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Hesíodo e outros esclarecem-nos sobre as musas

16 Segunda-feira Nov 2020

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Andrea Mantegna, Filinto Elysio

…[As musas foram criadas] 

para que fossem esquecimento de males e alívio de aflições.                     55

Durante nove noites, então, a possuiu [Mnemósine] o prudente Zeus, 

tomando lugar no seu leito sagrado, longe dos Imortais. 

E quando, depois, passou o tempo devido e, com o volver das estações, 

se completaram os meses e muitos dias chegaram ao seu termo, 

ela deu à luz nove filhas de sensibilidade igual, às quais apenas o canto  60

preocupava, nos peitos, o coração isento de cuidados, 

…

in Hesíodo, Teogonia (55-61)

 

 

Desaparecidos os estudos sobre a cultura greco-latina dos cursos generalistas do ensino, hoje apenas estudiosos da especialidade a dominam. No entanto, para o individuo medianamente culto, esta ausência surge como uma falha, ficando tantas vezes leituras, obras plásticas, e visitas a lugares históricos, incompletamente apreendidas no seu significado intrínseco, e como nos podem aproveitar enquanto legado de uma vivência que está na raiz do nosso mundo ocidental. Hoje trago tão só uma pequena elucidação, talvez útil, para o leitor de poesia antiga. Nesta, é recorrente o termo musa ou musas como invocatória, ou fonte de uma qualquer inspiração adicional. E é exactamente à descodificação de quem são esses seres que convido o leitor. 

 

Filhas de Zeus e Mnemósine nascidas de nove noites de amor, no seu precioso Dicionário da Mitologia Grega e Romana, Pierre Grimal dá-nos um esclarecimento sucinto do que representam as Musas:

“Musas: Existindo diversos mitos sobre as musas e sua origem, na época clássica grega impuseram-se as Musas de Helicon, na dependência de Apolo que as dirige. São geralmente nove e com o tempo receberam uma função específica:

Clio a história

Melpómene a tragédia

Talia a comédia

Euterpe a flauta

Terpsicore a poesia ligeira e a dança

Erato a lírica coral

Calíope a poesia épica

Urânia a astronomia

Polímnia a pantomina.”

 

 

Caminhemos para trás, até ao séc. IV, e encontramos em Ausónio (310-395), poeta romano, no seu Idílio XX, a versão poetisada desta descrição de Pierre Grimal:

 

Ausónio — Idilio XX

Clio canta os feitos e dá vida ao passado.

Melpómene expande sua dor em clamor de tragédia.

A cómica Talia rejubila com a linguagem lasciva.

Euterpe com seu sopro, faz ressoar a flauta com doces acordes.

Terpsicore, com a cítara, suscita, ordena, aumenta as paixões.

Erato, segurando a lira, dança com o pé, o canto, o rosto.

Calíope confia aos livros cantos heróicos.

Urânia perscruta os movimentos do céu e os astros.

Polímnia tudo aponta com a mão, e seu gesto é uma linguagem.

A força da mente apolínea inspira todas essas musas:

sentado no meio delas, Febo abarca todas essas funções.

Tradução de João Pedro Mendes

in Construção e Arte das Bucólicas de Virgilio, Livraria Almedina, Coimbra, 1996.

 

 

Mas o leitor curioso que chegou até aqui, talvez ache interessante saber a origem remota da lenda sobre estes seres e suas atribuições. Hesiodo, o poeta grego que viveu entre os séc. VIII e VII a. C, em Teogonia conta-a assim:

 

Teogonia, Versos 36-87 e 96-103

…

Vá lá. então, comecemos pelas Musas, aquelas que a Zeus, seu pai, 

entoam hinos, alegrando-lhe o espírito imenso, na mansão do Olimpo, 

contando-lhe o presente, o futuro e o passado, 

em uníssono. Um canto inesgotável escorre-lhes

dos lábios, delicioso. E ilumina-se com um sorriso a morada do pai, 

Zeus, senhor do trovão, enquanto a voz cândida das deusas 

se eleva, fazendo vibrar o cimo do Olimpo coberto de neve 

e as moradas dos Imortais. Elas cantam com uma voz celestial, 

e, em primeiro lugar, glorificam com o seu canto a raça venerável dos deuses, 

desde as origens: aqueles a quem a Terra e o vasto Céu geraram, 

e os que deles nasceram, os deuses que concedem todas as dádivas; 

e depois, também, Zeus, pai dos deuses e dos homens, 

[a quem as deusas entoam hinos no início ^e no fim do seu canto^]

ele que entre os deuses detém o primeiro e maior poder; 

finalmente, é à raça dos homens e dos Gigantes poderosos 

que entoam hinos, alegrando o espírito de Zeus na mansão do Olimpo, 

as Musas Olímpicas, filhas de Zeus detentor da égide. 

Na Piéria, gerou-as, unida ao pai Crónida, 

Mnemósine, que reina nas colinas de Eleutéria, 

para que fossem esquecimento de males e alívio de aflições.

Durante nove noites, então, a possuiu o prudente Zeus, 

tomando lugar no seu leito sagrado, longe dos Imortais. 

E quando, depois, passou o tempo devido e, com o volver das estações, 

se completaram os meses e muitos dias chegaram ao seu termo, 

ela deu à luz nove filhas de sensibilidade igual, às quais apenas o canto 

preocupava, nos peitos, o coração isento de cuidados, 

junto ao mais alto dos picos do Olimpo coberto de neve. 

É lá que fazem luzir os seus coros e têm as suas belas moradas 

e junto delas habitam também as Graças e o Desejo, 

em ambiente de festa. Da sua boca se eleva uma voz melodiosa 

e cantam, glorificando as leis e sábios preceitos 

de todos os Imortais, fazendo ouvir sua encantadora voz.

Então, enquanto se dirigiam ao Olimpo, entoavam com bela voz 

um canto divino; e a terra negra ressoava ao som dos 

seus hinos e sob os seus pés ecoava um ritmo encantador,

quando se dirigiam para junto daquele que é seu pai; ele que reina no céu, 

senhor do trovão e do raio incandescente,

depois de, pela força, ter vencido o pai, Cronos, e de, bem, a cada 

um dos Imortais ter disposto as suas leis e fixado as competências. 

É este o canto das Musas, que têm no Olimpo sua morada 

as nove filhas nascidas do grande Zeus:

Clio e Euterpe, Talia e Melpómene,

Terpsícore e Erato,  Polímnia e Urânia, 

e Calíope, aquela que, entre todas, desempenha o mais importante papel.

É ela a que acompanha os reis veneráveis.

Aquele a quem as filhas do grande Zeus honraram, 

e a quem, de entre os reis de linhagem divina,  distinguiram à nascença,

a esse derramaram-lhe sobre a língua um doce orvalho

e dos seus lábios escorrem palavras doces como o mel; o povo todo 

fixa, então, nele os olhos quando traduz a lei divina 

em sentenças rectas. E ele, discursando, sem falhas, 

prontamente é capaz de apaziguar uma grande querela.

…

… Feliz, então, aquele a quem as Musas 

prezam; a esse corre-lhes dos lábios uma voz doce. 

Quando a alguém o luto recente ensombra o coração 

e o desgosto aflige o íntimo, então um aedo, 

sacerdote das Musas, glorifica com hinos os heróis de outrora 

e os deuses bem-aventurados, que são senhores do Olimpo, 

e, logo, ele esquece o sofrimento e de nenhum cuidado 

se lembra. Bem depressa a dádiva destas deusas o compensa.

…

 

O fragmento transcrito do poema Teogonia, de Hesíodo, foi retirado da edição conjunta de Teogonia e Trabalhos e Dias, de Hesíodo, publicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda em 2005 na colecção Biblioteca de Autores Clássicos e da responsabilidade de Ana Elias Pinheiro – Teogonia, e José Ribeiro Ferreira – Trabalhos e Dias.

 

 

Termino este périplo com a poesia portuguesa. E é sem surpresa que na obra de Filinto Elísio (1734-1819), amante como foi da cultura clássica, vamos encontrar a glosa a este assunto das musas no poema Emprego das Nove Musas que a seguir transcrevo em ortografia modernizada:

 

 

Emprego das Nove Musas

1

Com opa e manto azul, de áureas estrelas

Recamado, passeia majestosa,

C’um compasso na mão a Musa Urânia

Dos Céus medindo a vasta redondeza.

2

Emboca a tuba argêntea a augusta Clio

E faz soar num Pólo e noutro a Fama

Dos Reis e dos Heróis, que sobre-humanas

Obras, em bem dos Povos empreenderam.

3

Calíope, na Liia, em sons medidos

Conta as mesmas acçōes que Clio escreve;

E os Deuses, para ouvi-la, se debruçam

Do Olimpo, no seu Cântico enlevados.

4

Melpómene, a purpúrea, roçagante

Roupa arrastrando, c’o coturno piza

Ceptros, coroas, pelo chão caídas

Das mãos dos crus, dos pálidos Tiranos.

5

E Tália que ri, que sempre mofa,

Com mão maligna, e folgazã lhe rasga

Ao Vício a máscara; e subtis verdades

Com risonho primor enfeita airosa.

6

De murta se engrinalda a branda Erato,

Emprega as mãos em coroar amantes

Co’as rosas de Cítera, e guia as penas

De Horácio, Anacreonte, e de Petrarca.

7

Sobre alcatifas de viçosa relva

Sentada Euterpe, adoça o canto à flauta,

Nas lições dela atentos os Pastores,

A conquistar as Dríadas aprendem.

8

Nova fala mais viva que as palavras

Com que a alma exprima a força dos afectos

Nos gestos dá Polimnia; as mãos, o rosto

Dão mais que vozes, dão as cores da alma.

9

Com destras plantas, levemente airosas,

Terpsicore mil símbolos descreve,

Dá vida, alenta os ânimos que jazem,

C’o inerte peso do Ócio, quebrantados.

in Filinto Elysio, Obras Completas, tomo 1.º, Paris, Na oficina de A. Bobée, 1817.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Andrea Mantegna (1431-1506), Parnasus (1497), da colecção do Museu do Louvre.



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Tarde de amores — visão de Filinto Elysio e a tradução do original de Ovídio

16 Sexta-feira Ago 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Crónicas, Poesia Antiga

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Filinto Elysio, Giorgio Morandi, Ovídio

Morandi_Giorgio-Still_Life-c._1925…
O quarto decorado em tons pastel lembrava uma pintura de Morandi, transpirava uma atmosfera diáfana e convidava ao repouso. A luz coada pelas cortinas punha sobre os móveis encerados um dourado acolhedor. Ao longe, pela janela, espreitava o mar fundido num céu sublime, a brisa suave da tarde esvoaçava os cortinados e lambia os corpos em êxtase, deitados sobre o prazer.

No remanso da paixão contava-lhe histórias infantis. A magia que o êxtase criara prolongava-se agora no calor da voz e nas caricias que suavemente acompanhavam as peripécias ali inventadas…

fragmento de novela inédita.

Morandi_Giorgio-Passage 1913

Por estas tardes de brasa lembro-me frequentemente do poema 5 do Livro I da obra Amores de Ovídio (43 a.C -17/18 d.C.).

Corria uma tórrida tarde de Verão do ano passado quando deixei no blog a leitura do poema por David Mourão-Ferreira. Hoje a ele regresso com a visão de Filinto Elísio (1734-1819) e as convenções que o século XVIII permitia, mesmo quando o poema fosse publicado sob pseudónimo, como aconteceu.

Partia o dia em meio o sol calmoso;
Reclino o corpo a descansar no leito,
Mas aberta janela, e mal cerrada;
Qual usa premoiar a luz nos bosques,
Qual crepúsculo deixa, ao despedir-se,
Febo, ou foge a noite, à vista da alva,
Luz, que convém às moças vergonhosas,
E em que o tímido pejo ache escondrijo.
Eis vem Corina, em mal cingidas roupas,
(Sólta a madeixa e níveo peito oculta)
Qual Semíramis ( diz-se) ao leito fôra,
Gentil, e fôra Laís, de muitos dama.
Dispo-lhe a roupa, (que empecíamos pouco
De rara!) Ela pugnava por cobrir-se;
Mas, como que não quer vencer, pugnava.
Mal esteve ante meus olhos toda nua,
Não lhe vi um senão no corpo todo.
Quais vi, quais os palpei, ombros e braços!
Quais maminhas tão guapas de empalmá-las!
Que liso o ventre desce do alto peito!
Que cintura, e infantis, roliças coxas!
Que mais direi! mimoso é quanto hei visto,
E toda com o meu corpo a cingi nua.
Que há mais que ouvir? Cansámos, descansámos;
Corram-me a fio tais os meios-dias.

Filinto Elísio assinado com o pseudónimo Gregório da Silva Pinto.

Acrescento em fim de festa a viva tradução directa a partir do original latino, por Carlos Ascenso André.

Fazia calor e o dia já tinha cumprido metade das suas horas;
pousei em cima da cama o corpo para lhe dar descanso.
Uma parte da janela estava aberta, a outra parte fechada;
assim era a luz, como a que os bosques costuma deixar entrever,
como a penumbra do crepúsculo, à hora em que o sol se esvai,
ou quando a noite já se foi e não nasceu, ainda, o dia;
essa é a luz que deve amostrar-se a jovens recatadas;
nela, a timidez e a vergonha encontram refúgio.
Eis que surge Corina, resguardada e envolta na sua túnica,
os cabelos caídos de ambos os lados do colo resplandecente,
assim formosa entrava Semíramis no quarto,
diz-se, e Laís, amada por tantos homens.
Arranquei-lhe a túnica; e não é que me estorvassem muito a sua transparência,
mas ela porfiava por estar coberta daquela túnica;
pois que porfiava assim como quem não quer vencer,
foi vencida sem custo, com a sua própria ajuda.
Quando ela surgiu diante de meus olhos, o manto caído aos pés,
no corpo inteiro nem uma só mácula se me mostrou:
Que ombros! Que braços eu vi e toquei!
A beleza dos seios, como se pôs a jeito dos meus afagos!
Como era liso, abaixo da linha do peito, o ventre!
Que grandiosidade e perfeição nas coxas! Que frescura nas pernas!
Que mais minúcias direi? Nada vi que não mereça elogio,
e foi a nudez do seu corpo que apertei contra o meu.
O resto, quem o não sabe? Depois da fadiga, repousámos ambos.
Assim possam correr muitas vezes as minhas tardes!

Temos assim que para o verso de maior escândalo no poema:

forma papillarum quam fuit apta premi!

Filinto Elysio no descaro do pseudónimo nos dá no final do século XVIII

Quais maminhas tão guapas de empalmá-las!

E o nosso jovem tradutor no século XXI lê:

A beleza dos seios, como se pôs a jeito dos meus afagos!

Venha um professor de latim dilucidar as opções de tradução, porque em poesia, Filinto Elysio continua melhor, ainda que o empalmá-las surja hoje quase calão. Mas na verdade, fuit apta premi transmite um prontas a cingir, espremer, o que nestes preparos de cama é o natural. E empalmar dá mais a medida da coisa, que afago.

Nota bibliográfica
O poema por Filinto Elysio consta do Tomo 5º das suas Obras Completas, Paris, Na oficina de A. bobée, 1818. Modernizei a ortografia.

Ovídio, Amores, tradução de Carlos Ascenso André, Livros Cotovia, Lisboa, 2006.

Nota iconográfica

A pintura de Giorgio Morandi (1890-1964), dá a cor. O que de tarde acontece fica para a imaginação de quem lê, um dos prazeres da literatura.

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