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O Labirintodonte e para que serve a Poesia

21 Quinta-feira Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Portuguesa do sec. XX

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Alberto Pimenta, Fausto Guedes Teixeira, José Gomes Ferreira, Karel Appel, Ovídio

Bebo, logo existo, foi o título escolhido por um filósofo que leio com agrado, Roger Scruton, para desenvolver uma reflexão sobre pensar o vinho. Matéria de prazer, pensar e existir, afinal aquilo que faz o homem e nem sempre fácil de praticar. Que o diga o meu interlocutor imaginário:
— Isto de existir tem que se lhe diga. Estudar, o emprego, a família, a saúde: adoro queijo, será que tenho colesterol alto? Engordei, não me serve a roupa, conseguirei ir pelo menos três vezes ao ginásio esta semana? Uff! E ainda vêm com poesia… Amor!, coisas do género:

 

Amar ou odiar: ou tudo ou nada! / O meio termo é que não pode ser
A alma tem d’estar sobressaltada / P’ra o nosso barro se sentir viver.
… (*)

 

Bah!… Esta gente terá noção do que é viver todos os dias? Ainda se falassem de sexo. De sexo uma pessoa gosta.
— Pois é, digo eu, a vida não é fácil!…
— E então a poesia para que serve?
— Distrai-nos, quem sabe? Às vezes ajuda a viver melhor, a sua companhia. Mas isto é opinião suspeita.
Deixo-lhe, céptico(a) leitor(a), uma pequena amostra:

 

Viver sempre também cansa.
…
Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
…
E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?
… (**)

 

Que tal a sugestão do poeta: morrer por um bocadinho, / de vez em quando, / e recomeçar depois, / achando tudo mais novo? Já tinha pensado nisso? Lá se acabavam os Uff!

E agora, o que dizer do sexo? É do que mais a poesia fala, às escondidas, ou às claras. Depende de como correm os tempos:

 

…
Quando ela surgiu diante de meus olhos, o manto caído aos pés,
no corpo inteiro nem uma só mácula se me mostrou:
Que ombros! Que braços eu vi e toquei!
A beleza dos seios, como se pôs a jeito dos meus afagos!
Como era liso, abaixo da linha do peito, o ventre!
Que grandiosidade e perfeição nas coxas! Que frescura nas pernas!
Que mais minúcias direi? Nada vi que não mereça elogio,
e foi a nudez do seu corpo que apertei contra o meu.
O resto, quem o não sabe? Depois da fadiga, repousámos ambos.
Assim possam correr muitas vezes as minhas tardes!
(***)

 

Quem não o deseja?
Isto escreveu Ovídio há mais de 2000 anos, pois terá morrido por volta do ano 17 ou 18, ainda Cristo vivia. De então para cá é falar do mesmo sempre de diferentes formas. E esse é um dos mistérios da poesia: do velho fazer o novo.

Os poemas, às vezes, até libertam a imaginação, e despertam para o que nunca pensámos, fazendo-nos olhar o mundo de outra maneira. E a Poesia é cheia de mistérios, como sabe quem a lê. Quem não a lê não os conhece. Um dos mistérios que revelo hoje é a existência do Labirintodonte, para benefício de quem lê poesia uma vez por ano. Oxalá consiga o(a) leitor(a) decifrar o seu mistério.

 

Vamos então ao Labirintodonte. Sabemos o que não é:
1) não é uma ave;
2) não é um elefante;
3) não é um réptil;

 

Então o que é?
a) anda de pé como o chimpanzé;
b) é o pretendente de la vache qui rit;
c) é um bicho de seu natural pensativo.

 

O mistério está quase a nu, e assim não vale. Há que ler até ao fim para, talvez, desvendar o enigma. Afinal, o que é a vida sem mistérios? Apenas acrescento que o demiurgo, autor de tão extraordinária criatura na forma escrita, foi Alberto Pimenta (1937), e deu-nos a conhecer um ser que só se pensar sabe que está vivo, se não é apenas carne. Pronta para o matadouro(?).

 

 

O Labirintodonte

O Labirintodonte
não é uma ave
de emigração
como o porfirião
nem um
mamífero petulante
como o elefante
nem um
réptil repelente
como a serpente
o labirintodonte
anda de pé
como o
chimpanzé
e o sagui
e é o pretendente
de
la vache qui rit
é um bicho
de seu natural pensativo
pois precisa
de pensar
para saber
que está vivo.

in O Labirintodonte, edição do autor, 1970.

 

E por hoje terminamos com poesia. Para o ano haverá novo Dia. Felicidades.

Notas
(*) Fausto Guedes Teixeira, encontra-o aqui.
(**) José Gomes Ferreira, encontra-o aqui.
(***) O poema de Ovídio encontra-o aqui, e aqui, em várias versões.

Abre o artigo a imagem de um outro ser imaginário, O Homem da terra, desta vez o demiurgo foi Karel Appel (1921-2006). Deu-lhe existência em 1960, antes, portanto, de o Labirintodonte ser concebido, mas o labirinto da vida já surgia a seus pés. Só não sabemos se já precisava pensar para saber que estava vivo, e por isso, lia poesia.

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Amor de centauros num fragmento de Metamorfoses de Ovídio

31 Segunda-feira Ago 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Ovídio, Rubens

Rubens - Amor de Centauros 500pxOs seres imaginários parcialmente humanos, nas suas acções e comportamentos lendários dão em geral conta do lado bestial da humanidade. Despidos da razão e livres das convenções das sociedades humanas, permitem o retrato dos instintos à solta, sendo com isso a mitologia que os envolve exemplar.

Hoje são os centauros que vêm à conversa através de dois fragmentos de Metamorfoses de Ovídio na que é conhecida como a batalha com os Lápitas, povo da Tessália na Grécia.

Os centauros são seres monstruosos, meio homem, meio cavalo. Têm busto de homem e às vezes, também as pernas, mas a parte posterior do corpo, a partir do busto, é de cavalo e, pelo menos na época classica, têm quatro patas de cavalo e dois braços de homem. Vivem nas montanhas e nas florestas, alimentam-se de carne crua e têm costumes extremamente brutais.

in Pierre Grimal, Dicionário da Mitologia, Difel, Lisboa, 1992.

 

Transcrevo parte do relato da batalha entre centauros e humanos onde à justiça do pretexto se sucedem as atrocidade da luta.

 

Metamorfoses, Livro XII, 210-225

 

…

‘O filho do audaciosa Ixíon desposara Hipodamia, e convidara

os ferozes filhos da Nuvem [os centauros] a participar no banquete, em mesas

dispostas em filas dentro de uma gruta coberta por árvores.

Estavam presentes os chefes da Hemónia, eu próprio lá estive;

e o palácio em festa ressoava com a algazarra confusa da turba.

Eis que cantam Himeneu, o átrio enche-se do fumo das tochas,

avança a noiva rodeada de uma caterva de matronas e moças,

ela de deslumbrante beleza. Afortunado chamámos a Pirítoo

por ter tal esposa. Por pouco não nos enganámos no augúrio.

O caso é que, ó Êurito, ó mais feroz dos ferozes Centauros,

o teu coração se inflama, tanto pelo vinho, como pela visão

da jovem, e reina em ti a embriaguez duplicada pelo desejo.

De imediato, reviradas as mesas e destroçado o banquete,

a recente esposa é levada à força, arrastada pelos cabelos.

Êurito rapta Hipodamia, cada um dos outros a que lhe apraz

ou a que podia: era a imagem de uma cidade conquistada!

…

 

O relato prossegue com a ferocidade da batalha e a bestialidade dos comportamentos até que mais à frente encontramos um casal de centauros capaz dos sentimentos do amor e sacrifício.

Descrição onde a harmonia que a beleza convoca se reparte pelos detalhes da sedução amorosa. Acontece a este amor, pelo decurso da batalha, um pungente desenlace:

 

Metamorfoses, Livro XII, 393-428.

…

‘Nem a tua formosura, Cílaro, te salvaguardou do combate

(se na verdade, admitimos que tal natureza tem formosura).

A barba despontava e era da cor do ouro, e da cor do ouro

os seus cabelos caíam dos ombros até meio das omoplatas;

no rosto, um vigor encantador; a nuca, os ombros, as mãos,

o peito e tudo aquilo que nele humano era, assemelhava-se

às estátuas aplaudidas de um escultor. A sua parte equina era

irrepreensível, não inferior à humana: dá-lhe pescoço e cabeça,

e seria digno de Castor. Tão apropriado à sela é o seu dorso,

tão robusto e musculoso é o peito. É todo negro, mais negro

que negro pez, mas alva é a cauda, e de cor alva as patas.

Muitas da sua raça suspiraram por ele, mas só Hilómene

o arrebatou: fémea mais deslumbrante entre aqueles seres

meio-amimais jamais habitou nas profundezas das florestas.

Foi a única que conquistou Cílaro, com carícias, com amor

e declarações de amor. E procura também arranjar-se, tanto

quanto o corpo o permite: ora alisa os cabelos com o pente,

ora se atavia com grinaldas de rosmaninho, ora de violetas

e de rosas, outras vezes trazendo brancos lírios;

duas vezes ao dia lava o rosto no ribeiro que desliza do cimo

da floresta de Págasas, duas vezes mergulha o corpo no rio.

E, pendentes do ombro ou do flanco esquerdo, não usa peles,

senão as que lhe assentam bem, e de animais seleccionados.

O amor neles era igual. Deambulavam pelas serranias juntos,

juntos entravam nas grutas. Também então entraram juntos

no palácio do Lapita, e juntos enfrentaram a feroz batalha.

 

‘Quem lançou não se sabe, mas eis que um dardo é disparado

da esquerda e crava-se em ti, Cílaro, pouco abaixo onde o peito

sucede ao pescoço. Ao extraírem o dardo, o coração, atingido

por pequena ferida, vai-se esfriando junto com o corpo todo.

De imediato, Hilómene toma nos braços o corpo moribundo,

e, pressionando com a mão, tenta acalmar a ferida, e encosta

os lábios aos lábios dele, e procura travar a alma que foge.

Mas quando o vê morto, com palavras que o clamor impediu

de chegar aos meus ouvidos, deixou-se cair sobre o dardo

que nele estava cravado, e morreu abraçada ao marido.

…

 

Transcrito de Ovídio, Metamorfoses, tradução de Paulo Farmhouse Alberto, Livros Cotovia, Lisboa, 2007.

 

Nota iconográfica

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Rubens (1577-1640).

Se a pintura mitológica de Rubens ressuma erotismo, foi através deste  pequeno quadro da colecção Gulbenkian que passei a olhá-la integrando esta dimensão. Enquanto as telas gigantescas nos esmagam com a sua grandiloquência, nesta pintura, que pelas dimensões permite uma simultânea apreensão de conjunto e a observação do pormenor, o nervoso da pincelada dá conta de forma genial, da excitação que move os centauros na sua corrida, que, supomos, é para a materialização do prazer. A força animal que envolve o prazer erótico humano salta nesta alegoria, onde os centauros macho e fémea incorporam a violência do desejo que urge satisfazer.

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Prazer e idade em Ovídio para uma pintura de L.-J.- F. Lagrenée

17 Terça-feira Dez 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Erótica, Poesia Antiga

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Louis-Jean-François Lagrenée, Ovídio

NM 840Poucas vezes a pintura cristalizou em gesto a ternura, o desejo, o encanto do outro, o amor, como L.J. F. Lagrenée (1724-1805) neste par amoroso adolescente. Este enlevo só foge com a idade se o deixarmos. A rotina, a certeza do outro dando por adquirido um patamar de paixão, são inimigas constantes da continuidade de uma relação no tempo. Se factores externos, que muitas vezes não controlamos, contribuem para o fim de uma ligação amorosa, componentes há que estão ao alcance de ambos: é seguir os concelhos de Ovídio que, no fragmento de Arte de Amar a seguir transcrito, mostra já saber da existência do ponto G, expectativa e angústia do seu fruir nos nossos dias.

Livro II, versos 717-728

Acredita no que te digo: não deve apressar-se o prazer de Vénus,

mas sim, discretamente, fazer por retardá-lo e demorá-lo.

Quando descobrires o ponto onde a mulher se excita ao ser tocada,

não seja o pudor a impedir-te de o tocar;

verás os seus olhos a brilhar de fogo cintilante,

como tantas vezes o sol reflete a luz na superfície da água;

far-se-ão ouvir queixumes, far-se-á ouvir um encantador sussurro

e doces gemidos e palavras apropriadas ao prazer.

Mas não deixes para trás a tua parceira, desfraldando mais largas velas,

nem seja mais rápido o ritmo dela que o teu;

avançai para a meta ao mesmo tempo; então, será pleno o prazer,

quando par a par, jazerem, vencidos, a mulher e o homem.

Aqui está a provável origem do mito da indispensabilidade do orgasmo simultâneo para um prazer pleno, coisa que numa tarde de amor se revela bem secundária, quando o ir e vir nos permite permanecer no que sexólogo chamam estado de  plateaux ou parecido.

NM 840

Mas continuemos que há mais conselhos, desta vez sobre carpe diem, gozar o dia que passa. Consta do Livro III, agora dedicado às mulheres, neste precioso Arte de Amar, e transcrevo os versos 59-66.

Tende desde já na lembrança que a velhice há-de chegar;

e não deixeis, por isso, esvair-se tempo algum na ociosidade;

enquanto vos for consentido e conservardes, ainda, a idade da Primavera,

gozai; vão-se os anos, do mesmo modo que a água corrente;

nem a onda que passou voltará de novo a ser chamada,

nem a hora que passou logra tornar atrás.

Há que aproveitar a idade. Com passo rápido se escapa a idade,

e não é tão boa a que vem depois, quão boa foi a que veio antes.

Felizmente no tempo que nos é dado viver a Primavera é longeva, mas a certa altura vai dando sinais de querer partir.

Transcrevi da tradução de Carlos Ascenso André, Arte de Amar, Livros Cotovia, Lisboa, 2006.

A pintura de Louis-Jean-François Lagrenée pertence à colecção do Museu Nacional da Suécia, e aqui a deixo na totalidade.

NM 840

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Pais e filhos e o mito de Ícaro – fragmento de Metamorfoses de Ovídio

16 Segunda-feira Set 2013

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Antiga

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Ícaro, Metamorfoses, Ovídio, Rubens

Rubens - A queda de Ícaro 1636É conhecida a história do menino que depois do almoço queria ir para a piscina. Dizia-lhe a mãe:

– Não podes, ainda não fizeste a digestão. E o menino senta-se, olhos marejados, dificilmente contendo o choro.

Passado algum tempo, vira-se para mãe com olhar interrogativo, e de novo a resposta:

— Sem fazer a digestão não podes ir ao banho.

O menino enche o peito de coragem e entre lagrimas, balbucia:

— Mas, mãe, eu não sei como se faz a digestão!

Os desafios da educação no propósito de fazer crescer os filhos são enormes e por vezes inesperados. Mas o cuidado com eles e o desejo de que a vida lhes corra bem é de sempre.

Chega-nos da Grécia arcaica o mito sobre esta complexidade de crescer, entre a prudência que a idade aconselha e o gosto pelo novo que a descoberta do mundo e o caminhar pelo seu próprio pé desafia.

A partir de certa idade na vida é deixá-los ir, e confiar que o que connosco aprenderam lhes evite a sorte de Ícaro relatada no mito de que hoje aqui falo.

É ao poeta latino Ovídio (43 a.C.—17 d.C.) e ao seu poema Metamorfoses que vou buscar um dos relatos que nos chegaram sobre esta aventura de viver, dando conta de como a juventude nos leva por vezes a imprudências de consequências irreversíveis. Voar sim, buscar o mundo também, mas saber que o que brilha também pode queimar e que as asas com que vamos correr o mundo podem ser frágeis como cera e numa volta do caminho derreter, fazendo-nos precipitar para uma qualquer espécie de morte, ainda que figurada, é conhecimento que vale a pena meditar.

Vejamos então a história contada por Ovídio com uma arte difícil de suplantar na forma como nos vai desenhando personagens, enquadramento local, e desenvolvimento temporal, até à precipitação dos acontecimentos para que fomos subtilmente preparados.

Estamos no Livro VIII de Metamorfoses.

Depois de descrever como Dédalo, pai de Ícaro, construíra para o rei Minos de Creta o labirinto onde aprisionar o Minotauro, passa a contar a história que nos interessa:

Entretanto, Dédalo odiava Creta, odiava o longo exílio,

morto de saudades da terra natal. O mar aprisionava-o.

“Embora ele barre o meu caminho com as terras e o mar”,

disse, “ao menos, o céu está sempre aberto. Iremos por aí!

Minos pode ser dono de tudo, mas não é dono dos ares.”

Assim dizendo, aplica o seu talento a artes desconhecidas

e revoluciona a natureza. De facto, dispõe penas em filas,

[começando pelas mais curtas, a curta seguindo a longa]

a ponto de se julgar crescerem num declive: assim cresce

gradualmente a flauta campestre com as suas canas desiguais.

Depois, prende-as a meio com um fio e a base com cera,

e, tendo-as assim prendido, dobra-as em suave curvatura

para imitar as aves verídicas. Com ele está o menino,

Ícaro. Sem saber que mexia em algo para si tão perigoso,

ora, de cara risonha, tentava apanhar as penas que a brisa

vagabunda movia, ora amolecia com o polegar a loira cera;

e com esta brincadeira atrapalhava o espantoso trabalho

do pai. Quando deu o toque final ao que tinha planeado,

o artífice aventurou-se a equilibrar o próprio corpo

no par de asas, e ficou suspenso no ar, assim agitado.

 

Equipando também o filho, disse: “Voa a meia altura, Ícaro,

recomendo-te, para que, se fores demasiado baixo, o mar

não pese nas penas, e, demasiado alto, não as queime o fogo.

Voa entre um e outro; não te ponhas, advirto, a contemplar

Bootes ou a Hélice ou a espada desembainhada de Orion.

Vem atrás de mim: eu guiar-te-ei.”. Ao mesmo tempo que dá

tais instruções de voo, ajeita-lhe as inéditas asas nos ombros.

No meio do labor e advertências, molham-se de lagrimas

as envelhecidas faces, tremem as mãos de pai. Beija o filho,

beijos que jamais repetiria; e, elevando-se graças às asas,

levanta voo à frente. Tal como a ave ao guiar as frágeis crias

para fora do alto ninho pelo ar, ele receia pelo companheiro;

exorta-o a que o siga, e ensina-lhe as ruinosas artes

[e, batendo as asas, vai olhando para trás para as do filho].

Viu-os com espanto alguém que pescava com a trémula cana,

ou algum pastor arrimado ao cajado ou lavrador à rabiça

do arado, julgando que eram deuses aqueles que tinham

o poder de viajar pelos céus.

E já à já esquerda ficava

a Samos de Juno (para trás haviam deixado Delos e Paros),

e, à sua direita, Lebinto, tal como Calimne, rica em mel,

quando o rapaz começa a achar gozo no audacioso voo

e se afasta do guia. Arrastado pelo seu fascínio pelo céu,

rumou para as alturas. Ora, a vizinhança do sol voraz

amolece as odoríferas ceras que colavam as penas:

a cera derrete-se. Bem lá agita o rapaz os braços nus,

mas, sem asas para bater, não logra apanhar ar algum.

E a boca que gritava o nome do pai é acolhida pelas águas

azul-esverdeadas, que dele obtiveram o seu nome.

O pobre pai (que já nem pai era), “Ícaro!”, chamava,

“Ícaro!”, berrava. “Onde estás? Onde hei-de procurar-te?

“Ícaro!”, gritava. Então avistou penas a boiar nas ondas.

…

Tradução de Paulo Farmhouse Alberto

Ovídio, Metamorfoses, edição Livros Cotovia, Lisboa 2007.

Oxalá o extracto tenha despertado em algum leitor o gosto e desejo de ler tão bela obra.

Existe em português uma outra tradução moderna de Metamorfoses, esta bilingue latim/português, em dois volumes, da autoria de Domingos Lucas, edição Nova Vega, Lisboa 2006.

Vale ainda a pena a leitura dos fragmentos da obra traduzidos por Bocage.

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Tarde de amores — visão de Filinto Elysio e a tradução do original de Ovídio

16 Sexta-feira Ago 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Crónicas, Poesia Antiga

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Filinto Elysio, Giorgio Morandi, Ovídio

Morandi_Giorgio-Still_Life-c._1925…
O quarto decorado em tons pastel lembrava uma pintura de Morandi, transpirava uma atmosfera diáfana e convidava ao repouso. A luz coada pelas cortinas punha sobre os móveis encerados um dourado acolhedor. Ao longe, pela janela, espreitava o mar fundido num céu sublime, a brisa suave da tarde esvoaçava os cortinados e lambia os corpos em êxtase, deitados sobre o prazer.

No remanso da paixão contava-lhe histórias infantis. A magia que o êxtase criara prolongava-se agora no calor da voz e nas caricias que suavemente acompanhavam as peripécias ali inventadas…

fragmento de novela inédita.

Morandi_Giorgio-Passage 1913

Por estas tardes de brasa lembro-me frequentemente do poema 5 do Livro I da obra Amores de Ovídio (43 a.C -17/18 d.C.).

Corria uma tórrida tarde de Verão do ano passado quando deixei no blog a leitura do poema por David Mourão-Ferreira. Hoje a ele regresso com a visão de Filinto Elísio (1734-1819) e as convenções que o século XVIII permitia, mesmo quando o poema fosse publicado sob pseudónimo, como aconteceu.

Partia o dia em meio o sol calmoso;
Reclino o corpo a descansar no leito,
Mas aberta janela, e mal cerrada;
Qual usa premoiar a luz nos bosques,
Qual crepúsculo deixa, ao despedir-se,
Febo, ou foge a noite, à vista da alva,
Luz, que convém às moças vergonhosas,
E em que o tímido pejo ache escondrijo.
Eis vem Corina, em mal cingidas roupas,
(Sólta a madeixa e níveo peito oculta)
Qual Semíramis ( diz-se) ao leito fôra,
Gentil, e fôra Laís, de muitos dama.
Dispo-lhe a roupa, (que empecíamos pouco
De rara!) Ela pugnava por cobrir-se;
Mas, como que não quer vencer, pugnava.
Mal esteve ante meus olhos toda nua,
Não lhe vi um senão no corpo todo.
Quais vi, quais os palpei, ombros e braços!
Quais maminhas tão guapas de empalmá-las!
Que liso o ventre desce do alto peito!
Que cintura, e infantis, roliças coxas!
Que mais direi! mimoso é quanto hei visto,
E toda com o meu corpo a cingi nua.
Que há mais que ouvir? Cansámos, descansámos;
Corram-me a fio tais os meios-dias.

Filinto Elísio assinado com o pseudónimo Gregório da Silva Pinto.

Acrescento em fim de festa a viva tradução directa a partir do original latino, por Carlos Ascenso André.

Fazia calor e o dia já tinha cumprido metade das suas horas;
pousei em cima da cama o corpo para lhe dar descanso.
Uma parte da janela estava aberta, a outra parte fechada;
assim era a luz, como a que os bosques costuma deixar entrever,
como a penumbra do crepúsculo, à hora em que o sol se esvai,
ou quando a noite já se foi e não nasceu, ainda, o dia;
essa é a luz que deve amostrar-se a jovens recatadas;
nela, a timidez e a vergonha encontram refúgio.
Eis que surge Corina, resguardada e envolta na sua túnica,
os cabelos caídos de ambos os lados do colo resplandecente,
assim formosa entrava Semíramis no quarto,
diz-se, e Laís, amada por tantos homens.
Arranquei-lhe a túnica; e não é que me estorvassem muito a sua transparência,
mas ela porfiava por estar coberta daquela túnica;
pois que porfiava assim como quem não quer vencer,
foi vencida sem custo, com a sua própria ajuda.
Quando ela surgiu diante de meus olhos, o manto caído aos pés,
no corpo inteiro nem uma só mácula se me mostrou:
Que ombros! Que braços eu vi e toquei!
A beleza dos seios, como se pôs a jeito dos meus afagos!
Como era liso, abaixo da linha do peito, o ventre!
Que grandiosidade e perfeição nas coxas! Que frescura nas pernas!
Que mais minúcias direi? Nada vi que não mereça elogio,
e foi a nudez do seu corpo que apertei contra o meu.
O resto, quem o não sabe? Depois da fadiga, repousámos ambos.
Assim possam correr muitas vezes as minhas tardes!

Temos assim que para o verso de maior escândalo no poema:

forma papillarum quam fuit apta premi!

Filinto Elysio no descaro do pseudónimo nos dá no final do século XVIII

Quais maminhas tão guapas de empalmá-las!

E o nosso jovem tradutor no século XXI lê:

A beleza dos seios, como se pôs a jeito dos meus afagos!

Venha um professor de latim dilucidar as opções de tradução, porque em poesia, Filinto Elysio continua melhor, ainda que o empalmá-las surja hoje quase calão. Mas na verdade, fuit apta premi transmite um prontas a cingir, espremer, o que nestes preparos de cama é o natural. E empalmar dá mais a medida da coisa, que afago.

Nota bibliográfica
O poema por Filinto Elysio consta do Tomo 5º das suas Obras Completas, Paris, Na oficina de A. bobée, 1818. Modernizei a ortografia.

Ovídio, Amores, tradução de Carlos Ascenso André, Livros Cotovia, Lisboa, 2006.

Nota iconográfica

A pintura de Giorgio Morandi (1890-1964), dá a cor. O que de tarde acontece fica para a imaginação de quem lê, um dos prazeres da literatura.

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Um epigrama de Marcial

21 Domingo Out 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Erótica, Poesia Antiga

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Jan Gossaert, Marcial, Ovídio

Foi no reboliço intelectual que acompanhou e precedeu a reforma protestante, que o nu integral surgiu na pintura do norte da Europa: Alemanha, Flandres e Holanda. É então que as pinturas com Adão e Eva, das quais já arquivei no blog algumas de Lucas Cranach, se tornam frequentes. No entanto, a que parece ser a primeira figuração moderna da mulher em nu frontal é a pintura que abre este artigo e representará, não Adão e Eva, mas Neptuno e Anfitrite, datada de 1516 e pintada por Jan Gossaert (1462/70-1533/41).

Como se vê, se a mulher surge nua, o homem ainda aparece com os genitais cobertos por um estojo peniano de conforto duvidoso, digo eu. Passarão poucos anos para que o homem, nu, figurando Adão, surja na pintura ocidental, para de novo voltar a desaparecer até aos nossos dias.

A propósito de estojos penianos, vale talvez a pena referir que Claude Levi-Strauss no seu belo livro Saudades do Brasil, mostra um habitante de uma aldeia Bororo, junto ao rio São Lourenço (afluente do rio Cuiabá) usando um estojo equivalente. E refere ainda como em dias de festa este estojo se ornamentava com um mosaico de plumas e uma bandeirola de palha brasonada com os sinais distintivos do clã do portador. É sempre fascinante percorrer as oscilações históricas dos costumes em torno do corpo.

Na conversa que aqui deixei ontem a propósito da argumentação clássica acerca da posição “cavalo de Heitor” mais nenhum aspecto das actividades em torno do sexo foi tratado. Mas os prazeres de mão também contam e o nosso professor Forberg a eles não se eximiu:

Não despraz tampouco aos que no vigor da idade e aptos a acariciar as raparigas, ter amantes cujas mãos não fiquem preguiçosas na cama e cujos dedos saibam o que têm a fazer nessa regiões onde Amor esconde as suas setas.

Cita Aristófanes, passa a Ovídio (43a.C.-18(?)d.C.), e da sua obra Amores dá-nos:

A esta coisa aqui, a minha amada não se furtou, mesmo,
a despertá-la, com doces movimentos da sua mão
Livro III, 7, 73-74

e de seguida, referindo-se a Ulisses no epigrama 104 do Livro XI, de Marcial, transcreve:

e, embora o Ítaco roncasse, a púdica Penélope
sempre lá no sítio costumava ter a mão.

Neste epigrama de Marcial dá-se conta de uma lista de queixas sobre o que a mulher não lhe faz por comparação com o que gozam casais notáveis.

No outro dia, ao ver o filme Terapia a dois, com Meryl Streep e Tommy Lee Jones, numa das cenas de consultório quando o psicólogo se virou para Tommy Lee Jones e lhe perguntou: que desejos tem que a sua mulher não satisfaz?, esperei que saísse uma lista semelhante ao cardápio de Marcial. Afinal não, só gostava, e queria, que ela lhe chupasse o pénis, o que a partir daí condiciona o desenvolvimento da história, é bem de ver.

Mas voltando a Marcial, a lista é mais longa e aí a têm:

Livro XI, Epigrama 104

Põe-te a andar, mulher, ou partilha os meus hábitos:
eu não sou nenhum Cúrio nem Numa nem Tácio
Eu aprecio as noites passadas entre alegres copos:
tu sais à pressa da mesa, sisuda, mal bebes a água.
Tu gostas do escuro: a mim agrada-me brincar
com a lâmpada a ver e romper as ilhargas com luz a entrar.
Faixas e túnicas e negros mantos te escondem,
mas comigo mulher alguma está nua o bastante.
Cativam-me os beijos que imitam a doçura das pombas:
tu dás-me os mesmos que dás à tua avó pela manhã.
Nem com meneios nem palavras nem dedos te dignas
ajudar ao acto – é como se servisses incenso ou vinho puro;
masturbavam-se atrás da porta os escravos frígios,
sempre que a esposa montava Heitor a cavalo
e, embora o Ítaco roncasse, a púdica Penélope
sempre lá no sítio costumava ter a mão.
Não deixas que te encabe: mas Cornélia dava-o a Graco,
Júlia a Pompeio, e Pórcia a ti, Bruto,
quando o Dardânio não misturava ainda, como escanção,
as doces bebidas, Juno fazia de Ganimedes para Jove.
Se gostas de austeridade, deixo-te ser Lucrécia até mesmo
o dia inteiro: mas à noite quero uma Laís.

 

Noticia bibliográfica

A tradução do epigrama de Marcial é de Delfim Ferreira Leão e pertence ao tomo IV dos Epigramas de Marcial publicados por Edições 70, Lisboa 2004.

A tradução dos dois versos de Amores, de Ovídio, é de Carlos Ascenso André, na edição de Livros Cotovia, Lisboa 2006

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A propósito de “Cavalo de Heitor” com Ovídio e Apuleio

21 Domingo Out 2012

Posted by viciodapoesia in Erótica, Poesia Antiga

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Apuleio, Friedrich-Karl Forberg, Marcial, Ovídio

Vale sempre a pena regressar aos clássicos, e agora, quando As cinquenta sombras de Grey provoca tamanha excitação, mais razões se conjugam.

Um filosofo alemão, Friedrich-Karl Forberg (1770-1848), discípulo e colaborador de Fichte, o filósofo do Idealismo Alemão, entreteve as horas de ócio compondo uma curiosa obra em latim, De figuris Veneris, que poderia traduzir livremente por As posições do Amor, onde compilou com o método e zelo proverbiais aos alemães, um catálogo extenso das posições documentadas na literatura clássica para a pratica do sexo. Do livro fez uma pequena e cuidada edição que ofereceu a amigos.
Tão erudito, saboroso e estimulante livro, não sei se faria hoje as delicias dos leitores de Grey, mas a prática de muito do que lá se contém leva ao paraíso quem a ela se decidir. O nosso circunspecto professor, com a ironia com que escreve todo o livro, avisa-nos a abrir:

Pretendemos passar em revista as diversas metamorfoses de Vénus: não todas, na verdade; como seria possível enumerar as mil invenções (Ovídio, Arte de Amar, I, 433-434), as mil posições a que ousa recorrer a engenhosa satisfação do prazer? mas pelo menos as que, atendo-se a géneros determinados, se prestam facilmente a uma classificação metódica. Não vá, leitor curioso, criar falsas expectativas. Não somos homem em busca de gloria, desvendando o resultado de experiências pessoais, ou de ensaios novamente tentados neste género de esgrima: nem fizemos ainda a nossa própria aprendizagem.

Não vou evidentemente transladar o livro para aqui, o que transformaria o blog num êxito comparável às ditas sombras, mas apenas apresentar uma posição que aprecio especialmente. Chama-lhe o professor “Cavalo de Heitor” e descreve-a do seguinte modo:

Chegamos agora à figura segundo a qual o homem deitado de costas tem comércio com a mulher curvada sobre ele. A mulher, estando os papeis trocados, faz então a função de cavaleiro, o homem a de cavalo. Chamava-se a esta posição o cavalo de Heitor.

Cita, primeiro Marcial (40-102(?)), com o epigrama 104 do Livro XI

…

sempre que a esposa montava Heitor a cavalo

e continua o nosso autor, passando a Ovídio (43a.C.-18(?)d.C.) e à sua Arte de Amar, dando conta de que esta posição não poderia dar prazer a Andrómaca (a amazona (esposa) que montava Heitor) por esta ser de grande estatura, motivo porque duvida que tal posição lhe fosso agradável ou mesmo possível. É às mulheres de pequena estatura que a posição convém, sublinha.

Da minha experiência posso dizer que a estatura não tem sido impedimento de prazer sublime.

Mas voltando a Ovídio, a quem tal consideração se deve, temos então os versos 779-780 do Livro III de Arte de Amar:

a de baixa estatura deve montar como a cavalo; por ser muito alta, nunca
a tebana [Andrómaca] casada com Heitor adoptou a posição do cavaleiro;

Duvido que o poeta lá tivesse estado para ver. Deve estar a falar por puro preconceito.

Ainda tratando desta posição para o amor, continua o nosso filósofo a viagem pelos autores clássicos que a referiram, e passa a Horácio e a uma das suas sátiras. Avança depois por Aristófanes (447a.C. – 383a.C.) e no verso 677 de Lisistrata encontra a afirmação:

A mulher gosta de montar a cavalo, e aí mantêm-se firme.

Concluímos esta equitação amorosa com Apuleio (125-170) e uma cena entre Lúcio e Fótis extraída de O burro de ouro, Livro 2, 16. 4:

… subiu para o leito, instalou-se devagar sobre mim e começou a manobrar rapidamente para cima e para baixo, agitando o ágil torso com movimentos lúbricos, até saciar-me com o fruto desta Vénus de baloiço.

Feita esta viagem pela posição de cavalgada, tantas vezes heróica, não me despeço sem convidar o leitor(a) a um pouco de Arte de Amar de Ovídio, mais precisamente aos versos 703 e seguintes do Livro II da obra, com a convicção de que nas obras de que aqui tratei se fala com a sabedoria que a experiência acumulou, do que à humanidade mais importa.

Eis que um leito acolheu, cúmplice, dois amantes;
diante das portas fechadas da alcova, ó Musa, sustém o passo!
Espontaneamente, sem a tua ajuda, palavras mil hão-de ser ditas,
e não se quedará inerte no leito a mão esquerda;
hão-de os dedos inventar que fazer naqueles sítios
em que às escondidas, mergulha as suas setas o Amor.
Isto mesmo fez outrora em Andrómaca o valente Heitor;
não era apenas para a guerra que ele tinha préstimo;
fazia-o, também, na sua cativa de Lirnesso, o grande Aquiles,
quando se deixava cair, cansado de inimigos, sobre a suavidade do leito;
com aquelas mãos, ó Briseida, consentias tu que te tocasse,
elas que estavam sempre encharcadas de sangue frígido;
era isso mesmo, porventura, ó mulher desregrada, que te dava prazer?
Que o teu corpo o percorressem mãos triunfantes?
Acredita no que te digo: não vê apressar-se o prazer de Vénus,
mas sim, discretamente, fazer por retardá-lo e demorá-lo.
Quando descobrires o ponto onde a mulher se excita ao ser tocada,
não seja o pudor a impedir-te de o tocar;
Verás os seus olhos a brilhar de fogo cintilante,
Como, tantas vezes, o sol reflecte a luz na superfície da água;
far-se-ão ouvir queixumes, far-se-á ouvir um encantador sussurro
e doces gemidos e palavras apropriadas ao prazer.
Mas não deixes para trás a tua parceira, desfraldando mais largas velas,
nem seja mais rápido o ritmo dela que o teu;
avançai para a meta ao mesmo tempo; então, será pleno o prazer,
quando, par a par, jazerem, vencidos, a mulher e o homem.
Esta é a prática que deves cultivar, sempre que te seja dado desfrutar livremente
do ócio, e o medo te não forçar a aventuras furtivas;

Sábios conselhos, e quem os seguir garante uma vida de prazer. Limitam-se a dizer em verso antigo o que a moderna sexologia escreve em espessos tratados.

Noticia bibliográfica

Para O burro de ouro, Livro 2, 16. 4, a tradução é de Delfim Leão;
Para Arte de amar, a tradução é de Carlos Ascenso André
Ambos os livros são edição de Livros Cotovia, Lisboa

Para a obra do professor Forberg não conheço nenhuma edição disponível, encontrando-se a que possuo de há muito esgotada.

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Ovídio — tarde de amores

17 Quinta-feira Maio 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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David Mourão-Ferreira, Ovídio, Renoir

Sabe quem a pratica, do gozo, do aconchego da sesta. De toda a volúpia que o principio da tarde desvela após refeição prazenteira. Um peixe grelhado, um vinho, suculenta fruta em remate, e depois o leito.

E aperto-a contra mim… Que sucedeu depois?
Fatigados, por fim, repousámos os dois…

São segredos que as terras quentes conhecem desde a mais remota antiguidade, sobremaneira apetecidos nestas escaldantes tardes de verão. É a essa antiguidade que hoje vou buscar um relato poético de Ovídio (43 a.C – 17 d.C. ) dando conta dos prazeres de uma dessas tardes de prazer, e com o poeta comungo:

Que sempre se repita, em todos os meus dias,
um meio-dia igual a este meio-dia!

Eis a bela tradução de David Mourão-Ferreira (1927-1996)

Era intenso o calor. Do meio-dia passava.
Deitei-me sobre a cama a ver se repousava…
Na cerrada janela apenas uma fresta
permitia filtrar-se uma luz de floresta;
ou, antes, uma luz que mais par’cia irmã
da que antecede a noite ou precede a manhã…
É a luz que convém à jovem reservada,
para que em seu pudor não fique perturbada.

Eis que chega Corina, a túnica cingida,
sobre o pescoço branco uma trança caída…
(Semirámis? Laís? Dir-se-ia uma delas…
Só pode comparar-se às que foram mais belas!)
A túnica lhe arranco, embora de tão leve
nem sequer me constranja o tecido que a veste.
Tenta ainda lutar a fim de se cobrir,
mas o que mais deseja é deixar-se despir…
E quando fica, enfim, de pé, sem nenhum véu,
nem um defeito só vejo no corpo seu!
Oh, que ombros divinais! Oh, que braços divinos!
Que ventre tão perfeito! E que peitos erguidos!
Coxas tão juvenis! Ancas? Bem mais maduras…
Pra quê enumerar, se toda é formosura?
E aperto-a contra mim… Que sucedeu depois?
Fatigados, por fim, repousámos os dois…

Que sempre se repita, em todos os meus dias,
um meio-dia igual a este meio-dia!

Amores, Livro I, 5

Foi ao pintor da gente feliz, Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), que fui buscar a ilustração para esta bela memória poética.

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