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Soulages_Pierre-Peinture-2005-IIToca a todos, uma vez por outra, a saturação de viver um certo quotidiano:

Tudo é igual, mecânico e exacto.

e invade-nos um desejo de parar tudo, por-lhe um fim:

Pois não era mais humano / morrer por um bocadinho, / de vez em quando, / e recomeçar depois, / achando tudo mais novo?

sem que isso tenha em si qualquer vontade de suicídio, que não temporário:

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses

Enfim, a insatisfação humana a governar-nos a vida.

É do que nos fala o poema de José Gomes Ferreira (1900-1985)

Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde…
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida…

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima de um divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
“Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela.”

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo…

O poema foi publicado pela primeira vez em 1931 na revista Presença, e é o poema com que o poeta abre a edição da sua poesia completa: Poeta Militante.