Em outros artigos do blog já referi o que de relevante me pareceu sobre a poesia de Luís Augusto Palmeirim (1825-1893) e o contexto de época em que a escreveu. Hoje venho com um poema onde um tipo de mulher do povo se elogia — A Ceifeira, num tempo em que apenas as burguesas eram matéria de inspiração poética.
Profissão felizmente extinta pela tecnologia, a ceifa era uma actividade duríssima e sobre ela temos vasta produção literária no século XX, sobretudo entre os escritores neo-realistas. Nas lutas dos trabalhadores rurais por melhores condições de vida coube a uma ceifeira, Catarina Eufémia (1928-1954), o destino de heroína, ao cair morta às balas da polícia. É a esta mulher, a certa altura tornada símbolo, que Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) dedica um poema belíssimo e simultaneamente uma notável reflexão sobre Justiça e ser Mulher — inocência frontal que não recua:
Catarina Eufémia
O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
E eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
Porque a tua lição é esta: fazer frente
Pois não deste homem por ti
E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos
Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro
Porque eras a mulher e não somente a fêmea
Eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste
E a busca da justiça continua
Publicado em Dual, 1972, transcrito de Obra Poética, Editorial Caminho, Lisboa, 2011.
É outro o universo em que o poema de Luís Augusto Palmeirim se move. É a graça feminil da mulher que o poeta canta, realçando como valores de beleza, ao contrário do estereótipo da época, a pele trigueira, queimada pelo sol.
A Ceifeira
Há quem diga por inveja
Que és feia por ser trigueira;
Dizem as damas da corte,
Deixai-as dizer ceifeira.
Quisera que elas te vissem
Feita senhora festeira,
Que me dissessem depois,
Se eras ou não feiticeira!
Que vissem com que requebros
Tu vais a mercar na feira,
Que vissem como inocente
Vais depois pular na eira.
Mariquinhas de olhos pretos,
Mimosa—gentil ceifeira,
És bela por caprichosa,
És linda por ser trigueira.
Hei-de ir à festa e de longe
Ver-te na dança ligeira,
A ver se coras na dança,
A ver se tens quem te queira.
Hei-de ir depois alcançar-te
No atalho, mesmo à beira,
E dizer-te que na dança
Eras gentil, a primeira.
A dizer-te que eras linda
Como aurora prazenteira;
A contar-te que na festa
Eras só, sem companheira.
A contar-te que não perdes
Por te chamarem trigueira,
A ti, rainha da festa
Mimosa—gentil ceifeira.
A ti que eu vi assentada
Ontem à noite à lareira,
Crendo deveras num conto,
Num conto de feiticeira.
A ti que vergas a cinta,
Como se verga a palmeira,
Que tens escrita no rosto
Inspiraçâo verdadeira.
A ti que dormes com o Cristo
Pendente da cabeceira;
Que só choraste na vida,
Uma vez—por brincadeira!
A quem chamam, por inveja,
A Mariquinhas trigueira;
Porque sabem que és de todas
A mais mimosa ceifeira!
Porque tens nos olhos negros
O condão de dar cegueira,
A quem os fita de perto,
Com atenção verdadeira.
Só te falta alva capela,
Das flores da laranjeira,
Que a todos diga que a noiva
Era ainda há pouco a festeira.
Que nos dê a triste nova,
Que pela vez derradeira,
Vemos de perto tão perto
Aquela fronte fagueira.
A quem as mais, por despique,
Vendo a formosa ceifeira,
Diziam — coitada dela
Sendo assim morre solteira!
Transcrito de Poesias, 1ª edição, Imprensa Nacional, 1851.
Modernizei a ortografia.
No confronto destes poemas surge, gritante, a distância entre a exigência intelectual que a poesia pode ser e ter, e a graciosidade rítmica que consola o leitor poupando-o ao “enfado” da reflexão. E nesse confronto medimos também a distância que separa hoje o gosto do leitor, do gosto dos leitores de há 150 anos, se tivermos em conta quanto ambos os poetas foram populares no tempo que viveram.
Acompanham o artigo imagens de pinturas de Kasimir Malevitch (1879-1935).
Pingback: A Ceifeira segundo Wordsworth, Pessoa, e Lope de Vega | vicio da poesia
Boa tarde,
se eu quiser avaliar poemas que escrevi, quem aconselha auscultar ?
att.,
lb
GostarGostar
Faço parte da família Palmeirim!!!
GostarGostar