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George de La Tour (1593-1652)- Ler a Sina (1632-1635) 600pxDe vez em quando Pessoa: hoje um convite assinado Ricardo Reis para a afirmação do eu independente.

Num mundo amplamente condicionante das escolhas de cada um por modas, juízos sociais e pressões afectivas, afirmar o eu é uma tarefa que só na aparência se tem por conseguida. Antes de escolher, olhamo-nos no espelho dos outros, por mais que nos confortemos com a ilusão da nossa singularidade.

 

 

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Nunca a alheia vontade, inda que grata,

Cumpras por própria. Manda no que fazes,

Nem de ti mesmo servo.

Ninguém te dá quem és. Nada te mude.

Teu íntimo destino involuntário

Cumpre alto. Sê teu filho

 

19-11-1930

 

 

Diz-se neste poema o mesmo que José Régio (1901-1969) exclamava em 1925 no poema Cântico Negro:

 

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

 

 

Não sei por onde vou,

 

Não sei para onde vou

 

–  Sei que não vou por aí!

 

 

No tempo em que as fábulas eram prezadas como veículos de aprendizagem de valores e comportamentos, era popular uma versão simplificada da fábula de La Fontaine sobre O velho, o rapaz, e o burro, dando exactamente conta do sem sentido de governarmos o nosso comportamento pela opinião dos outros.

 

O velho, o rapaz, e o burro

 

O mundo ralha de tudo,

Tenha ou não tenha razão,

Quero contar uma história

Em prova desta asserção.

 

Partia um velho campónio

Do seu monte ao povoado;

Levava um neto que tinha,

No seu burrico montado.

 

Encontra uns homens que dizem:

“Olha aquela que tal é!

Montado o rapaz, que é forte,

E o velho, trôpego, a pé!

 

— Tapemos a boca ao mundo,

O velho disse; — rapaz,

Desce do burro, que eu monto,

E vem caminhando atrás.”

 

Monta-se, mas dizer ouve,

“Que patetice tão rata!

O tamanhão, de barrinha,

E o pobre pequeno à pata!

 

— Eu me apeio, diz, prudente,

O velho de boa fé;

Vá o burro sem carrego,

E vamos ambos a pé.”

 

Apeiam-se, e outros lhes dizem:

“Toleirões, calcando a lama!

De que lhes serve o burrinho?

Dormem com ele na cama?

 

— Rapaz, diz o bom do velho,

Se de irmos a pé murmuram,

Ambos no burro montemos,

A ver se inda nos censuram.”

 

Montam, mas ouvem de um lado:

“Apeiem-se almas de breu,

Querem matar o burrinho?

Aposto que não é seu!

 

— Vamos ao chão, diz o velho,

Já não sei que hei-de fazer!

O mundo está de tal sorte,

Que se não pode entender.

 

É mau se monto no burro,

Se o rapaz monta, mau é;

Se ambos montamos é mau,

E é mau se vamos a pé!

 

De tudo me têm ralhado;

Agora que mais me resta?

Peguemos no burro às costas,

Façamos inda mais esta!

 

Pegam no burro; o bom velho

Pelas mãos o ergue do chão,

Pega-lhe o rapaz nas pernas,

E assim caminhando vão.

 

“Olhem dois loucos varridos!

Ouvem com grande sussurro, —

Fazendo mundo às avessas,

Tornados burros do burro!”

 

O velho então pára, e exclama:

“Do que observo me confundo!

Por mais que a gente se mate,

Nunca tapa a boca do mundo.

 

Rapaz, vamos como dantes,

Sirvam-nos estas lições:

É mais que tolo quem dá

Ao mundo satisfações.”

 

Nota bibliográfica e iconográfica

 

Ricardo Reis (nascimento fictício em 19 de Setembro de 1887), Poesia, edição de Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000. O número do poema é o da edição mencionada.

O poema de José Régio foi publicado em Poemas de Deus e do Diabo (1925), e pode ser encontrado no blog acompanhado de uma sua retumbante leitura por João Villaret.

A versão da fábula de La Fontaine, transcrita de uma edição das suas fábulas recreadas em português (Ed. Minerva, Lisboa, s/d), vem atribuída a Curvo Semedo (1766-1838). Infelizmente, nas edições das obras deste poeta que conheço, não encontrei tal versão.

A fábula de La Fontaine (1621-1695) abre o Livro III das Fábulas e chama-se O Moleiro, o Filho e o Burro. Filinto Elísio (1734-1819) traduziu a fábula integralmente em verso branco e consta da edição das suas Obras Completas, Vol VI, Paris, 1818.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de George de La Tour (1593-1652), A Cartomante.

Jogo de olhares e manifestação simultânea de crendice e velhacaria: enquanto a cartomante prende a atenção do rapaz, ávido de saber o que o espera na vida, as duas jovens aproveitam para o roubar. A composição desenvolve-se de forma magistral entre a linguagem dos olhares e a linguagem das mãos, devolvendo todas as cambiantes do significado da cena. Cena de costumes e armadilha exemplar do jovem aprendiz das ratoeiras da vida.