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É conhecida a história do menino que depois do almoço queria ir para a piscina. Dizia-lhe a mãe:
– Não podes, ainda não fizeste a digestão. E o menino senta-se, olhos marejados, dificilmente contendo o choro.
Passado algum tempo, vira-se para mãe com olhar interrogativo, e de novo a resposta:
— Sem fazer a digestão não podes ir ao banho.
O menino enche o peito de coragem e entre lagrimas, balbucia:
— Mas, mãe, eu não sei como se faz a digestão!
Os desafios da educação no propósito de fazer crescer os filhos são enormes e por vezes inesperados. Mas o cuidado com eles e o desejo de que a vida lhes corra bem é de sempre.
Chega-nos da Grécia arcaica o mito sobre esta complexidade de crescer, entre a prudência que a idade aconselha e o gosto pelo novo que a descoberta do mundo e o caminhar pelo seu próprio pé desafia.
A partir de certa idade na vida é deixá-los ir, e confiar que o que connosco aprenderam lhes evite a sorte de Ícaro relatada no mito de que hoje aqui falo.
É ao poeta latino Ovídio (43 a.C.—17 d.C.) e ao seu poema Metamorfoses que vou buscar um dos relatos que nos chegaram sobre esta aventura de viver, dando conta de como a juventude nos leva por vezes a imprudências de consequências irreversíveis. Voar sim, buscar o mundo também, mas saber que o que brilha também pode queimar e que as asas com que vamos correr o mundo podem ser frágeis como cera e numa volta do caminho derreter, fazendo-nos precipitar para uma qualquer espécie de morte, ainda que figurada, é conhecimento que vale a pena meditar.
Vejamos então a história contada por Ovídio com uma arte difícil de suplantar na forma como nos vai desenhando personagens, enquadramento local, e desenvolvimento temporal, até à precipitação dos acontecimentos para que fomos subtilmente preparados.
Estamos no Livro VIII de Metamorfoses.
Depois de descrever como Dédalo, pai de Ícaro, construíra para o rei Minos de Creta o labirinto onde aprisionar o Minotauro, passa a contar a história que nos interessa:
Entretanto, Dédalo odiava Creta, odiava o longo exílio,
morto de saudades da terra natal. O mar aprisionava-o.
“Embora ele barre o meu caminho com as terras e o mar”,
disse, “ao menos, o céu está sempre aberto. Iremos por aí!
Minos pode ser dono de tudo, mas não é dono dos ares.”
Assim dizendo, aplica o seu talento a artes desconhecidas
e revoluciona a natureza. De facto, dispõe penas em filas,
[começando pelas mais curtas, a curta seguindo a longa]
a ponto de se julgar crescerem num declive: assim cresce
gradualmente a flauta campestre com as suas canas desiguais.
Depois, prende-as a meio com um fio e a base com cera,
e, tendo-as assim prendido, dobra-as em suave curvatura
para imitar as aves verídicas. Com ele está o menino,
Ícaro. Sem saber que mexia em algo para si tão perigoso,
ora, de cara risonha, tentava apanhar as penas que a brisa
vagabunda movia, ora amolecia com o polegar a loira cera;
e com esta brincadeira atrapalhava o espantoso trabalho
do pai. Quando deu o toque final ao que tinha planeado,
o artífice aventurou-se a equilibrar o próprio corpo
no par de asas, e ficou suspenso no ar, assim agitado.
Equipando também o filho, disse: “Voa a meia altura, Ícaro,
recomendo-te, para que, se fores demasiado baixo, o mar
não pese nas penas, e, demasiado alto, não as queime o fogo.
Voa entre um e outro; não te ponhas, advirto, a contemplar
Bootes ou a Hélice ou a espada desembainhada de Orion.
Vem atrás de mim: eu guiar-te-ei.”. Ao mesmo tempo que dá
tais instruções de voo, ajeita-lhe as inéditas asas nos ombros.
No meio do labor e advertências, molham-se de lagrimas
as envelhecidas faces, tremem as mãos de pai. Beija o filho,
beijos que jamais repetiria; e, elevando-se graças às asas,
levanta voo à frente. Tal como a ave ao guiar as frágeis crias
para fora do alto ninho pelo ar, ele receia pelo companheiro;
exorta-o a que o siga, e ensina-lhe as ruinosas artes
[e, batendo as asas, vai olhando para trás para as do filho].
Viu-os com espanto alguém que pescava com a trémula cana,
ou algum pastor arrimado ao cajado ou lavrador à rabiça
do arado, julgando que eram deuses aqueles que tinham
o poder de viajar pelos céus.
E já à já esquerda ficava
a Samos de Juno (para trás haviam deixado Delos e Paros),
e, à sua direita, Lebinto, tal como Calimne, rica em mel,
quando o rapaz começa a achar gozo no audacioso voo
e se afasta do guia. Arrastado pelo seu fascínio pelo céu,
rumou para as alturas. Ora, a vizinhança do sol voraz
amolece as odoríferas ceras que colavam as penas:
a cera derrete-se. Bem lá agita o rapaz os braços nus,
mas, sem asas para bater, não logra apanhar ar algum.
E a boca que gritava o nome do pai é acolhida pelas águas
azul-esverdeadas, que dele obtiveram o seu nome.
O pobre pai (que já nem pai era), “Ícaro!”, chamava,
“Ícaro!”, berrava. “Onde estás? Onde hei-de procurar-te?
“Ícaro!”, gritava. Então avistou penas a boiar nas ondas.
…
Tradução de Paulo Farmhouse Alberto
Ovídio, Metamorfoses, edição Livros Cotovia, Lisboa 2007.
Oxalá o extracto tenha despertado em algum leitor o gosto e desejo de ler tão bela obra.
Existe em português uma outra tradução moderna de Metamorfoses, esta bilingue latim/português, em dois volumes, da autoria de Domingos Lucas, edição Nova Vega, Lisboa 2006.
Vale ainda a pena a leitura dos fragmentos da obra traduzidos por Bocage.