmos o nosso comportamento pela opinião dos outros.

 

O velho, o rapaz, e o burro

 

O mundo ralha de tudo,

Tenha ou não tenha razão,

Quero contar uma história

Em prova desta asserção.

 

Partia um velho campónio

Do seu monte ao povoado;

Levava um neto que tinha,

No seu burrico montado.

 

Encontra uns homens que dizem:

“Olha aquela que tal é!

Montado o rapaz, que é forte,

E o velho, trôpego, a pé!

 

— Tapemos a boca ao mundo,

O velho disse; — rapaz,

Desce do burro, que eu monto,

E vem caminhando atrás.”

 

Monta-se, mas dizer ouve,

“Que patetice tão rata!

O tamanhão, de barrinha,

E o pobre pequeno à pata!

 

— Eu me apeio, diz, prudente,

O velho de boa fé;

Vá o burro sem carrego,

E vamos ambos a pé.”

 

Apeiam-se, e outros lhes dizem:

“Toleirões, calcando a lama!

De que lhes serve o burrinho?

Dormem com ele na cama?

 

— Rapaz, diz o bom do velho,

Se de irmos a pé murmuram,

Ambos no burro montemos,

A ver se inda nos censuram.”

 

Montam, mas ouvem de um lado:

“Apeiem-se almas de breu,

Querem matar o burrinho?

Aposto que não é seu!

 

— Vamos ao chão, diz o velho,

Já não sei que hei-de fazer!

O mundo está de tal sorte,

Que se não pode entender.

 

É mau se monto no burro,

Se o rapaz monta, mau é;

Se ambos montamos é mau,

E é mau se vamos a pé!

 

De tudo me têm ralhado;

Agora que mais me resta?

Peguemos no burro às costas,

Façamos inda mais esta!

 

Pegam no burro; o bom velho

Pelas mãos o ergue do chão,

Pega-lhe o rapaz nas pernas,

E assim caminhando vão.

 

“Olhem dois loucos varridos!

Ouvem com grande sussurro, —

Fazendo mundo às avessas,

Tornados burros do burro!”

 

O velho então pára, e exclama:

“Do que observo me confundo!

Por mais que a gente se mate,

Nunca tapa a boca do mundo.

 

Rapaz, vamos como dantes,

Sirvam-nos estas lições:

É mais que tolo quem dá

Ao mundo satisfações.”

 

Nota bibliográfica e iconográfica

 

Ricardo Reis (nascimento fictício em 19 de Setembro de 1887), Poesia, edição de Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000. O número do poema é o da edição mencionada.

O poema de José Régio foi publicado em Poemas de Deus e do Diabo (1925), e pode ser encontrado no blog acompanhado de uma sua retumbante leitura por João Villaret.

A versão da fábula de La Fontaine, transcrita de uma edição das suas fábulas recreadas em português (Ed. Minerva, Lisboa, s/d), vem atribuída a Curvo Semedo (1766-1838). Infelizmente, nas edições das obras deste poeta que conheço, não encontrei tal versão.

A fábula de La Fontaine (1621-1695) abre o Livro III das Fábulas e chama-se O Moleiro, o Filho e o Burro. Filinto Elísio (1734-1819) traduziu a fábula integralmente em verso branco e consta da edição das suas Obras Completas, Vol VI, Paris, 1818.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de George de La Tour (1593-1652), A Cartomante.

Jogo de olhares e manifestação simultânea de crendice e velhacaria: enquanto a cartomante prende a atenção do rapaz, ávido de saber o que o espera na vida, as duas jovens aproveitam para o roubar. A composição desenvolve-se de forma magistral entre a linguagem dos olhares e a linguagem das mãos, devolvendo todas as cambiantes do significado da cena. Cena de costumes e armadilha exemplar do jovem aprendiz das ratoeiras da vida.

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