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Vai do nascer ao morrer em cada um de nós, na presença ou na memória, a mãe, razão e mistério de quem somos no acaso da vida.
Há um recato que me exigo ao assinalar no blog o Dia da Mãe. E se às mulheres é possível a simultaneidade de serem filhas e mães e com isso viver os sentimentos cruzados que daí derivam, aos homens apenas resta o sentimento filial, e nele incluir o espanto da graça de existir.
Por este Dia da Mãe que hoje se comemora em Portugal transcrevo de António Feijó (1859-1917) o poema O Livro da Vida, lição de que à vida, mais vale vivê-la que procurar-lhe nos livros o sentido. Mas é bom seguir na vida acompanhado pelos livros: na experiência dos outros encontramos muito do que em nós por vezes é incompreensível, e a poesia torna evidente.
O Livro da Vida
Absorto, o Sábio antigo, estranho a tudo, lia…
— Lia o “Livro da Vida, — herança inesperada,
Que ao nascer encontrou, quando os olhos abria
Ao primeiro clarão da primeira alvorada.
Perto dele caminha, em ruidoso tumulto,
Todo o humano tropel num clamor ululando,
Sem que ele de sobre o Livro erga o seu magro vulto,
Lentamente, e uma a uma, as suas folhas voltando.
Passa o estio, a cantar; acumulam-se invernos;
E ele sempre, — inclinada a dorida cabeça, —
A ler e a meditar postulados eternos,
Sem um fanal que o seu espírito esclareça!
Cada página abrange um estádio da Vida,
Cujo eterno segredo e alcance transcendente
Ele tenta arrancar da folha percorrida,
Como da mina obscura a pedra refulgente.
Mas o tempo caminha; os anos vão correndo;
Passam as gerações; tudo é pó, tudo é vão…
E ele sem descansar, sempre o seu Livro lendo!
E sempre a mesma névoa, a mesma escuridão.
Nesse eterno cismar, nada vê, nada escuta:
Nem o tempo a dobrar os seus anos mais belos,
Nem o humano sofrer, que outras almas enluta,
Nem a neve do inverno a pratear-lhe os cabelos!
Só depois de voltada a folha derradeira,
Já próximo do fim, sobre o livro, alquebrado,
É que o Sábio entreviu, como numa clareira,
A luz que iluminou todo o caminho andado…
Juventude, manhãs de Abril, bocas floridas,
Amor, vozes do lar, éstos do sentimento,
— Tudo viu num relance em imagens perdidas,
Muito longe, e a carpir, como em nocturno vento.
Mas então, lamentando o seu estéril zelo,
Quando viu, a essa luz que um instante brilhou,
Como o Livro era bom, como era bom relê-lo,
Sobre ele, para sempre, os olhos cerrou…
in Sol de Inverno, ultimos versos, (1915), Aillaud & Bertrand, Paris-Lisboa, 1922
A imagem de abertura mostra uma escultura proveniente da Índia, talvez do século XIX.