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Este Portugal, mantido e conservado pelas classes omnipotentes, não é um cadáver ilustre, é apenas um moribundo, aterrado pela ideia da morte, mas sem coragem para se abraçar com a vida…
Isto escrevia Lopes de Mendonça há 160 anos, em 1851, na apresentação das Poesias de Luis Augusto Palmeirim (1825-1893), e continuava:
… três séculos de monarquia absoluta esgotaram-lhe a glória: dezassete anos de realeza representativa desbotartam-lhe a fé: estas revoluções parciais, sem elevados intuitos, nem ideias definidas, definharam-lhe a esperança, e entregaram o seu destino à mais horrivel das fatalidades – aos acasos tremendos da insurreição popular, cega nas suas cóleras, implacável nos seus desejos, atroz, quase sempre, nas explosões omnipotentes da sua vontade.
Quem levou o problema politico até estes fatais extremos? Quem é que podendo encaminhar a sociedade, pausada e progressivamente, a coloca no fim de tantos anos perto das calamidades duma dissolução iminente?
Não somos nós, decerto, os homens da geração nova, que protestamos todos os dias contra as torpezas e desvaríos dessa raça espoliadora e inepta, que ou no poder ou na oposição, apenas se agita no prurido de vaidades turbulentas, e de interesses perversos, que havemos de carregar com essa responsabilidade.
…
Todos sois cúmplices; progressistas medrosos, conservadores corruptos, absolutistas cépticos, devoristas insaciáveis.
O que fizestes durante dezassete anos?
O silêncio da ignomínia é a vossa sentença final.
Foi longa a citação mas a actualidade dos juizos justifica-a. E tudo isto escrevia o nosso penetrante e respeitado critico para a seguir referir:
E todavia, meu caro poeta, se há alguma coisa que possa sobreviver no meio desse cataclismo, que eu prevejo, e que não olho sem terror, é a arte, é a poesia, são esses cantos, que a tua musa (perdoa a trivialidade da expressão) fiou descuidosa e tranquila, ao canto da lareira, nas noites de inverno, e que o nosso povo repete desde os pântanos do Ribatejo até às formosas várzeas de Trás-os-Montes.
Enganou-se o escritor pois hoje Luis Augusto Palmeirim é apenas um nome referido en passant em histórias de literatura, e nem sequer frequente em nomes de rua, como a outros acontece.
Reivindicando-se poeta da Liberdade, Luis Augusto Palmeirim, militar formado no Colégio Militar, foi actor activo das lutas da Maria da Fonte:
Sou um poeta soldado, / Não sei à missão mentir;/ Neste canto magoado,/ Disse tudo sem fingir./ Poeta da liberdade./ Fiz dessa nova deidade/ A dama do meu pensar
Dificilmente conseguimos imaginar hoje a popularidade de que gozou à época a poesia de Palmeirim recitada e declamada em privado e em público.
A tranquilidade da vida e o progresso material conhecidos na sociedade portuguesa com a Regeneração, acontecida pouco depois da publicação da primeira edição destas poesias, recolocaram socialmente os tipos populares nela saudados, vindo a empurrar para o esquecimento estes poemas de exaltação do heroísmo ditados pela guerra civil e suas peculiaridades.
Poesia maioritariamente escrita nas formas populares de sextilhas e décimas, em versos de cinco (redondilha menor) e sete sílabas (redondilha maior), o ritmo da métrica e a sonoridade da rima proporcionam uma leitura fluida e encantatória, onde a singeleza de ideias e assunto garantem uma aprazivel leitura.
Dir-se-á que hoje se pede mais à poesia. Talvez. Mas o prazer de leitura que esta proporciona permanece à nossa espera.
Poesia
Vou cantar, foi minha sina
Cantando levar a dor:
Hei-de cumpri-la. É divina
A missão do trovador.
Quiz-me Deus por seu profeta,
Fadou-me, fez-me poeta,
Deu-me este mago condão;
Não hei-de mentir à lira,
Nem envolver na mentira
As vozes do coração.
Não hei-de; que a poesia
Dentro d’alma me nasceu,
Tão casta como a sentia
O namorado Dirceu.
Tão pura como desliza
Das palavras d’Heloísa
A descrever Abeilard;
Tão robusta, tão provada,
Como contam da espada
Do Camões – a guerrear!
Brotou-me puro e singelo
O meu singelo trovar,
Como nasce o lirio belo
Sem cultura à beira-mar.
Nunca teve outro cimento,
Que não fosse o sentimento
D’este mundo desleal;
Nunca teve outra alegria,
Senão em sonhar um dia
Venturas a Portugal.
Cantei em trovas sentidas,
Como cantou Bernardim,
Todas as juras mentidas
Que me fizeram a mim!
Fui poeta dos amores;
Como os demais trovadores
Uns lindos olhos cantei;
Como a Tasso desprezado,
Ainda não sei, coitado!
Como à vida me voltei!
Mas voltei; tinha saudades
Da minha terra infeliz,
Esqueceram-me as maldades
D’esta nova Beatriz.
Tinha prisões mais doiradas:
Eram as crenças herdadas
Da minha terra natal;
Eram os contos viçosos,
Noutros tempos mais ditosos,
Contados de Portugal.
Era tudo o que no peito
Sente quem tem coração;
Era temporal desfeito
De saudades e de paixão;
Ao amor faziam guerra,
As lembranças desta terra
Em que vi, gozei a luz;
Em que, pela vez primeira,
Tive crença verdadeira
Na santa lei de Jesus.
Nascera-me dentro d’alma
Um mais forte e puro amor.
Que a todos levava a palma,
Que tinha maior valor.
Eram cantos decorados,
Dos altos feitos marcados
Com o cunho português;
Eram as quinas erguidas,
Nas arestas denegridas
De Ceilão, Ormuz e Fez!
De novo voltei à vida,
Saudei o luso pendão,
Numa lágrima nascida
Do fundo do coração!
Chorei o tempo perdido
Nesse amor estremecido,
Que me fora tão cruel;
Chorei antigos delitos,
Como outrora esses proscritos
Sobre a terra d’Israel!
Chorei o ter-me esquecido
De tudo o que Deus mandou
Que fosse no mundo tido
Como Ele o ensinou!
Chorei sobre a liberdade,
Que nos braços da beldade
Por pouco que não morreu;
Chorei tudo, chorei tanto,
Que pude com o meu pranto
Lavar o delito meu.
Desde então a minha terra
Foi só tudo para mim;
As crenças que o peito encerra,
Depôr-lhas aos pés eu vim.
Nunca mais a minha lira
Se adornou de vã mentira
Dum falso mentido amor;
Ergui-me de pé – altivo,
Depuz ferros de cativo
Por honra do trovador.
Sou um poeta soldado,
Não sei à missão mentir;
Neste canto magoado,
Disse tudo sem fingir.
Poeta da liberdade.
Fiz dessa nova deidade
A dama do meu pensar:
Prostrei-me aos pés da donzela,
Hei-de com ela, e por ela,
A minha terra cantar.
Hei-de, sim, que as rudes falas
De soldado as puz aqui;
Mentiras que são das salas,
Nunca eu as traduzi.
Não as sei – nem que soubera,
Nestes versos as pusera,
Que todos verdades são;
Nem tem lugar a mentira,
Traduzindo aqui na lira
As vozes do coração!
Para a biografia do poeta remeto o leitor para o competente e informado artigo PALMEIRIM, LUÍS AUGUSTO (XAVIER) de F. Freitas Morna publicado no DICIONÁRIO DO ROMANTISMO LITERÁRIO PORTUGUÊS editado pela Caminho em 1997.