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Tag Archives: David Mourão-Ferreira

Alguns poemas de Saúl Dias

02 Segunda-feira Nov 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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David Mourão-Ferreira, Júlio, Saúl Dias

É simultaneamente um pudor de linguagem e um olhar de esteta o que encontramos na curta obra poética de Saúl Dias (1902-1983), pseudónimo do pintor Júlio dos Reis Pereira. O poeta, irmão de José Régio, é conhecido sobretudo como pintor, assinou Júlio, e é autor de uma obra plástica notável. A presença do olhar de esteta reconhece o poeta explicitamente no poema Quieta com que abro esta curta visita à sua poesia, que não é uma estreia no blog. Outros poemas seus encontram-se algures transcritos.

 

 

Quieta

 

Passaste

subtil

na tarde quieta.

 

O ar anil

ondulou…

Como uma seta

uma ave baixou

da velha torre

e pousou quieta.

 

Eu era o esteta

procurando

entre fórmulas mil

o ancoradouro, a meta…

 

Inúteis tentativas!…

 

Tudo passou…

Tudo queimou 

o tempo vil…

 

Só perdurou

o ar anil

da tarde quieta.

 

 

De novo o artista plástico por detrás do poeta se revela neste Desenho de rapariga:

 

 

Desenho de rapariga

 

Corpo suave,

de traços finos,

modulados trinos

ao entardecer…

 

A linha esguia

que delimita

e acaricia

o braço de ave

é tão bonita…

 

Quase mulher…

Quase criança…

 

Toda pureza…

 

— Vede

a beleza

como se enlaça

na sua trança!

 

 

É uma poesia servida por um verso insistentemente despido do supérfluo, como o poeta refere neste poema:

 

Na tarde longa

imaginei um longo poema.

Depois,

fui-o encurtando

e reduzi-o a pequenos versos.

 

Quisera que os meus versos

fossem duas palavras apenas,

aéreos como penas,

leves

como tons dispersos…

 

 

A impalpável e fugaz beleza à nossa volta que acontece, talvez, ocasionalmente pressentirmos, surge em alguns dos seus poemas, límpidos, diáfanos, como as pinturas da sua série O poeta:

 

 

do Ciclo NUA

 

V

 

No meu sono

ela flutua

a cada passo…

 

Nua,

riscando o espaço

numa névoa de outono…

 

Apenas nos cabelos

um azulado laço…

 

E assim enlaço

a imagem sua…

 

 

*

A chama ainda perdura

iluminando a noite,

indo acordar os astros…

 

vestindo de alabastros

as ruas derradeiras…

 

desdobrando bandeiras

lá no topo dos mastros…

 

 

*

Essa figura

que sempre volta sem eu querer,

porque abandona a sepultura

do esquecer

e em rosicler

volve e perdura,

iluminando a noite escura

do esquecer?…

 

Uma vulgar figura de mulher!…

 

 

Refere David Mourão-Ferreira no estudo introdutório à edição da sua obra poética, “… a poesia de Saúl Dias, pela impenitente fidelidade a este pessoalíssimo percurso de decantação, constitui um dos mais delicados e rigorosos aparelhos produtores de encantamento que se nos deparam em toda a longa história do lirismo português;…”. E este encantamento no leitor sente-o o poeta no mundo e pela vida em redor, e que a sua poesia procura captar:

 

 

Do ciclo Poeta

 

I

— Vai!

Corre o mundo

encostado

a um bordão de esperanças!

 

Hão-de ferir-te os pés

as pedras dos caminho.

Mas entenderás a conversa dos ninhos

e o riso das crianças.

 

Afecto

 

Tanto afecto disperso pelo mundo!

 

Um cão que não nos deixa.

 

Uma madeixa

de cabelo emoldurada.

 

O olhar fundo

de uma criança pobre.

 

Versos de António Nobre

guardados numa estante.

 

E um Poeta, sem idade,

sentado num bar,

tentando fixar

em castigados versos

um fugidio instante

de felicidade.

 

 

Termino com dois poemas: Envelhecer e Menino; poemas onde ao permanente encanto pela gente e pelo mundo, se acrescenta o encontro da experiência da vida com a infância dos sonhos:

 

 

Envelhecer

 

É bom envelhecer

 

Sentir cair o tempo,

magro fio de areia,

numa ampulheta inexistente!

 

Passam casais jovens

abraçados!…

 

As árvores

balançam novos ramos!…

 

E o fio de areia 

a cair, a cair, a cair…

 

 

Menino

 

Em mim

a infância permanece,

tal num jardim

o canteiro se aquece

de rosas e alecrim.

 

De encontro ao velho muro

que ruir de ilusões!

 

E eu continuo

a ter medo do escuro

e a sonhar com ladroes!

 

Poemas transcritos de Saúl Dias, Obra Poética, 2.ª Ed aumentada, Brasília Editora, Porto, 1980.

 

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Júlio, Aparição, óleo s/tela, de 1972, da colecção moderna da Fundação Gulbenkian.

 

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O sabor das aventuras de Verão recordado num poema de David Mourão-Ferreira

07 Sexta-feira Set 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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David Mourão-Ferreira

Numa noite mágica onde se cruzavam os cheiros da serra e a brisa marinha, jantávamos ao ar livre um grupo de amigos de adolescência. Inevitavelmente vieram à conversa as memórias das noites de Verão e as aventuras de descoberta e paixão adolescente a que Tavira e o mar da sua ilha serviram de cenário.
Eram os últimos anos da década de 60 do séc. XX. O Algarve descobria-se aos turistas estrangeiros e as raparigas vindas do Norte da Europa faziam furor com a sua beleza loura e liberdade de costumes por cá completamente interditos. Do que a cada um aconteceu guardo reserva. O intróito serve tão só para recordar um poema de David Mourão-Ferreira (1927-1996), Een lied voor Margaretha, (Uma Canção para Margaretha) talvez reminiscência de experiência(s) semelhante(s).

 

 

Een lied voor Margaretha

Tu vens de terras de Holanda,
mas tens a carne morena.
E em vez de serena, branda
postura que o Norte manda,
teu corpo se desordena
à carícia, por mais branda …
Tu vens das terras de Holanda …

Eu venho de Portugal:
o mesmo é dizer que venho
de longe, do litoral,
e um sabor, no corpo, a sal
definiu meu Fado estranho.
Aqui me tens, donde venho:
Eu venho de Portugal …

Trago nos lábios o Mar,
cheio de vento e de espuma …
E tu mo virás roubar!
— Ai descampados ao ar,
onde houvera ventos, bruma! —
Com saudade hei de lembrar:
tinha nos lábios o Mar …

Hei de lembrar e sofrer
o que for perdendo aqui …
Mas um colo de mulher
tudo merece, e requer
o abandono de si …
Quem me dera que por ti
Venha a lembrar e sofrer …

Tu vens de terras de Holanda,
eu venho de Portugal:
cada um de sua banda …
Sabe o Destino o que manda,
quer pra bem ou quer p´ra mal …
— Não mais as terras de Holanda
e areias de Portugal!

in A Viagem Secreta, segunda edição corrigida e aumentada, ne varietur, Edições Ática, Lisboa, 1958.

 

Abre o artigo uma foto de Jane Birkin (1946), inesquecível intérprete com Serge Gainsbourg (1928-1991) da canção Je t’aime… mois non plus, icónica canção da revolução sexual dos anos 60, à data proibida em vários países, Portugal e Brasil incluídos.

 

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David Mourão-Ferreira — Música de cama X

07 Quinta-feira Dez 2017

Posted by viciodapoesia in Erótica, Poetas e Poemas

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Étienne-Maurice Falconet, David Mourão-Ferreira

A poesia sobre o amor, se é desabafo de desgosto, grito de dor, ou desespero de ausência, também é registo do instante que se faz eternidade no gozo supremo da sua felicidade, ou como escreve David Mourão-Ferreira (1927-1996):

… de nos teus olhos
tão perto dos meus
descobrir o modo
de beber o céu

A estas práticas do amor tem a humanidade entregado engenho e saber, recusando tantas vezes moralidades e interditos de questionável finalidade. E depois da experiência, ou paralela a ela, temos a arte e a poesia a levar-nos a imaginação pelos caminhos que o prazer desbrava.

Não é de hoje, mas de sempre, esse registo literário e artístico do prazer experimentado. Há uns anos, a propósito do acto de amor hoje descrito por  David Mourão-Ferreira, transcrevi num artigo, [A propósito de cavalo de Heitor com Ovídio e Apuleio] como na antiguidade a encontramos referida. Cavalo de Heitor lhe chamavam. Hoje um poema de David Mourão-Ferreira recorda as delícias de tal prática:

 

 X

Sobre mim cavalgas
cingindo-me os flancos
Colhes à passagem
a luz do instante

De dentes cerrados
ondulas   avanças
retesas os braços
comprimes as ancas

Depois para a frente
inclinas-te olhando
o que entre dois ventres
ocorre entretanto

e o próprio galope
em que vais lançada
Que lua te empolga
Que sol te embriaga

Lua e sol tu és
enquanto cavalgas
amazona e égua
de espora cravada

no centro do corpo
Centauresa alada
com os seios soltos
como feitos de água

Queria bebê-los
quando mais te dobras
Os cabelos   esses
sorvê-los agora

Mas de cada vez
que o rosto aproximas
já é outra a sede
que me queima a língua

A de nos teus olhos
tão perto dos meus
descobrir o modo
de beber o céu

in David Mourão-Ferreira, Música de Cama, antologia erótica com um livro inédito, Editorial Presença, Lisboa, 1994.

Abre o artigo a imagem de uma escultura de Étienne-Maurice Falconet (1716-91).

Representa Cúpido. Pede silêncio para não perturbarmos os amantes entregues ao sublime prazer de Eros.

 

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A Cíntia — uma elegia de Propércio

13 Terça-feira Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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David Mourão-Ferreira, Propércio

Charles André van Loo - retrato de rapariga 530

Contemporâneo que foi de Horácio, e pouco mais velho que Ovídio, Propércio viveu na segunda metade do século I antes de Cristo.

Nascido provavelmente em Assis, numa família de posses, vítima da guerra civil, cedo foi para Roma tentar carreira forense ou na política. Seduzido pelo ambiente literário e mundano da capital do mundo, ei-lo poeta com o livro I das elegias publicado em 28a.C.

A marca história da sua vida foi a opção por consagrar a existência, como poeta e cidadão ao serviço da puella [amada] em detrimento da res publica [coisa pública] como era prática e exigência social da época.

Apaixonado por uma mundana, Cíntia, a sua vida e poesia foram uma afirmação da liberdade de escolha do indivíduo perante o autoritarismo de uma moral pública invasora.  

Na elegia 15 do Livro II fala o poeta de uma grande noite de amor. Na variedade de linha de pensamento e estilo que caracteriza as suas elegias, o poeta aproveita para aconselhar a nudez na prática do amor.

…

aprende que em amor os olhos são quem manda

…

 

e também declarar a eterna paixão por Cíntia, a amada. Corroborando aquilo que foi uma sua escolha de vida, defende a opção pelo amor em detrimento da glória pela guerra, pois, como na  elegia 5 do livro III escreveu a abrir:

 

Pacis Amor deus est, pacem veneramur amantes:

 

O Amor é um deus de paz. / Só a paz veneramos /nós outros, os amantes.

 

(tradução de David Mourão-Ferreira)

 

Entrego-vos a um extenso fragmento da elegia 15 do Livro II, a qual possui um total de 52 versos,  numa bela versão de David Mourão-Ferreira (1927-1996).

A Cíntia

 

Oh, que feliz me sinto! Ó noite assinalável

com uma pedra branca! E tu, pequena cama,

p’lo prazer que me deste, eis-te santificada…

Que murmúrios, à luz duma velada lâmpada!

E que luta, depois com a luz apagada!

Tão breve ao meu ardor a túnica interpunha,

como, de seios nus, comigo enfim lutava!

Se me via a dormir, logo os lábios depunha

em meus olhos, dizendo: “Indolente, assim jazes?…”

E os braços de nós dois renovavam abraços;

e meus beijos sem fim detinham-se em teus lábios.

 

É Vénus profanar amarmo-nos na treva:

aprende que em amor os olhos são quem manda.

Ao tê-la visto nua abandonar o leito

é que Páris, então, por Helena se inflama…

E Endimião vai nu ante a irmã de Febo

e nus, ele e a deusa, assim vão para a cama…

Se te obstinas tu a deitar-te vestida,

toda te rasgarei: sentirás minhas mãos…

E mais longe eu hei-de ir, se o furor me domina:

há-de ver-te marcada a tua própria mãe!

Deixa esse pudor a quem já teve filhos,

tu que não tens sequer descaídas as mamas…

Mas nós, enquanto o Fado assim o determina,

sigamos com amor os olhos saciando!

E venha então a noite; e que nunca termine…

E que o dia jamais tenha dia seguinte!

 

…

 

É errado supor que o amor tenha fim:

o verdadeiro amor, esse, nunca termina.

Desentranhe-se a terra em frutos inesperados,

agitem-se no Sol os mais negros cavalos,

à nascente retorne o volume dos rios,

fiquem secos no mar os húmidos abismos:

nem mesmo assim darei a outra o meu amor,

pois vivo lhe pertenço, e lhe pertenço morto.

 

Possa eu, a seu lado, iguais noites passar,

terei a ilusão de que sou imortal:

a ilusão de haver longamente vivido,

mesmo que só me reste um só ano de vida!

Se toda a gente assim desejasse estar vivo,

não ‘staríamos nós de outros erros cativos:

e nem armas cruéis nem navios de guerra

manteriam em Roma os cuidados que a cercam.

 

Elegias, Livro II, 15, vv. 1-26 e 29-46

 

Notícia bibliográfica

 

Tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da Poesia Europeia – I, Colóquio Letras nº163, Janeiro-Abril de 2003.

 

Aproveito para indicar ao leitor curioso a magnífica edição dos quatro livros de Elegías de Propércio com o texto latino e tradução em espanhol (pois desconheço qualquer integral em portugês) preparada por Francisco Moya e António Ruiz de Elvira, em edição Cátedra, Madrid, 2001.

 

Para interessados na História da Literatura de Roma Antiga, a edição da FCG da obra do mesmo nome, com direcção de Mario Citroni, é companhia indispensável. Edição em Lisboa, 2006.

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Fica V. Exa. notificado… com poemas de David Mourão-Ferreira

15 Sexta-feira Nov 2013

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poetas e Poemas

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David Mourão-Ferreira

Propunha-me publicar no blog o soneto de David Mourão-Ferreira, Ternura quando verifiquei que já aqui se encontrava num esquecido artigo do inicio do blog. Recordo-o agora às escassas dezenas dos primeiros leitores, e talvez aos novos leitores agrade.

Às vezes sou tentado a levar o blog para a realidade dos dias mas depressa me arrependo. No entanto, ao acontecimento de hoje não resisto.

Tinha na semana passada na caixa do correio um aviso para levantar uma carta registada das Finanças. É entidade a quem não devo nada, de quem dispenso o contacto e que me faria imensamente feliz se esquecesse a minha existência. Infelizmente não é assim e vivamos com o que temos.

O carteiro procurara-me em casa a hora em que obviamente estaria a trabalhar e em vez da carta deixou aviso: vá buscá-la a partir das 10H00 do dia tantos ao posto de Correios tal.

Passaram os dias e eu sem vontade de tomar conhecimento dos desejos das Finanças até que hoje, terminando o prazo para levantar a carta, lá fui ao tal posto de Correios.

Havia gente, muita gente. Tirei senha, o nº 117. Olhei o contador dos atendidos e iam no nº 73. Eram dois postos de atendimento e esperei. Preparara-me para alguma demora, não para isto. No Bolso levava a Lira para eventualmente entreter a espera. Afinal não. O burburinho da conversa de quem esperava e os diálogos dos guichets levaram a melhor, e embalado segui doenças, remédios, instruções de preenchimento de impressos, o custo de vida, e soube que nestes tempos de telemóvel há ainda quem vá aos Correios telefonar.

Chegou a minha vez de ser atendido e munido da intimação do carteiro e do bilhete de identidade, apresentei-me à funcionária. Olhou-me, olhou a foto do BI, achou que era a mesma pessoa e estendendo-me o aviso que lhe entregara, imperou:

– Assine aqui! Igual ao bilhete de identidade.

Obedeci.

Levantou-se, desapareceu, e passados minutos regressou. Na mão um papel branco com letras, era a notificação das Finanças. Entregou-mo, e na posse de tão indesejado documento, com mil cuidados para não rasgar, o coração acelerado, abri a coisa,

e leio:

– Fica V. Exa. Notificado(a) nos termos do art. … da liquidação do Imposto de … no total de zero euros (o destaque é meu).

Em nota final o impresso informava que o valor liquidado (zero euros) não será objecto de cobrança.

Com os melhores cumprimentos assinou o Director-Geral, e eu, enquanto Excelência fiquei notificado de que nada aconteceu.

Tanto tempo perdido por tanta gente para isto!

Concluido o episódio regresso à intemporalidade da poesia e do amor lendo aqui alguns dos poemas que levei no bolso.

MINUTO

O amor? Seria o fruto

trincado até mais não ser?

(Mas para lá do prazer

a Vida estava de luto …)


Fui plantar o coração

no infinito: uma flor…

(Mas para lá do fervor

a Vida gritou que não!)


O amor? Nem flor nem fruto.

(Tudo quanto em nós vibrara

parecia pronto a ceder …)


Foi apenas um minuto:

a fome intensa tão rara!,

de ser criança, ou morrer…


Jovem de 22 anos, David Mourão-Ferreira exprime assim a pressa de quem do amor ainda não aprendeu o prazer da demora, numa confusão adolescente de não saber o que importa.

É ainda o adolescente dos anos 40 que ecoa neste SONETO DO CATIVO onde ressoam os contrastes entre amor de ouvir dizer, preconceitos e culpas de pecado numa sociedade vigiada:


 

Se é sem dúvida Amor esta explosão

de tantas sensações contraditórias;

a sórdida mistura das memórias,

tão longe da verdade e da invenção;


o espelho deformante; a profusão

de frases insensatas, incensórias;

a cúmplice partilha nas histórias

do que os outros dirão ou não dirão;


se é sem dúvida Amor a cobardia

de buscar nos lençóis a mais sombria

razão de encantamento e de desprezo;


não há dúvida, Amor, que te não fujo

e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,

tenho vivido eternamente preso!


A idade avança, a experiência também, e é outra a realidade neste

TERNURA

Desvio dos teus ombros o lençol,

que é feito de ternura amarrotada,

da frescura que vem depois do Sol,

quando depois do Sol não vem mais nada…


Olho a roupa no chão: que tempestade!

Há restos de ternura pelo meio,

como vultos perdidos na cidade

onde uma tempestade sobreveio…


Começas a vestir-te, lentamente,

e é ternura também que vou vestindo,

para enfrentar lá fora aquela gente

que da nossa ternura anda sorrindo…


Mas ninguém sonha a pressa com que nós

a despedimos assim que estamos sós!


E no prazer do corpo o amor ganha a essencialidade dos elementos  – Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne: / é também água, terra, vento, fogo …

Seguindo esta poesia saberemos o seu segredo mais à frente – no teu corpo existe o mundo todo!


PRESIDIO

Nem todo o corpo é carne… Não, nem todo.

Que dizer do pescoço, às vezes mármore,

às vezes linho, lago, tronco de árvore,

nuvem ou ave, ao tacto sempre pouco?…


E o ventre, inconsistente como o lodo?…

E o morno gradeamento dos teus braços?

Não. Meu amor… Nem todo o corpo é carne:

é também água, terra, vento, fogo…


É sobretudo sombra à despedida;

onda de pedra em cada reencontro;

no parque da memória o fugidio


vulto da primavera em pleno Outono…

Nem só de carne é feito este presídio,

pois no teu corpo existe o mundo todo!


Mas o perigo de olhar o mundo da cintura para baixo espreita:

CASA

Tentei fugir da mancha mais escura

que existe no teu corpo, e desisti.

Era pior que a morte o que antevi:

era a dor de ficar sem sepultura.


Bebi entre os teus flancos a loucura

de não poder viver longe de ti:

és a sombra da casa onde nasci,

és a noite que à noite me procura.


Só por dentro de ti há corredores

e em quartos interiores o cheiro a fruta

que veste de frescura a escuridão…


Só por dentro de ti rebentam flores.

Só por dentro de ti a noite escuta

o que sem voz me sai do coração.


Visitados que foram os tormentos do sexo ao concentrar aí o mundo – Só por dentro … – , voltemos à despreocupada alegria do poeta jovem:

ALBA

Com grinaldas de lodo sobre a testa,

presos os pés em turbilhões de limos,

– assim a madrugada nos desperta

e após a preia-mar nós emergimos.


Lambe-me o rosto a fimbria do lençol,

amarrotada, poluida espuma…

Sobre a salsugem, uma angustia mole,

que o pensamento arruma e desarruma.


por fim derruba o muro dos enganos,

e ante nós dois derrama esta pergunta:

– De que infernos vibrantes nos soltamos,

sem que o céu compareça ou nos acuda?


Findo este pequeno tour pela criação poética de David Mourão-Ferreira antes dos 35 anos e da Matura Idade, tenho uma provável surpresa para a maior parte dos leitores: os primeiros poemas publicados aos 19 anos e que o autor, já adulto e consciente, repudiou, nunca os incluindo na sua obra poética.

Estas primícias poéticas foram publicadas numa edição de autor, colectiva, feita em 1946 e de seu nome RUMOS  ANTOLOGIA DE CONTOS E POEMAS.

A edição contém obras de Ana Maria Caeiro, Carlos Garcia, David Mourão Ferreira (sem hifén) João Belchior Viegas, José-Aurélio, José Rabaça, Mário António, Orlando Pinto Baptista e Vitor Parracho.

De David Mourão-Ferreira constam do livro 5 poemas,  quais sejam:

QUINTO POEMA DE HESITAÇÃO

VOZ

CÂNTICO

IMAGEM

PEDIDO

Este último diz-se que pertence ao livro no prelo “BARCO ENCALHADO” que a contra-capa de RUMOS anuncia “A sair brevemente”

O “BARCO ENCALHADO”, que eu saiba nunca viu a luz do dia e o primeiro livro a publicar pelo autor foi antes A SECRETA VIAGEM em 1950.

Temos pois que nos 4 anos que medearam, o poeta desencalhou o barco e seguiu na viagem que nos contou e da qual extraí MINUTO.

Eis então os poemas de RUMOS

QUINTO POEMA DE HESITAÇÃO

Não me digam que não,

Que pr’além desta vida

Não existe outra vida,

Onde os sonhos deixarão de ser sonhos,

Permanecendo neles, porém,

Aquele encanto e aquela graça

Que só os sonhos têm…


Não me digam que não,

Que por trás destes muros,

Serenos e caiados –

Destinos conhecidos – ,

Não existem regatos

E não existem prados

E rosas e lirios…


Não me digam que não,

Que não hei-de encontrar

Em busca de quem vou…

Não me digam que não!,

Deixem-me ir iludido,

Já que iludido estou!…


E depois, se eu voltar,

Inutil e cansado,

Digam-me então, que não,

Que errei o meu caminho…

Deixem-me então, morrer,

Vazio de sonhos e podre de cansaços…

Digam-me então que não!,

Ainda que eu vos peça de joelhos

E vos estenda os braços!…

VOZ

Apenas respondo às vozes

Que chamam dentro de mim.

Meus passos só são velozes

Pra essas vozes assim…


Não me chamem pois de fora,

Que nunca vou nem irei.

Se acaso me for embora

É respeito à minha lei.


Apenas respondo às vozes

Que chamam dentro de mim:

Só irei quando chamarem!

Só então direi que sim!


CÂNTICO

Ah! São as árvores erguidas

E os caminhos desertos,

Desertos e abertos,

Promessas de vida…,

Ah! São os lamentos de cores

E os ambientes tristes,

Lembranças de dores…;

Ah! É tudo isto,

Tudo, tudo,

Que me envolve, me inunda,

Me estende seu manto

De pureza e de encanto…

– Pureza que eu canto,

Encanto de tudo!…


IMAGEM

Rio manso como um charco,

Largo ninho de gaivotas,

Sulcado por tanto barco,

Desiludido das rotas!


Rio manso como um charco!

Tu és bem a minha imagem:

Em mim também há um barco

Já cansado de viagem…


Mas sou inferior a ti,

Que deslizas para o mar,

Enquanto que eu, ai de mim!,

Não sei onde irei parar…


PEDIDO

Antes de tu apareceres,

Eu era um barco encalhado,

Perdido num mar qualquer…

Era um relógio parado,

Que ninguém queria arranjar,

Não obstante ainda ter

Muita corda para andar…


Antes de tu apareceres,

Ai tanta cois aque eu era,

Sem nada ser, afinal…!

Era um romance imperfeito,

Que tinha o grande defeito

De ser bastante banal…


Mas agora… agora que tu vieste,

Que tu vieste e encheste

Da sombra dos teus cabelos

E dos teus gestos singelos

O marasmo dos meus dias…


Agora… agora, o que peço

É que fiques!,

Não me deixes!,

Pra que eu não tenha outra vez

As passadas horas frias

Daquelas vãs agonias

Que tu viste – e já não vês!


Lidas estas primícias dificilmente se suspeita a floração de que mais tarde o poeta seria capaz. E certamente não tinha ainda travado conhecimento com a balzaquiana do andar de cima, iniciadora nas lides do amor e fonte de inspiração segura dos primeiros poemas aceites na obra poética.


Noticia Bibliográfica:

Tal como referi no início, os poemas foram transcritos de LIRA DE BOLSO, antologia de escolha do poeta e publicada em 1969 por publicações dom quixote na colecção cadernos de poesia.

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Natal num poema de David Mourão-Ferreira

21 Sexta-feira Dez 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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David Mourão-Ferreira, Natal

 

BRONZINO, Agnolo Adoration of the Shepherds 1539-40Aproxima-se o Natal e apetece visitar a poesia escrita a seu pretexto.
É a possibilidade de recomeçar, deixar para trás os erros e recuperar a magia do futuro com os olhos da infância, o que sobretudo me atrai na espera do Natal e na sua celebração.
Às vezes basta um nada e o reencontro com esse encanto infantil vivido em torno do Natal regressa:

Cala-te, vento velho! É o Natal que passa, / a trazer-me da água a infância ressurrecta.

A vida leva-nos mais vezes do que nós a ela,

E quanto mais na terra a terra me envolvia / mais da terra fazia o norte de quem erra.

e se a memória se liberta

Da casa onde nasci via-se perto o rio.

cresce a vontade de encontrar a bússola que por outro caminho nos conduza

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia…
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

De tudo isto nos fala David Mourão-Ferreira (1927-1996) no poema Natal à Beira-Rio que acima esquartejei e agora transcrevo na totalidade.

Natal à Beira-Rio

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, à noite iluminado…

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia…
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

1960

O poema abre o livro Cancioneiro de Natal que o poeta publicou em 1971 com 10 poemas onde a sua vivência do Natal se reflecte.

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Ovídio — tarde de amores

17 Quinta-feira Maio 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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David Mourão-Ferreira, Ovídio, Renoir

Sabe quem a pratica, do gozo, do aconchego da sesta. De toda a volúpia que o principio da tarde desvela após refeição prazenteira. Um peixe grelhado, um vinho, suculenta fruta em remate, e depois o leito.

E aperto-a contra mim… Que sucedeu depois?
Fatigados, por fim, repousámos os dois…

São segredos que as terras quentes conhecem desde a mais remota antiguidade, sobremaneira apetecidos nestas escaldantes tardes de verão. É a essa antiguidade que hoje vou buscar um relato poético de Ovídio (43 a.C – 17 d.C. ) dando conta dos prazeres de uma dessas tardes de prazer, e com o poeta comungo:

Que sempre se repita, em todos os meus dias,
um meio-dia igual a este meio-dia!

Eis a bela tradução de David Mourão-Ferreira (1927-1996)

Era intenso o calor. Do meio-dia passava.
Deitei-me sobre a cama a ver se repousava…
Na cerrada janela apenas uma fresta
permitia filtrar-se uma luz de floresta;
ou, antes, uma luz que mais par’cia irmã
da que antecede a noite ou precede a manhã…
É a luz que convém à jovem reservada,
para que em seu pudor não fique perturbada.

Eis que chega Corina, a túnica cingida,
sobre o pescoço branco uma trança caída…
(Semirámis? Laís? Dir-se-ia uma delas…
Só pode comparar-se às que foram mais belas!)
A túnica lhe arranco, embora de tão leve
nem sequer me constranja o tecido que a veste.
Tenta ainda lutar a fim de se cobrir,
mas o que mais deseja é deixar-se despir…
E quando fica, enfim, de pé, sem nenhum véu,
nem um defeito só vejo no corpo seu!
Oh, que ombros divinais! Oh, que braços divinos!
Que ventre tão perfeito! E que peitos erguidos!
Coxas tão juvenis! Ancas? Bem mais maduras…
Pra quê enumerar, se toda é formosura?
E aperto-a contra mim… Que sucedeu depois?
Fatigados, por fim, repousámos os dois…

Que sempre se repita, em todos os meus dias,
um meio-dia igual a este meio-dia!

Amores, Livro I, 5

Foi ao pintor da gente feliz, Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), que fui buscar a ilustração para esta bela memória poética.

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