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Charles André van Loo - retrato de rapariga 530

Contemporâneo que foi de Horácio, e pouco mais velho que Ovídio, Propércio viveu na segunda metade do século I antes de Cristo.

Nascido provavelmente em Assis, numa família de posses, vítima da guerra civil, cedo foi para Roma tentar carreira forense ou na política. Seduzido pelo ambiente literário e mundano da capital do mundo, ei-lo poeta com o livro I das elegias publicado em 28a.C.

A marca história da sua vida foi a opção por consagrar a existência, como poeta e cidadão ao serviço da puella [amada] em detrimento da res publica [coisa pública] como era prática e exigência social da época.

Apaixonado por uma mundana, Cíntia, a sua vida e poesia foram uma afirmação da liberdade de escolha do indivíduo perante o autoritarismo de uma moral pública invasora.  

Na elegia 15 do Livro II fala o poeta de uma grande noite de amor. Na variedade de linha de pensamento e estilo que caracteriza as suas elegias, o poeta aproveita para aconselhar a nudez na prática do amor.

aprende que em amor os olhos são quem manda

 

e também declarar a eterna paixão por Cíntia, a amada. Corroborando aquilo que foi uma sua escolha de vida, defende a opção pelo amor em detrimento da glória pela guerra, pois, como na  elegia 5 do livro III escreveu a abrir:

 

Pacis Amor deus est, pacem veneramur amantes:

 

O Amor é um deus de paz. / Só a paz veneramos /nós outros, os amantes.

 

(tradução de David Mourão-Ferreira)

 

Entrego-vos a um extenso fragmento da elegia 15 do Livro II, a qual possui um total de 52 versos,  numa bela versão de David Mourão-Ferreira (1927-1996).

A Cíntia

 

Oh, que feliz me sinto! Ó noite assinalável

com uma pedra branca! E tu, pequena cama,

p’lo prazer que me deste, eis-te santificada…

Que murmúrios, à luz duma velada lâmpada!

E que luta, depois com a luz apagada!

Tão breve ao meu ardor a túnica interpunha,

como, de seios nus, comigo enfim lutava!

Se me via a dormir, logo os lábios depunha

em meus olhos, dizendo: “Indolente, assim jazes?…”

E os braços de nós dois renovavam abraços;

e meus beijos sem fim detinham-se em teus lábios.

 

É Vénus profanar amarmo-nos na treva:

aprende que em amor os olhos são quem manda.

Ao tê-la visto nua abandonar o leito

é que Páris, então, por Helena se inflama…

E Endimião vai nu ante a irmã de Febo

e nus, ele e a deusa, assim vão para a cama…

Se te obstinas tu a deitar-te vestida,

toda te rasgarei: sentirás minhas mãos…

E mais longe eu hei-de ir, se o furor me domina:

há-de ver-te marcada a tua própria mãe!

Deixa esse pudor a quem já teve filhos,

tu que não tens sequer descaídas as mamas…

Mas nós, enquanto o Fado assim o determina,

sigamos com amor os olhos saciando!

E venha então a noite; e que nunca termine…

E que o dia jamais tenha dia seguinte!

 

 

É errado supor que o amor tenha fim:

o verdadeiro amor, esse, nunca termina.

Desentranhe-se a terra em frutos inesperados,

agitem-se no Sol os mais negros cavalos,

à nascente retorne o volume dos rios,

fiquem secos no mar os húmidos abismos:

nem mesmo assim darei a outra o meu amor,

pois vivo lhe pertenço, e lhe pertenço morto.

 

Possa eu, a seu lado, iguais noites passar,

terei a ilusão de que sou imortal:

a ilusão de haver longamente vivido,

mesmo que só me reste um só ano de vida!

Se toda a gente assim desejasse estar vivo,

não ‘staríamos nós de outros erros cativos:

e nem armas cruéis nem navios de guerra

manteriam em Roma os cuidados que a cercam.

 

Elegias, Livro II, 15, vv. 1-26 e 29-46

 

Notícia bibliográfica

 

Tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da Poesia Europeia – I, Colóquio Letras nº163, Janeiro-Abril de 2003.

 

Aproveito para indicar ao leitor curioso a magnífica edição dos quatro livros de Elegías de Propércio com o texto latino e tradução em espanhol (pois desconheço qualquer integral em portugês) preparada por Francisco Moya e António Ruiz de Elvira, em edição Cátedra, Madrid, 2001.

 

Para interessados na História da Literatura de Roma Antiga, a edição da FCG da obra do mesmo nome, com direcção de Mario Citroni, é companhia indispensável. Edição em Lisboa, 2006.