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Contemporâneo que foi de Horácio, e pouco mais velho que Ovídio, Propércio viveu na segunda metade do século I antes de Cristo.
Nascido provavelmente em Assis, numa família de posses, vítima da guerra civil, cedo foi para Roma tentar carreira forense ou na política. Seduzido pelo ambiente literário e mundano da capital do mundo, ei-lo poeta com o livro I das elegias publicado em 28a.C.
A marca história da sua vida foi a opção por consagrar a existência, como poeta e cidadão ao serviço da puella [amada] em detrimento da res publica [coisa pública] como era prática e exigência social da época.
Apaixonado por uma mundana, Cíntia, a sua vida e poesia foram uma afirmação da liberdade de escolha do indivíduo perante o autoritarismo de uma moral pública invasora.
Na elegia 15 do Livro II fala o poeta de uma grande noite de amor. Na variedade de linha de pensamento e estilo que caracteriza as suas elegias, o poeta aproveita para aconselhar a nudez na prática do amor.
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aprende que em amor os olhos são quem manda
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e também declarar a eterna paixão por Cíntia, a amada. Corroborando aquilo que foi uma sua escolha de vida, defende a opção pelo amor em detrimento da glória pela guerra, pois, como na elegia 5 do livro III escreveu a abrir:
Pacis Amor deus est, pacem veneramur amantes:
O Amor é um deus de paz. / Só a paz veneramos /nós outros, os amantes.
(tradução de David Mourão-Ferreira)
Entrego-vos a um extenso fragmento da elegia 15 do Livro II, a qual possui um total de 52 versos, numa bela versão de David Mourão-Ferreira (1927-1996).
A Cíntia
Oh, que feliz me sinto! Ó noite assinalável
com uma pedra branca! E tu, pequena cama,
p’lo prazer que me deste, eis-te santificada…
Que murmúrios, à luz duma velada lâmpada!
E que luta, depois com a luz apagada!
Tão breve ao meu ardor a túnica interpunha,
como, de seios nus, comigo enfim lutava!
Se me via a dormir, logo os lábios depunha
em meus olhos, dizendo: “Indolente, assim jazes?…”
E os braços de nós dois renovavam abraços;
e meus beijos sem fim detinham-se em teus lábios.
É Vénus profanar amarmo-nos na treva:
aprende que em amor os olhos são quem manda.
Ao tê-la visto nua abandonar o leito
é que Páris, então, por Helena se inflama…
E Endimião vai nu ante a irmã de Febo
e nus, ele e a deusa, assim vão para a cama…
Se te obstinas tu a deitar-te vestida,
toda te rasgarei: sentirás minhas mãos…
E mais longe eu hei-de ir, se o furor me domina:
há-de ver-te marcada a tua própria mãe!
Deixa esse pudor a quem já teve filhos,
tu que não tens sequer descaídas as mamas…
Mas nós, enquanto o Fado assim o determina,
sigamos com amor os olhos saciando!
E venha então a noite; e que nunca termine…
E que o dia jamais tenha dia seguinte!
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É errado supor que o amor tenha fim:
o verdadeiro amor, esse, nunca termina.
Desentranhe-se a terra em frutos inesperados,
agitem-se no Sol os mais negros cavalos,
à nascente retorne o volume dos rios,
fiquem secos no mar os húmidos abismos:
nem mesmo assim darei a outra o meu amor,
pois vivo lhe pertenço, e lhe pertenço morto.
Possa eu, a seu lado, iguais noites passar,
terei a ilusão de que sou imortal:
a ilusão de haver longamente vivido,
mesmo que só me reste um só ano de vida!
Se toda a gente assim desejasse estar vivo,
não ‘staríamos nós de outros erros cativos:
e nem armas cruéis nem navios de guerra
manteriam em Roma os cuidados que a cercam.
Elegias, Livro II, 15, vv. 1-26 e 29-46
Notícia bibliográfica
Tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da Poesia Europeia – I, Colóquio Letras nº163, Janeiro-Abril de 2003.
Aproveito para indicar ao leitor curioso a magnífica edição dos quatro livros de Elegías de Propércio com o texto latino e tradução em espanhol (pois desconheço qualquer integral em portugês) preparada por Francisco Moya e António Ruiz de Elvira, em edição Cátedra, Madrid, 2001.
Para interessados na História da Literatura de Roma Antiga, a edição da FCG da obra do mesmo nome, com direcção de Mario Citroni, é companhia indispensável. Edição em Lisboa, 2006.
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Maravilhoso!
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