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A Ceifeira segundo Wordsworth, Pessoa, e Lope de Vega

18 Sábado Jan 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Inglesa e Norte-Americana, Poesia Portuguesa do sec. XX

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Fernando Pessoa, Lope de Vega, Luis Augusto Palmeirim, o velho, Pieter Bruegel, Sophia de Mello Breyner Andresen, William Wordsworth

A mecanização das colheitas e o progressivo despovoamento dos campos remete para a experiência de quem os viveu, a memória dos ciclos do cultivo da terra, de que as colheitas eram o auge, podendo  significar abundância ou miséria para os tempos que se seguiam. Entre as colheitas, a faina da ceifa do cereal era, com a vindima, ocasião para alegria que acompanhava a dureza do trabalho. Tratava-se, afinal, de colher o que viria a dar o pão e o vinho de cada dia, essência e símbolo da alimentação. 

Com os extremos de calor pelo verão, as televisões foram à procura de testemunhos pelas terras do Alentejo onde o sol queimava, procurando saber como as pessoas mais velhas lidavam com o calor. Encontraram os testemunhos da memória desses dias de colheitas de sol a sol sob um calor inclemente, na fala da experiência de vidas de trabalho árduo, e que hoje dificilmente imaginamos na sua dureza.

Não tendo os poetas a experiência directa da rudeza do trabalho que o canto ajuda a aliviar, relatam o observável naquele efeito que Fernando Pessoa (1888-1935) refere no verso feliz: O que em mim sente está pensando. E assim, sobre a ceifa, leremos três poemas com afinidades e dissemelhanças.

Primeiro William Wordsworth (1770-1850) no poema A Ceifeira solitária, dá conta da emoção que atinge o poeta ao ouvir o canto dolente de uma ceifeira:

…

Sozinha ceifa no mundo

e canta melancolia.

Escuta: o vale profundo

transborda já de harmonia.

…

enquanto Fernando Pessoa refere:

…

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

…

São estes, versos do poema de Pessoa conhecido pelo primeiro verso, [Ela canta, pobre ceifeira,]. 

Poderia continuar no paralelismo de leitura dos dois poemas, mas deixo essa descoberta para os leitores que lerem os poemas mais à frente. 

No poema de Wordsworth, do encontro com o canto da ceifeira ganha o poeta a serenidade que a verdade das coisas simples transporta:

…

Sem falar, quieto, eu escutava.

E, quando o monte subia,

no coração transportava

o canto que não se ouvia.

 

No poema de Pessoa deparamos com uma meditação simultânea sobre a busca de sentido dos comportamentos perante as dificuldades do existir, … E canta como se tivesse / Mais razões para cantar que a vida./ …, e o desejo de ser outro que a contemplação da harmonia entre um nós e o mundo sempre traz consigo: … / Ah, poder ser tu, sendo eu! / …

 

 

Os poemas

 

William Wordsworth —  A Ceifeira solitária

 

Só ela no campo vi:

solitária de altas serras,

ceifa e canta para si.

Não digas nada, que a aterras!

Sozinha ceifa no mundo

e canta melancolia.

Escuta: o vale profundo

transborda já de harmonia.

 

Nunca um rouxinol cantou

em sombras da Arábia ardente

ao que exausto repousou

mais grata canção dolente;

ou gorjeio tão extremado

se escutou na Primavera,

cortando o Oceano calado

entre ilhas de Além-Quimera.

 

Quem me dirá do que canta?

Será que o que ela deplora

é antigo, triste e distante,

como batalhas de outrora?

Ou coisas simples são

do quotidiano viver?

Essas dor’s de coração,

que já foram e hão-de ser?

 

Seja o que for que cantara

é como infindo cantar,

que a vi cantando na seara,

no trabalho de ceifar.

Sem falar, quieto, eu escutava.

E, quando o monte subia,

no coração transportava

o canto que não se ouvia.

 

Tradução de Jorge de Sena. 

in Jorge de Sena, Poesia de  26 séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993.

 

 

Fernando Pessoa — [Ela canta, pobre ceifeira,]

 

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,

 

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

 

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões para cantar que a vida.

 

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente está pensando.

Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

 

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

 

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

s/d

in Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  – 108.

1ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: Dez. 1924.

 

 

Apêndice

Num registo mais ligeiro concluo com um Cantar de Ceifa por Lope de Vega (1562-1635), quem sabe, talvez semelhante ao cantar que desencadeou as reflexões poeticas que antes lemos.

 

Lope de Vega — Cantar de Ceifa

 

Tão branca tanto que eu era,

quando entrei para ceifar;

deu-me o sol, fiquei morena.

 

Tão branca soía eu ser

antes de vir a ceifar,

mas não quis o sol deixar

branco o fogo em meu poder.

No tempo do amanhecer

era eu brilhante açucena:

deu-me o sol, fiquei morena.

 

in Jorge de Sena, Poesia de  26 séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993.

 

Nota final

Perdem-se-me na memória os poemas publicados no blog. Para evitar duplicações, e quando a dúvida surge, pesquiso o blog para ver se algum dos poemas que vou transcrever já aqui está. Qual caixa de surpresas, o blog, muitas vezes vou de artigo em artigo, ora surpreendido, ora pasmado com o que escolhi, escrevi, e aqui encontro. Hoje foi uma dessas ocasiões. Na dúvida se já teria transcrito o poema de Fernando Pessoa [Ela canta, pobre ceifeira,], pesquiso o blog e eis que encontro o belíssimo poema de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) sobre a ceifeira Catarina Eufémia (1928-1954) (o leitor curioso encontra-o aqui). Não estando ainda no blog o poema de Pessoa, foi hoje a vez dele, e com companhia. Neste anterior artigo, além do poema de Sophia encontra-se também um poema de Luís Augusto Palmeirim (1825-1893), A Ceifeira, sobre uma ceifeira de pele morena, crestada pelo sol, e a sua beleza, eco talvez involuntário da anterior canção de Lope de Vega.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Pieter Bruegel, o Velho (ca. 1525–1569) A Colheita, de 1565, pertencente à colecção do Met (The Metropolitan Museum of Art) de New York.

 

 

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Quadras: do Povo a Fernando Pessoa para a Dança camponesa de Bruegel

17 Sexta-feira Abr 2015

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga, Poetas e Poemas

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Heterónimos de Fernando Pessoa, Pieter Bruegel, Quadras Populares

Bruegel - danças camponesasAEncanta-me a pintura de Pieter Bruegel (1520-1569) no seu colorido e detalhe descritivo. Dando conta de um mundo extinto, muito do que lá se vê ainda por cá acontece. Por exemplo, a festa de camponeses. À parte a roupa, que diferenças de atmosfera encontramos na pintura que não se repitam hoje, logo que a ocasião se proporcione? No fixo da representação a alegria transborda e as gentes conversam, dançam e namoram à nossa frente como se ali estivéssemos a um par de metros.

Na verdade, uma das proezas técnicas da pintura é a localização do observador. Pintada a cena ao nível do nosso olhar, com o uso de uma perspectiva rigorosa, apenas usual em paisagem e não em multidão, é essa posição que nos dá a ilusão de presenciar a festa no momento em que ela decorre.

É uma pintura de onde a ironia, a sátira, e mesmo a metáfora estão ausentes. Representa-se apenas gente vivendo os seus costumes, e o uso da perspectiva central coloca o pintor e nós como parte desta humanidade.

Na representação das figuras, o desenho usa da mais pura técnica clássica, tal qual como se de uma representação religiosa, mística ou de altos personagens se tratasse, e não de gente simples (que à época não era assunto de pintura), dispensando em absoluto o maneirismo ou o anedótico.

A pintura é de grandes dimensões (114x164cm) e vê-la proporciona um imenso prazer. Pintou-a o artista no final da vida, por volta de 1568, e guarda-se no museu de arte antiga de Viena.

Acrescento alguns detalhes para seu maior prazer, leitor.

Bruegel - danças camponesas 1

Bruegel - danças camponesas 2

Bruegel - danças camponesas 3

Bruegel - danças camponesas 4Termino com um grande plano do beijo que na pintura surge ao cimo, à esquerda, acompanhado por populares declarações de amor em quadra, a que entremeio a inspiração de Fernando Pessoa.

Bruegel - danças camponesas 5

Apalpei meu lado esquerdo

Nao achei o coração,

Chegou-me a feliz notícia

Que estava na tua mão.

(Popular)

Quando passo um dia inteiro

Sem ver o meu amorzinho,

Corre um frio de Janeiro

No Junho do meu carinho.

Fernando Pessoa (1920)

Tenho dentro do meu peito

Duas escadas de flores,

Por uma descem suspiros,

Por outra sobem amores.

(Popular)

Se morrendo eu acabar

E nada restar de mim,

Não te esqueças de lembrar

Que só te esqueci assim.

Fernando Pessoa (1934)

O papel em que te escrevo

Tenho-o na palma da mão:

A tinta sai-me dos olhos

E a pena do coração.

(Popular)

Até breve!

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