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É simultaneamente um pudor de linguagem e um olhar de esteta o que encontramos na curta obra poética de Saúl Dias (1902-1983), pseudónimo do pintor Júlio dos Reis Pereira. O poeta, irmão de José Régio, é conhecido sobretudo como pintor, assinou Júlio, e é autor de uma obra plástica notável. A presença do olhar de esteta reconhece o poeta explicitamente no poema Quieta com que abro esta curta visita à sua poesia, que não é uma estreia no blog. Outros poemas seus encontram-se algures transcritos.
Quieta
Passaste
subtil
na tarde quieta.
O ar anil
ondulou…
Como uma seta
uma ave baixou
da velha torre
e pousou quieta.
Eu era o esteta
procurando
entre fórmulas mil
o ancoradouro, a meta…
Inúteis tentativas!…
Tudo passou…
Tudo queimou
o tempo vil…
Só perdurou
o ar anil
da tarde quieta.
De novo o artista plástico por detrás do poeta se revela neste Desenho de rapariga:
Desenho de rapariga
Corpo suave,
de traços finos,
modulados trinos
ao entardecer…
A linha esguia
que delimita
e acaricia
o braço de ave
é tão bonita…
Quase mulher…
Quase criança…
Toda pureza…
— Vede
a beleza
como se enlaça
na sua trança!
É uma poesia servida por um verso insistentemente despido do supérfluo, como o poeta refere neste poema:
Na tarde longa
imaginei um longo poema.
Depois,
fui-o encurtando
e reduzi-o a pequenos versos.
Quisera que os meus versos
fossem duas palavras apenas,
aéreos como penas,
leves
como tons dispersos…
A impalpável e fugaz beleza à nossa volta que acontece, talvez, ocasionalmente pressentirmos, surge em alguns dos seus poemas, límpidos, diáfanos, como as pinturas da sua série O poeta:
do Ciclo NUA
V
No meu sono
ela flutua
a cada passo…
Nua,
riscando o espaço
numa névoa de outono…
Apenas nos cabelos
um azulado laço…
E assim enlaço
a imagem sua…
*
A chama ainda perdura
iluminando a noite,
indo acordar os astros…
vestindo de alabastros
as ruas derradeiras…
desdobrando bandeiras
lá no topo dos mastros…
*
Essa figura
que sempre volta sem eu querer,
porque abandona a sepultura
do esquecer
e em rosicler
volve e perdura,
iluminando a noite escura
do esquecer?…
Uma vulgar figura de mulher!…
Refere David Mourão-Ferreira no estudo introdutório à edição da sua obra poética, “… a poesia de Saúl Dias, pela impenitente fidelidade a este pessoalíssimo percurso de decantação, constitui um dos mais delicados e rigorosos aparelhos produtores de encantamento que se nos deparam em toda a longa história do lirismo português;…”. E este encantamento no leitor sente-o o poeta no mundo e pela vida em redor, e que a sua poesia procura captar:
Do ciclo Poeta
I
— Vai!
Corre o mundo
encostado
a um bordão de esperanças!
Hão-de ferir-te os pés
as pedras dos caminho.
Mas entenderás a conversa dos ninhos
e o riso das crianças.
Afecto
Tanto afecto disperso pelo mundo!
Um cão que não nos deixa.
Uma madeixa
de cabelo emoldurada.
O olhar fundo
de uma criança pobre.
Versos de António Nobre
guardados numa estante.
E um Poeta, sem idade,
sentado num bar,
tentando fixar
em castigados versos
um fugidio instante
de felicidade.
Termino com dois poemas: Envelhecer e Menino; poemas onde ao permanente encanto pela gente e pelo mundo, se acrescenta o encontro da experiência da vida com a infância dos sonhos:
Envelhecer
É bom envelhecer
Sentir cair o tempo,
magro fio de areia,
numa ampulheta inexistente!
Passam casais jovens
abraçados!…
As árvores
balançam novos ramos!…
E o fio de areia
a cair, a cair, a cair…
Menino
Em mim
a infância permanece,
tal num jardim
o canteiro se aquece
de rosas e alecrim.
De encontro ao velho muro
que ruir de ilusões!
E eu continuo
a ter medo do escuro
e a sonhar com ladroes!
Poemas transcritos de Saúl Dias, Obra Poética, 2.ª Ed aumentada, Brasília Editora, Porto, 1980.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Júlio, Aparição, óleo s/tela, de 1972, da colecção moderna da Fundação Gulbenkian.
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