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Tag Archives: Luis Augusto Palmeirim

A Ceifeira segundo Wordsworth, Pessoa, e Lope de Vega

18 Sábado Jan 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Inglesa e Norte-Americana, Poesia Portuguesa do sec. XX

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Fernando Pessoa, Lope de Vega, Luis Augusto Palmeirim, o velho, Pieter Bruegel, Sophia de Mello Breyner Andresen, William Wordsworth

A mecanização das colheitas e o progressivo despovoamento dos campos remete para a experiência de quem os viveu, a memória dos ciclos do cultivo da terra, de que as colheitas eram o auge, podendo  significar abundância ou miséria para os tempos que se seguiam. Entre as colheitas, a faina da ceifa do cereal era, com a vindima, ocasião para alegria que acompanhava a dureza do trabalho. Tratava-se, afinal, de colher o que viria a dar o pão e o vinho de cada dia, essência e símbolo da alimentação. 

Com os extremos de calor pelo verão, as televisões foram à procura de testemunhos pelas terras do Alentejo onde o sol queimava, procurando saber como as pessoas mais velhas lidavam com o calor. Encontraram os testemunhos da memória desses dias de colheitas de sol a sol sob um calor inclemente, na fala da experiência de vidas de trabalho árduo, e que hoje dificilmente imaginamos na sua dureza.

Não tendo os poetas a experiência directa da rudeza do trabalho que o canto ajuda a aliviar, relatam o observável naquele efeito que Fernando Pessoa (1888-1935) refere no verso feliz: O que em mim sente está pensando. E assim, sobre a ceifa, leremos três poemas com afinidades e dissemelhanças.

Primeiro William Wordsworth (1770-1850) no poema A Ceifeira solitária, dá conta da emoção que atinge o poeta ao ouvir o canto dolente de uma ceifeira:

…

Sozinha ceifa no mundo

e canta melancolia.

Escuta: o vale profundo

transborda já de harmonia.

…

enquanto Fernando Pessoa refere:

…

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

…

São estes, versos do poema de Pessoa conhecido pelo primeiro verso, [Ela canta, pobre ceifeira,]. 

Poderia continuar no paralelismo de leitura dos dois poemas, mas deixo essa descoberta para os leitores que lerem os poemas mais à frente. 

No poema de Wordsworth, do encontro com o canto da ceifeira ganha o poeta a serenidade que a verdade das coisas simples transporta:

…

Sem falar, quieto, eu escutava.

E, quando o monte subia,

no coração transportava

o canto que não se ouvia.

 

No poema de Pessoa deparamos com uma meditação simultânea sobre a busca de sentido dos comportamentos perante as dificuldades do existir, … E canta como se tivesse / Mais razões para cantar que a vida./ …, e o desejo de ser outro que a contemplação da harmonia entre um nós e o mundo sempre traz consigo: … / Ah, poder ser tu, sendo eu! / …

 

 

Os poemas

 

William Wordsworth —  A Ceifeira solitária

 

Só ela no campo vi:

solitária de altas serras,

ceifa e canta para si.

Não digas nada, que a aterras!

Sozinha ceifa no mundo

e canta melancolia.

Escuta: o vale profundo

transborda já de harmonia.

 

Nunca um rouxinol cantou

em sombras da Arábia ardente

ao que exausto repousou

mais grata canção dolente;

ou gorjeio tão extremado

se escutou na Primavera,

cortando o Oceano calado

entre ilhas de Além-Quimera.

 

Quem me dirá do que canta?

Será que o que ela deplora

é antigo, triste e distante,

como batalhas de outrora?

Ou coisas simples são

do quotidiano viver?

Essas dor’s de coração,

que já foram e hão-de ser?

 

Seja o que for que cantara

é como infindo cantar,

que a vi cantando na seara,

no trabalho de ceifar.

Sem falar, quieto, eu escutava.

E, quando o monte subia,

no coração transportava

o canto que não se ouvia.

 

Tradução de Jorge de Sena. 

in Jorge de Sena, Poesia de  26 séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993.

 

 

Fernando Pessoa — [Ela canta, pobre ceifeira,]

 

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,

 

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

 

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões para cantar que a vida.

 

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente está pensando.

Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

 

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

 

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

s/d

in Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  – 108.

1ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: Dez. 1924.

 

 

Apêndice

Num registo mais ligeiro concluo com um Cantar de Ceifa por Lope de Vega (1562-1635), quem sabe, talvez semelhante ao cantar que desencadeou as reflexões poeticas que antes lemos.

 

Lope de Vega — Cantar de Ceifa

 

Tão branca tanto que eu era,

quando entrei para ceifar;

deu-me o sol, fiquei morena.

 

Tão branca soía eu ser

antes de vir a ceifar,

mas não quis o sol deixar

branco o fogo em meu poder.

No tempo do amanhecer

era eu brilhante açucena:

deu-me o sol, fiquei morena.

 

in Jorge de Sena, Poesia de  26 séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993.

 

Nota final

Perdem-se-me na memória os poemas publicados no blog. Para evitar duplicações, e quando a dúvida surge, pesquiso o blog para ver se algum dos poemas que vou transcrever já aqui está. Qual caixa de surpresas, o blog, muitas vezes vou de artigo em artigo, ora surpreendido, ora pasmado com o que escolhi, escrevi, e aqui encontro. Hoje foi uma dessas ocasiões. Na dúvida se já teria transcrito o poema de Fernando Pessoa [Ela canta, pobre ceifeira,], pesquiso o blog e eis que encontro o belíssimo poema de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) sobre a ceifeira Catarina Eufémia (1928-1954) (o leitor curioso encontra-o aqui). Não estando ainda no blog o poema de Pessoa, foi hoje a vez dele, e com companhia. Neste anterior artigo, além do poema de Sophia encontra-se também um poema de Luís Augusto Palmeirim (1825-1893), A Ceifeira, sobre uma ceifeira de pele morena, crestada pelo sol, e a sua beleza, eco talvez involuntário da anterior canção de Lope de Vega.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Pieter Bruegel, o Velho (ca. 1525–1569) A Colheita, de 1565, pertencente à colecção do Met (The Metropolitan Museum of Art) de New York.

 

 

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S. Gonçalo d’Amarante — poema de Luís Augusto Palmeirim

18 Segunda-feira Set 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Keith Haring, Luis Augusto Palmeirim

De mãos dadas com a religiosidade popular corre pelo país uma brejeirice de mal disfarçada conotação sexual, sobretudo associada aos chamados Santos Populares, que se manifesta na poesia e nas canções populares. Dou um exemplo para São Gonçalo de Amarante, casamenteiro das velhas, na invocação de uma devota desejosa de casar:

 

São Gonçalo de Amarante
Valei-me que bem podeis
Já tenho teias de aranha
No sítio que vós sabeis.

 

 

Eco e memória pagã de divindades itifálicas, São Gonçalo de Amarante é um santo casamenteiro de mulheres sem idade quando passada a primeira juventude. Vale a pena precisar que para a Igreja católica São Gonçalo não é santo mas beato.
A imagem do beato que ainda hoje se conserva na sacristia da sua igreja em Amarante, Portugal, é dotada de poderoso instrumento sexual tornado visível em erecção ao ser puxado um fio. E esse atributo de virilidade a lembrar Príapo, o itifálico deus romano, encontrou lugar na doçaria popular de Amarante — os quilhões de São Gonçalo — doce em forma de pénis e testículos que pode ser comprado nos tamanhos adequados à cliente.

 

 

O poema que a seguir transcrevo, S. Gonçalo d’Amarante, de Luís Augusto Palmeirim (1825-1893), é uma invocação ao santo, para que reoriente o seu poder de intersecção para as moças casadoiras, proporcionar-lhes vários namorados, e abandone as velhas a que se dedica a arranjar marido, em troca de muito melhores recompensas.
O poema foi por tal forma popular que hoje a primeira quadra passa por ser quadra popular de autor desconhecido.

 

S. Gonçalo d’Amarante

S. Gonçalo d’Amarante,
Casamenteiro das velhas,
Porque não casais as moças?
Que mal vos fizeram elas!

Sejam as velhas beatas
Vos rezem com santidade
São de mais, há-as de sobra
Na vossa santa irmandade.

Rezar-vos-ei, ó meu santo,
Três padres-nossos cantados.
Se por cada um me deres
Três esbeltos namorados.

Irei descalça ouvir missa
No dia do vosso nome
Se eu alcançar boa paga
Deste amor que me consome.

Nem todas as velhas juntas
Levarão tantos bentinhos
Como encobertos nesta alma
Levarei ternos carinhos.

S. Gonçalo d’Amarante
Brincalhão e galhofeiro,
Fazei-vos antes das moças
Devoto casamenteiro.

Que eu vos prometo por todas,
(Casando a nosso contento)
Muita crença na virtude,
Muita fé no casamento.

Promessas que fazem moças,
Têm tal condão e verdade,
Que o santo deixou as velhas,
Pelas moças… por bondade…

E a datar desta promessa,
Feita ao bom de S. Gonçalo,
Não há uma só donzela
Que possa deixar de amá-lo.

Que a todas o bom do santo
Deu alma pra seis amores,
A qual deles o mais falso,
Em seus dons e seus favores!

S. Gonçalo d’Amarante
Um dos meus três namorados
Irá rezar-vos por mim
Os padres-nossos cantados.

E só se dirá, mentindo,
Dum santo tão galhofeiro,
Que inda é, como era dantes,
Das velhas casamenteiro!

 

 

in Poesias, 1ª edição, Imprensa Nacional, 1851.
Modernizei a ortografia.

 

Nota iconográfica

Sirvo-me, para ilustrar este artigo, não do artefacto da imagem do santo, mas de uma das pinturas de Keith Haring (1958-1990), onde o instrumento amplamente figura.

 

Nota final

O culto ao beato português São Gonçalo espalhou-se da Índia ao Brasil onde hoje é de popular devoção um pouco por todo o país.
Os quilhões de São Gonçalo acima referidos foram doces de venda proibida durante o Salazarismo.

 

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A Ceifeira, poema de Luís Augusto Palmeirim com passagem por Sophia

24 Quinta-feira Abr 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga, Poetas e Poemas

≈ 3 comentários

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Luis Augusto Palmeirim, Malevitch, Sophia de Mello Breyner Andresen

Ceifeiras 1929-33Em outros artigos do blog já referi o que de relevante me pareceu sobre a poesia de Luís Augusto Palmeirim (1825-1893) e o contexto de época em que a escreveu. Hoje venho com um poema onde um tipo de mulher do povo se elogia — A Ceifeira, num tempo em que apenas as burguesas eram matéria de inspiração poética.  

 

Profissão felizmente extinta pela tecnologia, a ceifa era uma actividade duríssima e sobre ela temos vasta produção literária no século XX, sobretudo entre os escritores neo-realistas. Nas lutas dos trabalhadores rurais por melhores condições de vida coube a uma ceifeira, Catarina Eufémia (1928-1954), o destino de heroína, ao cair morta às balas da polícia. É a esta mulher, a certa altura tornada símbolo, que Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) dedica um poema belíssimo e simultaneamente uma notável reflexão sobre Justiça e ser Mulher — inocência frontal que não recua:

 Mulher com pau vermelho 1932-33

Catarina Eufémia

 

O primeiro tema da reflexão grega é a justiça

E eu penso nesse instante em que ficaste exposta

Estavas grávida porém não recuaste

Porque a tua lição é esta: fazer frente

 

Pois não deste homem por ti

E não ficaste em casa a cozinhar intrigas

Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres

Nem usaste de manobra ou de calúnia

E não serviste apenas para chorar os mortos

 

Tinha chegado o tempo

Em que era preciso que alguém não recuasse

E a terra bebeu um sangue duas vezes puro

 

Porque eras a mulher e não somente a fêmea

Eras a inocência frontal que não recua

Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste

E a busca da justiça continua

 

Publicado em Dual, 1972, transcrito de Obra Poética, Editorial Caminho, Lisboa, 2011.

Raparigas no campo 1928É outro o universo em que o poema de Luís Augusto Palmeirim se move. É a graça feminil da mulher que o poeta canta, realçando como valores de beleza, ao contrário do estereótipo da época, a pele trigueira, queimada pelo sol.

A Ceifeira

 

Há quem diga por inveja

Que és feia por ser trigueira;

Dizem as damas da corte,

Deixai-as dizer ceifeira.

 

Quisera que elas te vissem

Feita senhora festeira,

Que me dissessem depois,

Se eras ou não feiticeira!

 

Que vissem com que requebros

Tu vais a mercar na feira,

Que vissem como inocente

Vais depois pular na eira.

 

Mariquinhas de olhos pretos,

Mimosa—gentil ceifeira,

És bela por caprichosa,

És linda por ser trigueira.

 

Hei-de ir à festa e de longe

Ver-te na dança ligeira,

A ver se coras na dança,

A ver se tens quem te queira.

 

Hei-de ir depois alcançar-te

No atalho, mesmo à beira,

E dizer-te que na dança

Eras gentil, a primeira.

 

A dizer-te que eras linda

Como aurora prazenteira;

A contar-te que na festa

Eras só, sem companheira.

 

A contar-te que não perdes

Por te chamarem trigueira,

A ti, rainha da festa

Mimosa—gentil ceifeira.

 

A ti que eu vi assentada

Ontem à noite à lareira,

Crendo deveras num conto,

Num conto de feiticeira.

 

A ti que vergas a cinta,

Como se verga a palmeira,

Que tens escrita no rosto

Inspiraçâo verdadeira.

 

A ti que dormes com o Cristo  

Pendente da cabeceira;

Que só choraste na vida,

Uma vez—por brincadeira!

 

A quem chamam, por inveja,

A Mariquinhas trigueira;

Porque sabem que és de todas

A mais mimosa ceifeira!

 

Porque tens nos olhos negros

O condão de dar cegueira,

A quem os fita de perto,

Com atenção verdadeira.

 

Só te falta alva capela,

Das flores da laranjeira,

Que a todos diga que a noiva

Era ainda há pouco a festeira.

 

Que nos dê a triste nova,

Que pela vez derradeira,

Vemos de perto tão perto

Aquela fronte fagueira.

 

A quem as mais, por despique,

Vendo a formosa ceifeira,

Diziam — coitada dela

Sendo assim morre solteira!

 

Transcrito de Poesias, 1ª edição, Imprensa Nacional, 1851.

Modernizei a ortografia.

Ceifeiras

No confronto destes poemas surge, gritante, a distância entre a exigência intelectual que a poesia pode ser e ter, e a graciosidade rítmica que consola o leitor poupando-o ao “enfado” da reflexão. E nesse confronto medimos também a distância que separa hoje o gosto do leitor, do gosto dos leitores de há 150 anos, se tivermos em conta quanto ambos os poetas foram populares no tempo que viveram.

 

Acompanham o artigo imagens de pinturas de Kasimir Malevitch (1879-1935).

 

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Sonhei-a! A mulher imaginada dos Romanticos (um exemplo)

19 Domingo Jun 2011

Posted by viciodapoesia in A mulher imaginada, Poesia Antiga

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Luis Augusto Palmeirim

Os transportes de paixão abundam na poesia romântica e pós-romantica até à fragorosa chegada do modernismo à poesia, no inicio do século XX.

Não constituindo o seu único assunto, nem sequer, diria, o mais importante, são quase sempre formas encapotadas de dirigir declarações de amor a alguém, pois nestas gerações, os poetas foram-no, quase sempre, apenas enquanto moços.

Quando não estamos perante a louvação dos encantos de quem se ama, surgem-nos retratos da mulher idealizada por estes jovens no século XIX, que acabam por nos transmitir uma imagem de mulher sonhada, num paradigma que hoje nos é estranho.

No poema que escolhi, Sonhei-a!   temos  no inicio, como componentes do retrato: Era triste, mas serena,

 e a terminar

Era triste como eu gosto; / Era linda como aposto / Que não havia outra igual;

…

Sonhei-a como uma fada, / Que tem vivido encantada / Sozinha – na solidão!

Que ficaremos a saber desta mulher?

Era tão linda a donzela, / Que eu ficaria ao pé dela / A minha vida…, a sonhar!

e ainda

Rezava que quem a visse, / Pode ser que a confundisse / Com algum anjo do céu.

 

Descrita de forma impalpável, a mulher sonhada pelo poeta mostra-se um ser etéreo, em quem não são perceptíveis qualidades que não corar ao dizer Algumas falas de amor:

Já de mansinho dizia / Algumas falas de amor.

…

Dizia-as sempre corando, / Repetia-as soluçando /D’olhos pregados no chão;

…

E depois envergonhada, / De não ser mais recatada, / Corava ainda outra vez!

 

 

Transtornado por este quadro diz-nos o nosso poeta o que fez:

 Beijei-lhe a mão com respeito; / Arfava-lhe o lindo peito, / Batia-lhe o coração.

 

 

Aqui chegados, fica por perceber com quem sonhou o poeta.

Talvez a leitura integral do poema ajude, e ele aí fica.

Sonhei-a!

 

Sonhei-a! Tenho na mente

O seu retrato inocente

A falar-me ao coração.

Sonhei-a como uma fada,

Que tem vivido encantada

Sozinha na solidão.

 

Sonhei-a d’olhos pisados,

Porque os prantos magoados

Lh’os tinham pisado assim:

Era triste, mas serena,

Como a gentil açucena,

Rainha do meu jardim.

 

Sonhei-a triste: – a tristeza

Tem nos olhos da beleza

Encantos qu’eu não direi.

Sonhei-a linda – trigueira,

Como se pinta a ceifeira,

Como eu pintá-la não sei.

 

Sonhei-a no fim do dia,

Quando tudo é melodia,

Quando tudo fala em Deus.

Vi-a sozinha pensando,

Talvez com prantos regando

Alguns pobres versos meus.

 

Sonhei-a como eu pequeno,

Naquele sonhar ameno,

Sonhava tudo o que é bom.

Cuidei vê-la que me olhava,

Tão triste que não falava

Nem da voz lhe ouvia o som.

 

Sonhei-a vindo da guerra,

A falar da minha terra

Como fala o trovador;

Mas então já se sorria,

Já de mansinho dizia

Algumas falas de amor.

 

Dizia-as como quem sente,

Não altas, mas como a gente

As diz em coisas assim:

Dizia-as como as diria

Beatriz quando as sentia

Falando de Bernardim.

 

Dizia-as sempre corando,

Repetia-as soluçando

D’olhos pregados no chão;

Dizia-as como eu jurara,

Que ninguém ainda amara

No mundo com tal paixão.

 

E depois envergonhada,

De não ser mais recatada,

Corava ainda outra vez!

Corava… corava ainda

Cada vez era mais linda,

Mais linda, que Deus a fez!

 

Qu’ria falar não podia,

Que a vergonha lh’impedia

De poder usar a voz.

Era então que se lembrava

De que o mundo a censurava

De nos ver falar a sós.

 

Sonhei-a depois rezando,

Talvez em segredo orando

Pela terra em que nasceu;

Rezava que quem a visse,

Pode ser que a confundisse

Com algum anjo do céu.

 

Tinha as tranças desprendidas,

Levemente sacudidas

Por ligeira viração.

Dos labios lhe baloiçava

Uma oração que rezava

Do fundo do coração.

 

Vista assim, em tal postura,

Crescia-lhe a formusura,

Se ela pudesse crescer.

Não podia, nem num canto

Se pode tamanho encanto

Com verdade descrever.

 

Sonhei em sonho fagueiro

Que era um amor verdadeiro

Aquele tão casto amor;

Costumado à desventura,

Só em sonhos a ventura

Visitou o trovador!

 

Falei-lhe tão meigas falas,

Que nunca as damas das salas

M’as podem ouvir assim:

Ela era linda, inocente,

Falei-lhe como quem sente,

Falei-lhe pouco de mim.

 

Beijei-lhe a mão com respeito;

Arfava-lhe o lindo peito,

Batia-lhe o coração.

Jurei-lhe… não digo a jura;

Tenho medo que a ventura

Me não deixe a discrição!

 

Sonhei-a então pensativa,

Como fica a sensitiva

Se lhe vão no pé tocar:

Era tão linda a donzela,

Que eu ficaria ao pé dela

A minha vida…, a sonhar!

 

Era triste como eu gosto;

Era linda como aposto

Que não havia outra igual;

Sendo tantas como as rosas,

As filhas belas, mimosas,

Das terras de Portugal!

 

Sonhei-a: se foi mentira

Cantei-a de mais na lira,

Morri por ela de mais.

Se o sonho foi verdadeiro,

Nem o canto é lisonjeiro,

Nem as trovas desleais.

 

Sonhei-a! Tenho na mente

O seu retrato inocente

A falar-me ao coração!

Sonhei-a como uma fada,

Que tem vivido encantada

Sozinha – na solidão!

Esta mulher sonhada, foi-o na pena de Luis Augusto Palmeirim (1825-1893).

Embora cronologica e estilisticamente poeta da segunda geração romântica, Luis Augusto Palmeirim não integrou nem o grupo de O Trovador, nem o grupo de O Bardo, ou sequer o grupo de O Novo Trovador. A poesia Sonhei-a! foi publicada em Poesias, pela primeira vez em 1851 com um retrato do poeta que reproduzo a seguir.

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Luis Augusto Palmeirim — uma Arte Poética do Romantismo

09 Quinta-feira Jun 2011

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Luis Augusto Palmeirim

Este Portugal, mantido e conservado pelas classes omnipotentes, não é um cadáver ilustre, é apenas um moribundo, aterrado pela ideia da morte, mas sem coragem para se abraçar com a vida…

Isto escrevia Lopes de Mendonça há 160 anos, em 1851, na apresentação das Poesias de Luis Augusto Palmeirim (1825-1893), e continuava:

… três séculos de monarquia absoluta esgotaram-lhe a glória: dezassete anos de realeza representativa desbotartam-lhe a fé: estas revoluções parciais, sem elevados intuitos, nem ideias definidas, definharam-lhe a esperança, e entregaram o seu destino à mais horrivel das fatalidades – aos acasos tremendos da insurreição popular, cega nas suas cóleras, implacável nos seus desejos, atroz, quase sempre, nas explosões omnipotentes da sua vontade.

Quem levou o problema politico até estes fatais extremos? Quem é que podendo encaminhar a sociedade, pausada e progressivamente, a coloca no fim de tantos anos perto das calamidades duma dissolução iminente?

Não somos nós, decerto, os homens da geração nova, que protestamos todos os dias contra as torpezas e desvaríos dessa raça espoliadora e inepta, que ou no poder ou na oposição, apenas se agita no prurido de vaidades turbulentas, e de interesses perversos, que havemos de carregar com essa responsabilidade.

…

Todos sois cúmplices; progressistas medrosos, conservadores corruptos, absolutistas cépticos, devoristas insaciáveis.

O que fizestes durante dezassete anos?

O silêncio da ignomínia é a vossa sentença final.

Foi longa a citação mas a actualidade dos juizos justifica-a. E tudo isto escrevia o nosso penetrante e respeitado critico para a seguir referir:

E todavia, meu caro poeta, se há alguma coisa que possa sobreviver no meio desse cataclismo, que eu prevejo, e que não olho sem terror, é a arte, é a poesia, são esses cantos, que a tua musa (perdoa a trivialidade da expressão) fiou descuidosa e tranquila, ao canto da lareira, nas noites de inverno, e que o nosso povo repete desde os pântanos do Ribatejo até às formosas várzeas de Trás-os-Montes.

Enganou-se o escritor pois hoje Luis Augusto Palmeirim é apenas um nome referido en passant em histórias de literatura, e nem sequer frequente em nomes de rua, como a outros acontece.

Reivindicando-se poeta da Liberdade, Luis Augusto Palmeirim, militar formado no Colégio Militar, foi actor activo das lutas da Maria da Fonte:

Sou um poeta soldado, / Não sei à missão mentir;/ Neste canto magoado,/ Disse tudo sem fingir./ Poeta da liberdade./ Fiz dessa nova deidade/ A dama do meu pensar

Dificilmente conseguimos imaginar hoje a popularidade de que gozou à época a poesia de Palmeirim recitada e declamada em privado e em público.

 A tranquilidade da vida e o progresso material conhecidos na sociedade portuguesa com a Regeneração, acontecida pouco depois da publicação da primeira edição destas poesias, recolocaram socialmente os tipos populares nela saudados, vindo a empurrar para o esquecimento estes poemas de exaltação do heroísmo ditados pela guerra civil e suas peculiaridades.

Poesia maioritariamente escrita nas formas populares de sextilhas e décimas, em versos de cinco (redondilha menor) e sete sílabas (redondilha maior), o ritmo da métrica e a sonoridade da rima proporcionam uma leitura fluida e encantatória, onde a singeleza de ideias e assunto garantem uma aprazivel leitura.

Dir-se-á que hoje se pede mais à poesia. Talvez. Mas o prazer de leitura que esta proporciona permanece à nossa espera.

Poesia

 Vou cantar, foi minha sina

Cantando levar a dor:

Hei-de cumpri-la. É divina

A missão do trovador.

Quiz-me Deus por seu profeta,

Fadou-me, fez-me poeta,

Deu-me este mago condão;

Não hei-de mentir à lira,

Nem envolver na mentira

As vozes do coração.

 

Não hei-de; que a poesia

Dentro d’alma me nasceu,

Tão casta como a sentia

O namorado Dirceu.

Tão pura como desliza

Das palavras d’Heloísa

A descrever Abeilard;

Tão robusta, tão provada,

Como contam da espada

Do Camões – a guerrear!

 

Brotou-me puro e singelo

O meu singelo trovar,

Como nasce o lirio belo

Sem cultura à beira-mar.

Nunca teve outro cimento,

Que não fosse o sentimento

D’este mundo desleal;

Nunca teve outra alegria,

Senão em sonhar um dia

Venturas a Portugal.

 

Cantei em trovas sentidas,

Como cantou Bernardim,

Todas as juras mentidas

Que me fizeram a mim!

Fui poeta dos amores;

Como os demais trovadores

Uns lindos olhos cantei;

Como a Tasso desprezado,

Ainda não sei, coitado!

Como à vida me voltei!

 

Mas voltei; tinha saudades

Da minha terra infeliz,

Esqueceram-me as maldades

D’esta nova Beatriz.

Tinha prisões mais doiradas:

Eram as crenças herdadas

Da minha terra natal;

Eram os contos viçosos,

Noutros tempos mais ditosos,

Contados de Portugal.

 

Era tudo o que no peito

Sente quem tem coração;

Era temporal desfeito

De saudades e de paixão;

Ao amor faziam guerra,

As lembranças desta terra

Em que vi, gozei a luz;

Em que, pela vez primeira,

Tive crença verdadeira

Na santa lei de Jesus.

 

Nascera-me dentro d’alma

Um mais forte e puro amor.

Que a todos levava a palma,

Que tinha maior valor.

Eram cantos decorados,

Dos altos feitos marcados

Com o cunho português;

Eram as quinas erguidas,

Nas arestas denegridas

De Ceilão, Ormuz e Fez!

 

De novo voltei à vida,

Saudei o luso pendão,

Numa lágrima nascida

Do fundo do coração!

Chorei o tempo perdido

Nesse amor estremecido,

Que me fora tão cruel;

Chorei antigos delitos,

Como outrora esses proscritos

Sobre a terra d’Israel!

 

Chorei o ter-me esquecido

De tudo o que Deus mandou

Que fosse no mundo tido

Como Ele o ensinou!

Chorei sobre a liberdade,

Que nos braços da beldade

Por pouco que não morreu;

Chorei tudo, chorei tanto,

Que pude com o meu pranto

Lavar o delito meu.

 

Desde então a minha terra

Foi só tudo para mim;

As crenças que o peito encerra,

Depôr-lhas aos pés eu vim.

Nunca mais a minha lira

Se adornou de vã mentira

Dum falso mentido amor;

Ergui-me de pé – altivo,

Depuz ferros de cativo

Por honra do trovador.

 

Sou um poeta soldado,

Não sei à missão mentir;

Neste canto magoado,

Disse tudo sem fingir.

Poeta da liberdade.

Fiz dessa nova deidade

A dama do meu pensar:

Prostrei-me aos pés da donzela,

Hei-de com ela, e por ela,

A minha terra cantar.

 

Hei-de, sim, que as rudes falas

De soldado as puz aqui;

Mentiras que são das salas,

Nunca eu as traduzi.

Não as sei – nem que soubera,

Nestes versos as pusera,

Que todos verdades são;

Nem tem lugar a mentira,

Traduzindo aqui na lira

As vozes do coração!

Para a biografia do poeta remeto o leitor para o competente e informado artigo PALMEIRIM, LUÍS AUGUSTO (XAVIER) de F. Freitas Morna publicado no DICIONÁRIO DO ROMANTISMO LITERÁRIO PORTUGUÊS  editado pela Caminho em 1997.

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