Trago hoje um poema profano do rei Afonso X o Sábio (1221-1284), celebrado autor das Cantigas de Santa Maria.
No poema somos ilustrados sobre os sucessos na arte de foder obtidos pelo deão de Cadiz, cargo eclesiástico, através do relato ao rei por um seu servidor.
Começa assim:
Ao deão de Cadiz eu achei / livros que lhe levavam a Benzer, / e ao que os trazia, por eles perguntei: / – Senhor, me respondeu, / com estes livros que vós vedes, dois, / e com os outros que ele tem de seu, / fode por eles quanto foder quer.
Vemos pois, que se tratava de uma prática abençoada, a leitura de tais livros, e não o opróbrio a que mais tarde foram sujeitos, leitores e livros. Tal saber, quando adquiro, proporcionava poderes extraordinários, como para o final o poema refere: esconjurar o demónio e libertar mulheres abrasadas pelo fogo de S. Marçal.
Esta aprendizagem de manual, não é, portanto, dos nossos dias, e é de bom conselho a todos os adolescentes antes de se iniciarem nestas práticas, estudar as suas possibilidades e quadro de valores.
Aparentemente o nosso deão seria leitor compulsivo apanhado nas malhas do prazer da leitura como o poema também refere:
e ele dá-lhe tal gozo de os ler /que nunca noite nem dia outro faz;
Do relato do seu servidor saberemos que pela leitura o deão terá atingido alturas de mestre, não tanto Don Juan que parte à conquista, mas uma espécie de prato de mel onde as moscas caem, se não, leia-se:
e sabe da arte do foder tão bem / que com os seus livros d’artes, que ele tem, / fode ele as mouras, cada que lhe apraz.
Pelo que fica dito, o homem não seria guerreiro atrás de troféu de guerra, no tempo em que o vizinho reino de Granada ainda era domínio árabe, antes vencia a guerra com a sua arma biológica, e as voluptuosas odaliscas do imaginário ocidental correriam a banhar-se no prazer de tanta ciência.
Consoante os valores morais em cada época, assim as criações artísticas dando conta da sexualidade humana foram vestidas com capas alegóricas ou metafóricas que permitiam mostrá-la sem recorrer a instrumentos de linguagem visual ou escrita interditos. Os exemplos poéticos abundam até aos nossos dias.
Quando estes critérios não foram respeitados, tais criações foram empurradas para um índex que pretendia torná-las invisíveis aos olhos comuns e arrumados com acesso restrito no que foi chamado de inferno nalgumas bibliotecas. De passagem refiro um saboroso catálogo da BNF, L’Enfer de la Bibliothèque, que dá conta das preciosidades encerradas no Inferno da Bibliothèque Nationale de France, a cujo acervo também pertence a imagem não censurada que abre o artigo.
O poema do sábio rei anda perdido pelas edições eruditas das Cantigas de Escárnio e Maldizer, colhidas nos Cancioneiros da Ajuda, da Biblioteca Nacional e da Biblioteca Vaticana.
Transcrevo uma minha modernização do poema em português actual, de onde provêm as citações, e duas leituras dos manuscritos em galaico-português.
Poema [transcrição modernizada]
Ao deão de Cadiz eu achei
livros que lhe levavam a Benzer,
e ao que os trazia, por eles perguntei:
– Senhor, me respondeu,
com estes livros que vós vedes, dois,
e com os outros que ele tem de seu,
fode por eles quanto foder quer.
E ainda vos hei-de eu mais dizer:
embora na Lei muito seja necessário ler
por quanto eu da sua fazenda sei,
com os livros que tem, não há mulher
a que não faça que semelhem grous
os corvos, e as enguias babous,
por força de foder, se ele quiser.
Cá não há mais, na arte do foder,
do que nos livros que com ele tem;
e ele dá-lhe tal gozo de os ler
que nunca noite nem dia outro faz;
e sabe da arte do foder tão bem
que com os seus livros d’artes, que ele tem,
fode ele as mouras, cada que lhe apraz.
E mais vos contarei de seu saber
que com os livros que ele tem [i] faz:
manda-os ante si todos trazer,
e pois que fode por eles assaz,
se mulher acha que o demo tem,
assim a fode per arte e per sem,
que saca dela o demo malvaz.
E com tudo isto, ainda mais faz
com os livros que tem, por boa fé:
se acha mulher que tenha o mal
deste fogo que de Sam Marçal é,
assim [a] vai por foder encantar
que, fodendo, lhe faz bem semelhar
que é geada ou neve e nada mais.
Poema [transcrição on-line Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-)]
Ao daiam de Cález eu achei
livros que lhe levavam de Berger,
e o que os tragia preguntei
por eles, e respondeu-m’el: – Senher,
com estes livros que vós vedes, dous,
e con’os outros que el tem dos sous,
fod’el per eles quanto foder quer.
E ainda vos end’eu mais direi:
macar [e]na Lei muit’haj[a mester]
leer, por quant’eu sa fazenda sei,
con’os livros que tem, nom há molher
a que nom faça que semelhem grous
os corvos e as anguias babous,
per força de foder, se x’el quiser.
Ca nom há mais, na arte do foder,
do que [e]nos livros que el tem jaz;
e el há tal sabor de os leer
que nunca noite nem dia al faz;
e sabe d’arte do foder tam bem
que con’os seus livros d’artes, que el tem,
fod’el as mouras, cada que lhi praz.
E mais vos contarei de seu saber
que cõn’os livros que el tem [i] faz:
manda-os ante si todos trager,
e pois que fode per eles assaz,
se molher acha que o demo tem,
assi a fode per arte e per sem,
que saca dela o demo malvaz.
E com tod’esto, ainda faz al
con’os livros que tem, per bõa fé:
se acha molher que haja [o] mal
deste fogo que de Sam Marçal é,
assi [a] vai per foder encantar
que, fodendo, lhi faz bem semelhar
que é geada ou nev’e nom al.
Poema [transcrição impressa de Lopes, Graça Videira em Cantigas de Escárnio e Maldizer dos Trovadores e Jograis Galego-Portugueses]
Ao daiam de Cález eu achei
livros que lhe levavam d’aloguer,
e o que os tragia preguntei
por eles, e respondeu-m’el: – Senher,
com estes livros que vós vedes, dous,
e cõn’os outros que el tem dos sous,
fod’el per eles quanto foder quer.
E ainda vos end’eu mais direi:
macar no lei[to] muita[s el houver],
por quanto eu [de] sa fazenda sei,
cõn’os livros que tem, nom há molher
a que nom faça que semelhem grous
os corvos e as anguias babous,
per força de foder, se x’el quiser.
Ca nom há mais, na arte do foder,
do que [e]n’os livros que el tem jaz;
e el há tal sabor de os leer
que nunca noite nem dia al faz;
e sabe d’arte do foder tam bem
que cõn’os seus livros d’artes, que el tem,
fod’el as mouras, cada que lhi praz.
E mais vos contarei de seu saber
que cõn’os livros que el[e] tem faz:
manda-os ante si todos trager,
e pois que fode per eles assaz,
se molher acha que o demo tem,
assi a fode per arte e per sem,
que saca dela o demo malvaz.
E com tod’esto, ainda faz al
con’os livros que tem, per bõa fé:
se acha molher que haja [o] mal
deste fogo que de Sam Marçal é,
assi [a] vai per foder encantar
que, fodendo, lhi faz bem semelhar
que é geada ou nev’e nom al.
Notas sobre a modernização e bibliografia
Berger [v.2], palavra de transcrição controversa, adoptei a leitura de José Pedro Machado assumindo que se pode tratar da palavra Benger, com significado de Benzer.
[v. 3 e 4] Inverti a ordem das palavras sem alteração de significado para assegurar a rima com o verso 6.
Traduzi macar e mester [v. 9] com o significado atribuído por Carolina Michaëlis de Vasconcelos no Glossário do Cancioneiro da Ajuda publicado na Revista Lusitana XXIII [A] e reproduzido como anexo na edição fac-símile do Cancioneiro da Ajuda feita pela INCM EM 1990.
Este verso 9 de leitura muito imprecisa conduz a transcrições de significado díspar. Veja-se a transcrição de Graça Videira Lopes na edição impressa do poema, que nos acréscimos entre [] dá do verso esta leitura: marcar no lei[to] muita [s el houver]. — ainda que no leito muitas ele houver.
[A] é inequívoca ao dar para lei o sentido de religião monoteísta, daí a minha opção de modernização.
Mantive fazenda [v. 10] com o significado de situação, negócio [A].
sabor – o mesmo que gozo, prazer, [A].
Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em (indicar data da consulta)] Disponível em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt>.
Cantigas de Escárnio e Maldizer dos Trovadores e Jograis Galego-Portugueses, edição de Graça Videira Lopes, Editorial Estampa, Lisboa 2002.
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