Etiquetas

Na minha quase infinita capacidade de compreensão o entusiasmo das gentes hoje pelo fenómeno Halloween (ou Dia das Bruxas nos países católicos) não cabe. Se nas raízes e na sua história a explicação da sua existência tem um fundo perceptível como esconjuro, o nosso mundo hoje não lhe presta atenção. É apenas o folclore do horror o que o entusiasma. Como prefiro o riso ao medo, a minha resposta a tudo este espectacular fenómeno é o poema que hoje aqui arquivo e mais à frente o leitor encontra. Para a semana regresso ao sério.

Habitualmente é o conteúdo do artigo que determina a escolha da(s) imagem(s) que o acompanha(m). Raramente é o contrário. Hoje é um desses casos. Ao ler uma monografia sobre a obra pictórica de Richard Hamilton (1922-2012), tantas vezes sarcástica como o evidencia a colagem “Just what is it that makes today’s homes so different, so appealing?” de 1956, e já reproduzida no blog, deparei-me com a imagem da obra que abre este artigo, o que me levou a memória para um poema setecentista que a seguir transcrevo, graçola fecal há anos encontrado numa colecção de poemas escatológicos setecentistas editada por Francisco Topa, e que o editor sub-titulou: “versos de entrudo em metáforas fedorentas”, de modo nenhum único à época: lembremo-nos de alguns sonetos atribuídos a Bocage (1765-1805) por Inocêncio nas suas Poesias Eróticas Burlescas e Satíricas, nomeadamente aquele “Cagando estava a dama mais formosa”, que o moderno editor da obra, Daniel Pires, especula poder ser do Abade de Jazente, Paulino da Costa Cabral (1719-1789).

É apenas tornar evidente a variedade temática que a poesia de todas as épocas e latitudes oferece que por vezes me leva a transcrever poemas que, se tomasse a vida sempre pelo lado sério, nunca o faria. Felizmente não acontece e volta e meia aqui vão aparecendo exemplares dessa poesia marginal.

 

 

Décima setecentista

 

No convento caga a Freira,  

O Algarve* na falua**,  

O pobre caga na rua,  

O mochila*** na cocheira. 

Também caga a cozinheira,  

Cagam moças, cagam amas,  

Cagam mariolas e damas,  

Cago eu e cagas tu;  

Não só caga quem tem cu, 

Também caga quem tem mamas.

 

* Algarve — indivíduo natural do Algarve

** falua — barco de pesca à vela

*** mochila — indivíduo que seguia de pé, atrás, numa carruagem.

As notas são minhas e não constam da edição.

 

 

Será certamente do âmbito da psicologia de grupo a explicação para que o relato destas manifestações fisiológicas continue a desencadear o riso sempre que em ambiente de desenfado a anedota surge.

 

 

Nota bibliográfica

Francisco Topa, Folguedos escatologicos inéditos do séc.XVIII — versos de entrudo em metáforas fedorentas, edição do autor, Porto, 1998.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma obra de Richard Hamilton (1922-2012), Girl with skirt up, de 1972. Técnica mista: colagem,lápis, acrílico e óleo s/papel impresso, 56×40,5cm, de colecção partícular.

A obra vem reproduzida em Richard Hamilton, Tate Publishing, London, 2014.